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Atualizado em 13|02|2021
Os dados sobre violência contra as mulheres no Brasil têm revelado que a casa é o local mais inseguro para as mulheres, que são assassinadas, sobretudo, por seus atuais ou ex-companheiros.
Só em 2017, segundo o 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, das 4.539 mulheres assassinadas, pelo menos 1.133 foram vítimas de feminicídio.
As armas de fogo estão entre as principais causadoras deste cenário. Segundo o sistema Datasus, do Ministério da Saúde, em 2016, 2.339 mulheres foram mortas por armas de fogo no Brasil, o que significa, em média, metade dos homicídios de mulheres naquele ano. Desse total, 560 foram assassinadas dentro de casa.
E a vulnerabilidade é ainda maior para mulheres negras, que tem um número de mortes 71% maior que entre as não-negras, de acordo com o Altas da Violência 2018.
Os dados apontam para a gravidade do Decreto nº 9.685, publicado no Diário Oficial em 15 de janeiro de 2019. Com essa decisão, o acesso a posse de armas se torna mais flexível no Brasil, o país que já ostenta a vergonhosa posição de 5ª nação no mundo que mais mata mulheres.
Especialistas que trabalham no enfrentamento à violência contra a mulher alertam que a existência de uma arma de fogo em casa pode tornar ainda mais difícil para a mulher romper com o ciclo da violência, aumentando sua vulnerabilidade e o medo de sofrer uma retaliação do parceiro. Além disso, se há casos em que as mulheres sobrevivem à tentativa de feminicídio é, em larga medida, porque o instrumento de violência foi de mais baixa letalidade.
Mulheres Trans
Quando se trata de mulheres trans o número também é alto. Segundo dados da ONG Transgender Europe (TGEU), o Brasil é o país que mais mata transsexuais. As mulheres, sobretudo negras, são as principais vítima.
O relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB) aponta que, em 2017, 445 mortes de pessoas LGBT foram registradas, 191 das vítimas eram pessoas trans. Do total, 136 episódios envolveu uso de armas de fogo. Com relação ao local, 56% dos casos aconteceram em vias públicas e 37% dentro da casa da vítima.
O pacote Anticrime
No dia 4 de fevereiro, o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, apresentou um pacote de leis “anticrime”. A medida ainda será submetida à aprovação do Congresso, mas seu conteúdo já tem sido questionado por especialistas e movimentos sociais.
Um dos pontos mais polêmicos é a redução pela metade ou até mesmo a não aplicação de condenação a alguém que matar em legítima defesa quando o “excesso doloso” for causado por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
Em resposta ao conjunto de propostas do pacote, organizações do Movimento Negro protocolaram, em 20 de fevereiro, uma denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA). Entre os pedidos está a necessidade de um observador internacional para acompanhar o caso no Brasil.
"A gravidade que tais modificações podem representar à segurança pública e à vida de milhares de cidadãos e cidadãs brasileiras, sobretudo da população negra e pobre, nos motiva a apresentar este documento", diz o texto.
Entre as pessoas que se manifestaram contrárias a proposta do Moro está Daniella Meggiolaro, advogada criminalista e diretora do IDDD (Instituto de Defesa do Direito da Defesa). Segundo o documento, ela afirma que 'as mulheres negras vão ser cada vez mais afetadas, já que são vítimas de violência policial e são as mães dos jovens negros mortos pela polícia'.
Para além dessa movimentação, algumas pesquisadoras também alertam que os argumentos de legítima defesa, de violenta emoção e de discussões acaloradas, comumente utilizada por agressores e que ganham contorno na medida proposta por Moro, também podem aumentar o número de feminicídios.
Armadas pela informação
Destacando a urgência de impulsionar o debate sobre a vida das mulheres, dentro e fora das redes, desde uma perspectiva feminista, antirracista e não transfóbica, o Nós, mulheres da periferia participa da campanha #ArmadasdeInformação. A ação é coletiva e realizada entre organizações feministas e de direitos humanos.
São elas: Instituto Patrícia Galvão, Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, Blogueiras Negras, Mídia Índia, Ação Educativa e Nós, Mulheres da Periferia. A iniciativa tem o apoio do projeto Diálogos Nórdicos – uma iniciativa das embaixadas nórdicas no Brasil (Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia) e do Instituto Cultural da Dinamarca.
Para abordar o assunto, o Nós convidou três mulheres que compartilham suas perspectivas sobre os impactos do chamado Pacote Anticrime e comentam como a possível flexibilização da posse de armas no Brasil pode afetar diretamente as mulheres.
