Livro “Quem limpa?”, de Bianca Santana, convida crianças e adultos a olharem para a sujeira do chão e da história

Na trama, lançada em junho pela Companhia da Letrinhas, um país fictício vive um verdadeiro caos: a sujeira se espalha por todos os lados e só uma pessoa tenta dar conta da bagunça

Por Amanda Stabile

01|07|2025

Alterado em 01|07|2025

Quem limpa a sua privada? E a sua casa? Essas perguntas aparentemente simples ganham força no novo livro infantil da escritora Bianca Santana, com ilustrações de Ana Cardoso. Lançado em junho pela Companhia das Letrinhas, Quem limpa? propõe, com humor e delicadeza, uma conversa necessária sobre o trabalho doméstico — esse que nunca acaba, que pesa mais sobre algumas mãos, e que raramente é tema de histórias para crianças.

Na trama, um país fictício vive um verdadeiro caos: a sujeira se espalha por todos os lados e só uma pessoa tenta dar conta da bagunça. “Quem suja? Quem limpa? Quem lava? Quem cuida? O trabalho doméstico nunca acaba. Tem tarefa todo dia, leve e pesada, rápida e demorada. Em muitas casas, todo esse trabalho é feito por uma pessoa só. Mas o que acontece se cada um fizer um pouquinho?”, provoca o livro.

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A inspiração para a obra nasce de uma vivência pessoal, mas coletiva para muitas mulheres negras no Brasil. “A minha mãe foi empregada doméstica até entrar na universidade. E a mãe dela foi doméstica a vida inteira, o que é muito recorrente na história das mulheres negras no Brasil”, contou Bianca em entrevista ao blog da Companhia das Letrinhas. “Quando minha mãe tinha cinco anos, virou babá das crianças na casa em que a minha avó trabalhava”.

Crescida na periferia de São Paulo, perto da Rodovia Fernão Dias, a autora lembrou das histórias contadas pela avó e por outras mulheres que trabalhavam como domésticas. “Histórias terríveis sobre as casas em que trabalhavam, sobre as tantas violências que os empregados sofrem e que não são vistas. E essa é uma questão importante: em um ambiente doméstico ninguém vê o que está acontecendo”.

A escolha de transformar essa discussão em literatura infantil partiu do desejo de educar para uma nova divisão do trabalho desde cedo. “Eu escrevo para adultos sobre trabalho doméstico há bastante tempo e pensei em escrever sobre isso para crianças”, contou. E completou:

É um livro para conversar com as crianças, para desafiá-las a pensar de quem é responsabilidade e quais são as mãos invisíveis que limpam a bagunça de todo mundo.

A provocação se estende também aos adultos. “Para os pais e cuidadores, é um convite a pensar que, de acordo com a idade, as crianças já conseguem fazer muitas coisas. Isso é importante para desenvolver autonomia, mas também para construir uma nova divisão do trabalho”, disse.

Durante mesa na Feira do Livro de São Paulo, realizada em junho de 2025, Bianca reafirmou que o tema é urgente e que, historicamente, quem limpa no Brasil são as mulheres negras. “Mulheres gastam muito mais tempo com o trabalho doméstico e de cuidados do que os homens. Essa é uma realidade muito acentuada no Brasil e não é um assunto comum para a gente tratar com as crianças”, disse.

A partir da leitura da filósofa Silvia Federici, a autora recuperou a trajetória histórica desse trabalho. “Na Idade Média, o trabalho de cuidado era feito coletivamente entre mulheres, num contexto onde o dinheiro ainda não era o principal marcador de poder. Com a transição para o capitalismo, quando o dinheiro se torna o centro da vida social e o trabalho doméstico deixa de ser remunerado, as mulheres perdem poder”.

No Brasil, o peso dessa transição foi agravado pelos quase quatro séculos de escravidão. “Com a abolição, a maior parte das pessoas negras não tinha trabalho. Mas as mulheres negras passaram a exercer o trabalho doméstico na sociedade brasileira como principal fonte de renda”, lembrou.

A escolha de Ana Cardoso como ilustradora também carrega sentido. “Foi bacana também ter a Ana como ilustradora, porque ela também é alguém que tem uma história com o tema — a avó dela também foi empregada doméstica”.

Na Feira do Livro, Bianca comentou que muitas vezes escuta que “criança não entende temas complexos”, mas contesta essa ideia. “Escrevo livros infantis para serem lidos por crianças e adultos juntos. Até por isso esse desejo de escrever ironia para as crianças, porque as crianças entendem, mesmo os adultos tendo hoje mais dificuldade de entender”.

Para a classe média, eu acho o livro muito difícil. Se não for você que limpa sua própria casa, terá que dizer para sua criança que quem limpa é uma mulher, provavelmente negra e, com certeza, pobre.