De quando a leitura afaga as dores que não podemos entender
"Riscava em cima delas como se apenas aquele contorno já fosse o suficiente pro grito contido de dentro de mim. Não tinha voz, mas tinha letra".
Por Jéssica Moreira
24|10|2017
Alterado em 24|10|2017
Quando eu era criança, bem criança mesmo, de uns cinco anos, eu vivia fingindo que lia os gibis dos meus primos. Eu desejava incansavelmente que as palavras entrassem pela minha boca, assim, só de vê-las sobre o papel. Eu queria olhar pra elas e deixar que saíssem cantarolando, sem que eu mesma percebesse.
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Eu tocava nos livros como se fosse pegar cada letra pra mim. Riscava em cima delas como se apenas aquele contorno já fosse o suficiente pro grito contido de dentro de mim. Não tinha voz, mas tinha letra. Na parte da tarde, eu escondia debaixo de uma poltroninha da sala o Capitães da Areia do Jorge Amado. Não era de ninguém. Ninguém sabia, eu sabia. Ali era meu escritório secreto, com todas as palavras que ninguém podia ler, nem eu mesma.
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Até que num outubro como esse aqui, num dia de nem tanto sol, eu vi a mãe Luzia ancorada na escada de cera vermelha daqui de casa. Ela, com seu cabelo preto, mas bem pretinho e comprido, estava me olhando com aqueles olhos puxados e bochechas redondas de sorrisos, quando sua camiseta rosa piscou pra mim.
Toda lisa, sem estampa alguma, ela trazia no peito esquerdo uma imagem, uma única imagem, em preto e bem pequena. Não era um sol, não era um desenho, era uma imagem feita toda de pedaço miúdo de palavra, desses que vão juntando um no outro e deixam a memória da gente, assim, toda letrética. P-A-K-A-L-O-L-O. Pakalolo? Pakaloooolo! Eu aprendi a ler, mãe! Mãe, eu tô lendo, é Pakalolo, é pakalolo! P-A-K-A-L-O-LO. Pakalolo, mãe!
Então, ali, do coração de minha mãe, eu pude, finalmente, ler o mundo, pra começar, então, a escrever não só as minhas, mas também as dores que nela pulsavam.
Jéssica Moreira, 26, é cofundadora do Nós, mulheres da periferia e mora em Perus, região noroeste de São Paulo.