Ana Paula Correia, mestre em Ciências Sociais, explica em um artigo quais são os desafios que ela enxerga enquanto mulher negra e periférica diante do atual contexto político e social. Em sua opinião, as políticas públicas não chegam aos extremos da cidade. "O Estado produz a nossa morte porque nega a nossa proteção e produz a nossa precarização".
Outra convidada é Maria Clara Araújo, escritora transfeminista e estudante de pedagogia. Em seu texto, Maria Clara apresenta um verdadeiro pacto pela vida e estabelece que 'os requintes de crueldade que o transfeminicídio brasileiro carrega, não devem ser vistos como fatos intransponíveis das nossas vidas'.
Com um olhar mais técnico e jurídico, entrevistamos também a advogada Dina Alves. Ela tem uma pesquisa que explora o sistema carcerário no Brasil pelo viés interseccional. Seu trabalho de mestrado “Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe da punição em uma prisão paulistana”, expõe algumas das particularidades das cadeias femininas em São Paulo.
Em sua entrevista, ela afirma que a proposta do ministro da Justiça e Segurança Pública consente a manutenção de um ciclo de violações que atinge, majoritariamente, mulheres negras e periféricas. Seja no campo privado ou público, vítimas de pessoas próximas ou agentes do estado. Leia abaixo na íntegra.
Dina Alves: Ainda que o ministro da Justiça, Sérgio Moro, tenha apontado que o pacote não se configura uma “licença para matar”, está explícito em cada ponto do pacote essa autorização legal. A carta branca para matar está evidenciada na anulação da responsabilidade do agente policial ou de segurança pública que agir com excesso no exercício do direito de repelir agressões. O ministro quer punir o chamado “excesso”.
Há uma inversão dos bens jurídicos protegidos. De um lado, a Constituição prevê a proteção da dignidade da pessoa humana, de outro, o pacote prevê a autorização da barbárie. Flexibilizar os limites para aplicação do excesso punível fere a racionalidade da lei, principalmente quando esta flexibilização possui parâmetros altamente subjetivos como pressupostos do “medo, surpresa ou violenta emoção”.
Como podemos interpretar esses pressupostos subjetivos no contexto da produção racial do “suspeito padrão”, das mortes e punições racializadas? Temos vários exemplos disso: chacinas corriqueiras, espancamento de mulheres pretas, como a execução de Luana Barbosa dos Reis, execução de Cláudia Ferreira da Silva, são exemplos emblemáticos da forma como a polícia brasileira atua nas comunidades empobrecidas, e se utilizam de argumentos jurídicos como “legitima defesa” para justificar o genocídio.
O pacote aumenta o número de hipóteses da legítima defesa para autoridades e parte da sociedade 'passar pano' para a polícia. É isso. Isso é licença pra matar. É a ampliação de um estado penal genocida, em detrimento da diminuição de um Estado que garanta a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a vida das pessoas na sua integralidade.
O Brasil é um dos países que abriga a polícia mais selvagem e sanguinária do mundo. Só em 2017 foram 63.880 pessoas mortas, o maior número de homicídios da história do Brasil. Isso é licença pra matar.
O ministro não está preocupado com as pessoas que foram executadas, tampouco se foram pessoas pobres, pretas e indígenas, vítima da política de combate às drogas. Os números de mortos, em decorrência da intervenção policial, tem aumentado nos últimos anos, com aproximadamente 14 mortes por dia. Raça, letalidade e gênero fazem parte de uma simbiose mortal que vitimiza mais as mulheres negras e suas comunidades.
Dina Alves: As mulheres que compõem movimentos de familiares de vítimas do Estado estão na linha de frente. De frente para o fuzil. Muitas mulheres são ameaçadas e têm suas casas invadidas. Elas estão em um lugar de alta vulnerabilidade porque desmascaram as instituições burocráticas ao ressignificar o sentido biológico da maternidade, do luto e das mortes.
São mulheres negras, pobres, periféricas que enfrentam o estado racista patriarcal. Sabemos que o Brasil ocupa lugar de destaque nas condições desfavoráveis ao desenvolvimento das mulheres negras, e sua situação social é fruto de raízes históricas, herança colonial. Ontem, mucamas, hoje, presidiárias ou mulheres que estão nessa triste trajetória de reivindicar “justiça”, nas fileiras de instituições.
