Como é ser uma travesti, intersexo, vivendo com HIV na periferia?
Conheça a história de Carolina Iara, travesti e co-deputada estadual de São Paulo do PSOL, eleita em 2022.
27|06|2023
- Alterado em 17|05|2024
Por Victória Dandara
É com imensa alegria que finalizo este especial do Junho do Orgulho com a história de Carolina Iara, co-deputada estadual de São Paulo eleita com 259.771 votos em 2022, junto à Bancada Feminista do PSOL. Além de sua carreira política, Carolina é uma travesti, negra, intersexo, HIV+ e moradora da periferia, nascida na região de Itaquera, zona leste da capital paulistana. Aos 11 anos, mudou-se para a Fazenda da Juta, próxima aos bairros de São Matheus e Sapopemba. Em seu território, ela cresceu rodeada de referências de luta e resistência, através dos movimentos sociais por moradia, saneamento e cultura no bairro.
Sua infância foi profundamente marcada pela presença da avó, com quem ficava enquanto a mãe, Dona Giza, trabalhava para sustentar a casa sozinha. A transição de Carolina ocorreu cedo, aos 14 anos, após conhecer uma amiga também travesti. Em uma ocasião, foi convidada a se “montar”. A partir daquele momento, ela compreendeu que era essencial viver sua própria identidade. “Quando coloquei a peruca e me olhei no espelho, pensei: ‘É isso que eu quero ser’. Me senti bonita como nunca antes na vida”, relatou Carolina. Durante esse processo, ela começou a frequentar locais de prostituição para obter recursos para suas necessidades materiais. Ela ressalta que, apesar das dificuldades enfrentadas, esse momento teve sua importância: “Na adolescência, tive essa experiência iniciática como travesti. Foi significativo para mim, embora também tenha sido doloroso”. No bairro, Carolina conta como sua vivência como adolescente LGBTQIA+ foi acolhida pelos coletivos e festas locais. Quanto à sua mãe, nunca teve problemas com suas questões de gênero, mas se preocupava com a prostituição.
No entanto, aos 18 anos, Carolina foi obrigada a interromper sua transição e voltar a se apresentar de acordo com o gênero designado ao nascer (o que chamamos de destransicionar), devido ao preconceito no mercado de trabalho formal. Ela se afastou completamente dos movimentos sociais que tanto a apoiaram e nutriram. Pouco tempo depois, após o término de um relacionamento abusivo, Carolina descobriu que era HIV+. Esse diagnóstico transformou completamente sua vida. No início, ela enfrentou sérios problemas de saúde decorrentes da baixa imunidade, resultado do diagnóstico tardio da doença. “Foi um processo de ressignificação. Não foi fácil lidar com o HIV, nem mesmo fisicamente. Não sou uma pessoa da classe média branca com acesso à saúde de qualidade”, disse. O medo da morte foi o primeiro obstáculo enfrentado por Carolina, cuja percepção do HIV estava marcada pelo estigma associado à AIDS. Sua mãe, Dona Giza, desempenhou um papel fundamental nesse momento, mostrando que era possível receber tratamento adequado e conviver com o diagnóstico. Foi então que a parlamentar se aproximou de movimentos como o Grupo Pela Vida e as Redes Nacional e Estadual de Jovens Vivendo com HIV. A partir desse momento, ela se reaproximou dos movimentos sociais e retomou sua transição em 2018, vivendo como realmente é, uma travesti. Assim, o diagnóstico que inicialmente parecia uma “sentença de morte” tornou-se sua motivação para reconstruir sua própria vida.
A partir da relação com o ativismo trans, Carol consegue identificar as violências que sofreu em seu corpo devido à sua condição de pessoa intersexo, compreendendo a complexidade dessa condição. No entanto, inicialmente, esse entendimento não foi tão simples. Ela afirmou: “(Sentia que) roubaram minha história. Mentiram pra mim. Tive que entender os processos de violência que minha própria família sofreu”.
No Brasil atualmente, há uma série de procedimentos médicos que envolvem a mutilação genital de crianças intersexo, na tentativa de “adequar” os órgãos genitais ao padrão endosexo. Para Carol Iara, que vem de uma família negra e periférica, esse processo foi imposto de forma extremamente violenta para sua família.
Além de ser parlamentar e acadêmica, Carol também é uma travesti de axé, tendo sido iniciada no culto de candomblé para os orixás Ossain e Iansã pelas mãos da Iyalorixá Cláudia de Oyá. Ela afirma: “Ela se tornou não só minha Iyalorixá, mas também minha segunda mãe. Isso me trouxe muita força e fortalecimento”. Carol tem uma mensagem para as travestis, pessoas intersexo e de periferia: “Vamos agir. A travesti que afirmou que ‘não se dorme na Europa’ está correta. Precisamos nos unir, nos coletivizar e construir uma rede de confiança”. Ela complementa dizendo: “Precisamos equilibrar a força das palavras afiadas com carinho. Historicamente, nós sobrevivemos e estamos aqui porque, como travestis, fomos obrigadas a enfrentar a violência e a resistir (e ainda precisamos). Mas também temos direito ao amor. Amem-se e sejam generosas consigo mesmas”.
E este é o meu desejo para todas as mulheres LGBTQIA+ de periferia: que saibamos nos amar acima de tudo, aceitando nossas essências e reconhecendo a potência de nossas histórias. Ao longo dessa série, tive o privilégio de entrevistar quatro mulheres e travestis magníficas, cada uma com sua própria trajetória. Letícia, Calisto, Andressa e Carolina, meu muito obrigada por me permitirem contar suas jornadas e compartilhá-las com o mundo. Que todas nós tenhamos orgulho.
Victória Dandara Victória Dandara é travesti, cria da zona leste de São Paulo (SP), pesquisadora em direitos humanos, advogada transfeminista e filha de Oyá. Foi uma das primeiras travestis a se graduar em direito na USP e hoje luta não só pela inclusão da população trans e travesti, mas por uma emancipação coletiva a partir da periferia e da favela.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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