Dia Internacional da Menina: quando criança, era do portão pra dentro que eu existia

Quando criança miúda, era do portão pra dentro que eu existia. Era ali – entre o asfalto quente e o concreto do meu quintal – que se erguiam as grades cor-de-laranja que me impediam de viver a rua. Era no terreiro da vó que a bicicleta girava o mundo, dando voltas e voltas em torno […]

Por Jéssica Moreira

11|10|2016

Alterado em 11|10|2016

Quando criança miúda, era do portão pra dentro que eu existia. Era ali – entre o asfalto quente e o concreto do meu quintal – que se erguiam as grades cor-de-laranja que me impediam de viver a rua.
Era no terreiro da vó que a bicicleta girava o mundo, dando voltas e voltas em torno de si mesma.
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Enquanto isso, o menino, do lado de fora, ganhava o céu em sua pipa. Descia correndo a ladeira atrás da bola que não parava de quicar. E punha o chinelo na beirada do passeio, pra marcar o gol do futebol improvisado que eu só jogava no metro quadrado da frente de casa.
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Enquanto eu, na parte mais baixa do muro, assistia calada, mas não com menos dor, as histórias todas que eu não podia ser. E aí eu inventava. Inventava um escritório atrás da poltrona de pano da sala.
Inventava um consultório odonto debaixo da máquina de costura que a mãe consertava a barra da calça do pai. Inventava uma escola inteira com as 45 bonecas que ocupavam o quartinho dos fundos — todas elas devidamente nomeadas, com nome e sobrenome. I
nventava, sentada na escada de chão vermelho, os poemas das dores dos outros que eu não podia afagar, eu afagava em letras.

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Dia Internacional da Menina | crédito: Cristiano Medeiros Dalbem / Flcikr


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Eu me inventava pra poder ser. E eu era. E era também a amiga invisível Carlinha, e a amiga da amiga invisível, a Roberta. E seus respectivos namorados, também invisíveis. Ali, do portão pra dentro, éramos todos, mas continuávamos invisíveis ao mundo.
Eu cresci, a Carlinha desapareceu. A Roberta e todos aqueles também. Deixei que elas partissem, pra que a invisibilidade de mim ganhasse vida do portão pra fora e pudesse ganhar até mesmo o quintal de outros portões. E ganhou. Mares, marés, céus azuis e nublados. Isso tudo pra nunca mais precisar existir apenas do portão pra dentro. No Dia Internacional da Menina, que todas as meninas possam ser muito além de seus portões. 
Jéssica Moreira é jornalista, co-fundadora do Nós, Mulheres da Periferia e moradora de Perus.