É interessante observar como as pautas eleitoreiras do Bolsonaro e Mourão já previam estas medidas ao disseminarem frases de ódio e a criminalização de mães e avós, ao se referirem a elas como 'desajustadas'. Ainda que a categoria “raça” não estivesse explícita nas suas palavras para referenciar cor da pele, as declarações de ambos revelaram uma episteme racial que tem tudo a ver com uma concepção racializada da lei e da ordem, que coloca estas mulheres como principais alvos desse pacote do Moro.
São alvos porque seus filhos e filhas estão presos ou foram mortos, e, portanto, atingem também familiares. São alvos porque as políticas de segurança pública, historicamente, elegeram os corpos negros femininos como locus de experimentos das tecnologias bélicas, no extermínio de um grupo social específico. A hipervigilância das agências de controle, de forma desproporcional, contra mulheres negras são comprovadas na explosão das taxas de aprisionamento feminino e na cor dessa população.
Se são 67% negras, são também mães, analfabetas ou com pouco estudo, moradoras de bairros pobres e vítimas de uma política genocida de combate às drogas. Então, o lugar de alta vulnerabilidade que estas mulheres estão, e que o Pacote do Moro reafirma esse lugar, é um diagnóstico importante para analisar esse processo histórico de continuidade da marginalização social, cultural e econômica que elas estão submetidas. Tanto nas fileiras do lado de fora das prisões e IMLs (Instituto Médico Legal), quanto dentro desses espaços.
Dina Alves: Numa sociedade pautada por uma cultura machista, patriarcal, misógina e racista, o pacote do Moro abre brecha perigosa contra a vida das mulheres negras. Segundo dados recentes, aumentou o número de mulheres vítimas do feminicídio praticados por vizinhos e companheiros. Ou seja, crimes ocorridos em espaços privados.
A flexibilização da posse de armas aumenta a cronicidade destas violências, vai elevar as taxas de feminicídio e, consequentemente, teremos uma sociedade altamente perigosa para as mulheres, tanto em termos de convivência em espaços privados, quanto públicos. É bom saber que nos últimos anos a Lei Maria da Penha não serviu de proteção às mulheres negras. A taxa de homicídio entre as mulheres brancas caiu 3,6 por 100 mil em 2003 para 3,2 em 2013, uma redução de 11, 9%. Já entre as mulheres negras, houve um aumento de 4,5 para 5,4 por 100 mil no mesmo período, um crescimento de 19,5%.
Em 2013, foram assassinadas 66,7% mais negras do que brancas. Isso nos ajuda a entender como o instituto da escravidão inaugurou um estado de exceção permanente na vida das mulheres negras, que legitima mecanismos institucionalizados, réplicas escravocratas que demarcam este lugar de alta vulnerabilidade destas mulheres na sociedade, especialmente no sistema de justiça. Estamos falando da distribuição desigual da morte de um determinado grupo social.
Precisamos nos perguntar: por que mataram mais mulheres negras nos últimos anos? Por que a Lei Maria da Penha não foi um dispositivo legal importante para a sua proteção? É preocupante saber que a flexibilização do porte de armas vai deixar um rastro de sangue ainda maior e consequências irreparáveis às vítimas indiretas.
O pacote também representa um retrocesso em termos de luta feminista, que desmascarou o racismo, o sexismo e o machismo da letra da lei do Código penal, que até pouco tempo criminalizava e objetificava as mulheres. Termos subjetivos como matar por “violenta emoção” pode reforçar a retórica da defesa da honra e da legítima defesa também para apurar crimes de feminicídio.
Por outro lado, precisamos ficar atentas sobre dados estatísticos sobre assassinatos de mulheres cometidos por policiais. São dados subnotificados, inexatos e superficiais, divulgados pelos departamentos de Justiça e noticiados pela mídia hegemônica. Não existe Agência federal de controle da atividade e de uniformidade das práticas das policiais estaduais.
O Ministério Público, que tem função constitucional de fiscalizar as polícias estaduais, raramente faz isso. Um exemplo disso são os sistemáticos arquivamentos dos inquéritos policiais com ocorrências de assassinatos cometidos pela polícia, sob a alegação jurídica dos “autos de resistência”, uma classificação jurídica de homicídios/feminicídio que serve para escamotear arbitrariedades cometidas por policiais.
A ausência de dados afeta a forma como se produz conhecimento na área de segurança pública e as análises políticas. Não considerar essa deficiência nas investigações no pacote do Moro é uma estratégia para manter sob sigilo dos governos, estaduais e federais, dados estatísticos reais sobre os assassinatos de mulheres cometidos por policiais.
Embora assassinatos de negros e negras tem chamado a atenção da sociedade civil, como foi o caso da execução da Marielle Franco, por exemplo, muitas outras mortes são invisibilizadas nas favelas, no interior das hostis prisões e pelos crescentes velórios nas ruas.
O Brasil é um dos países que abriga a polícia mais selvagem e sanguinária do mundo. Só em 2017 foram 63.880 pessoas mortas, o maior número de homicídios da história do Brasil. Isso é licença para matar.
Dina Alves, advogada que pesquisa o sistema carcerário brasileiro
Ana Paula Correia é feminista negra, mestra em Ciências Sociais, moradora do Itaim Paulista e atual coordenadora do CDCM (Centro de Defesa e de Convivência da Mulher) Casa Anastácia na Cidade Tiradentes, zona leste da cidade de São Paulo.
Neste mês de março faz quatro anos da defesa da minha dissertação de mestrado. Minha maior lembrança dessa experiência é a participação de toda minha família assistindo à banca. Foi importante para mim a participação deles/delas, me trouxeram segurança diante de tanta exposição, da qual tenho dificuldade. Além disso, era importante que conhecessem este universo e entendessem por que eu estudava tanto. Bom, eles entenderam a importância desse processo ao me verem sendo achincalhada por uma das professoras da banca, e sentiram orgulho. Eu também.
Obviamente que tive muitas parceiras em minha defesa porque nós não andamos sós. Ser mulher negra e periférica na academia, e ainda discutir feminismo negro a partir das nossas experiências ou a partir do feminismo advindo da periferia, incomoda muita gente. Ué, não reproduzimos a agenda feminista burguesa, hegemônica e branca, apenas? Não.
Existe um estranhamento quando falamos como mulher negra, a partir do nosso lugar de fala. Nosso ponto de vista é construído a partir da opressão que vivenciamos e a partir do lugar que ocupamos na estrutura social. Não temos que fingir que não estamos posicionadas socialmente.
Este mês de março, também, faz um ano do assassinato de Marielle Franco, negra, mãe, moradora da favela da Maré, e vereadora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Sua morte chocou a população e trouxe grande indignação.
Contudo, a morte de mulheres negras ainda é muito naturalizada, à exceção de Marielle, raramente há comoção e indignação social quando uma das nossas é assassinada.
Quando falamos de feminicídios, somos as que mais morrem. Basta ver os dados: a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres brancas, segundo o Atlas de Violência 2018.
Esses dados demonstram como o racismo potencializa e torna ainda mais cruel as violências contra negras frente àquelas praticadas contra mulheres não-negras. Essa mulher que se torna uma vítima fatal, muitas vezes, já foi vítima de uma série de outras violências de gênero e institucionais. E, normalmente, não teve opções concretas e apoio para conseguir sair do ciclo de violência, ou seja, muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas.
Além disso, mulheres negras são também as que mais morrem pelas mãos do Estado, nas “intervenções legais e operações de guerra”, que é como as operações policiais são denominadas na base de dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde.
Não é difícil entender por que o grupo que menos procura a polícia, mesmo sendo vítimas de alguma violência, é de pessoas negras. Isso também se verifica entre as mulheres: as mulheres negras são as que menos buscam suporte policial quando vítima de agressão (Retrato da Desigualdade de Gênero e Racial no Brasil, 2011).
Existem barreiras enormes para que a população pobre e negra tenha acesso à justiça, pois dependemos de um judiciário totalmente voltado à proteção da elite, e totalmente ineficiente quando se trata da classe trabalhadora. Dessa forma, observamos como as políticas públicas não são pensadas a partir de nossas experiências, das mulheres negras e periféricas, porque as leis não nos protegem.
As políticas públicas não chegam a nós, aos extremos da cidade. O Estado produz a nossa morte porque nega a nossa proteção e produz a nossa precarização.
Para o enfrentamento da violência contra a mulher é fundamental a manutenção, a ampliação e o aprimoramento das redes de apoio à mulher, previstos na Lei Maria da Penha, que viabilizam o atendimento e as alternativas de vidas para as mulheres. Mas o que temos vislumbrado é o projeto de enxugamento e precarização dessas políticas desempenhadas pelo Estado.
Esse quadro ainda poderá piorar com o Projeto Anticrime apresentado pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro, para combater a corrupção, os crimes violentos e o crime organizado. São 14 mudanças legislativas. Entre elas há a ampliação da possibilidades de legítima defesa para os policiais.
Isso garante uma maior segurança jurídica no caso abusivo da força. Ou seja, transmite a mensagem simbólica tanto defendida por Bolsonaro: “bandido bom é bandido morto”. No país onde a polícia tem altíssimos índices de letalidade, ao invés de propor políticas para reduzir os índices de violência, ele propõe o aumento.
A este projeto se juntam políticas armamentistas que facilitam que mais pessoas tenham posse de armas de fogo nas suas casas. No entanto, é no espaço doméstico onde as mulheres enfrentam com mais intensidade a violência. Isto significa que esta política irá aumentar o risco de morte das mulheres.
Se o Estatuto do Desarmamento, em certa época, pôde interromper a corrida armamentista no país, que estava impulsionando mais mortes violentas, as políticas atuais significarão retrocessos inimagináveis, aumentando as taxas de morte de mulheres, de jovens e de pessoas negras.
A morte de mulheres negras ainda é muito naturalizada. À exceção de Marielle, raramente há comoção e indignação social quando uma das nossas é assassinada.
Ana Paula Correia, atual coordenadora do CDCM (Centro de Defesa e de Convivência da Mulher) Casa Anastácia, na Cidade Tiradentes, zona leste da cidade de São Paulo
Maria Clara Araújo dos Passos é graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco, pesquisadora de teorias pós críticas em Educação e idealizadora do projeto "Pedagogia da Travestilidade”, que busca colocar em diálogo a educação e a experiência vivenciada por travestis e mulheres trans. Maria Clara também escreve para os sites Blogueiras Negras e Transfeminismo.
Ao olharem para o passado, travestis e mulheres trans estão revisitando suas histórias no sentido de compreendê-las criticamente, afim de intervir nestas condições desumanizadas e construírem possibilidades outras de realidades.
Nossa comunidade foi condicionada a não se pensar em um sentido histórico e coletivo. Tomamos consciência que pouco sabemos sobre nós mesmas e a respeito do nosso caminho percorrido até os dias atuais. Este fato, fruto do que Paulo Freire chamaria de consciência ingênua, culminou na naturalização das condições desumanizadas em que fomos submetidas historicamente em nossa nação.
Inseridas em contextos que domesticam e animalizam nossas humanidades, que ceifam autonomias e nos prescrevem a lugares precários, nosso viver esteve por muito tempo imerso em uma realidade opressora, imobilizadora.
Os acessos às universidades e a outros âmbitos educacionais, assim como a maior circulação de informações sobre nossos direitos, está desencadeando a tomada de consciência histórica e crítica da população de travestis e mulheres trans, e nos auxiliando na construção de sociabilidades que não estejam condicionadas ao viver precarizado e sub-humanizado.
Travestis e mulheres trans estão reconhecendo o dever crítico de superação desta realidade opressora, ao passo que a desvelam enquanto desafío permanente pela busca de Ser Mais. Neste contexto, Ser Mais significa compreender sua condição de sujeito que deve interferir criticamente no mundo, numa busca permanente pela humanização de si e dos/as outros/as.
Estamos reconhecendo nosso comprometimento com a busca por nossa humanização, como parte indissociável do dever ontológico de se pensar e se posicionar enquanto mulheres, logo, sujeitos de direito. A tomada de consciência das condições desumanizantes que fomos submetidas, provoca reflexão/ação permanente. Desta forma, se configurando em uma práxis pedagógica que nos orienta em direção a uma libertação que é coletiva, crítico-reflexiva.
Travestis e mulheres trans estão anunciando novos projetos de mundo que desnaturalizam a desumanização enquanto destino dado da vida de inúmeras mulheres.
Costumo afirmar que na construção de novos marcos civilizatórios, de outras sociedades e utopias, travestis e mulheres trans precisam ocupar lugares destoantes daqueles que estão postos no Brasil. A prostituição como única forma de subsídio, os requintes de crueldade que o transfeminicídio brasileiro carrega, não devem ser vistos como fatos intransponíveis das nossas vidas.
É preciso ir além. Por esta razão, neste momento, construímos narrativas que reinventam nossas posições na sociedade e reivindicamos novos horizontes possíveis para nossas vidas. É urgente novas condições/realidades radicalmente distintas do que foi instituído enquanto único caminho possível para travestis e mulheres trans no Brasil.
É neste ensejo que conclamamos novos projetos de mundo, anunciando possibilidades Outras de viver e afirmando nossas reexistências em meio as distopias.
É preciso ir além. Por esta razão, neste momento, construímos narrativas que reinventam nossas posições na sociedade e reivindicamos novos horizontes possíveis para nossas vidas.
Maria Clara Araújo