Como é ser travesti, negra e produtora cultural na periferia?
Calisto do Carmo enfrenta desafios na universidade e como produtora cultural, mas encontra força na espiritualidade e luta por um futuro melhor.
12|06|2023
- Alterado em 17|05|2024
Por Victória Dandara
Dando continuidade ao nosso especial de entrevistas para o mês do orgulho LGBTQIA+, trazemos hoje a história de Calisto do Carmo. Como uma travesti, negra, periférica, compartilha sua jornada de 20 anos morando do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo (SP). Atualmente ela cursa o segundo ano do bacharelado de História da Universidade de São Paul (USP), cujo campus é localizado na região Butantã, na zona oeste paulistana. Essa realidade implica em longas horas de deslocamento para Calisto, que se vê transitando “entre dois mundos” – a universidade e seu próprio território, onde reside e trabalha.
O curso de História tem um significado simbólico para Calisto, que reconhece a importância de sua presença nesse campo de estudo, o qual frequentemente invisibiliza e apaga narrativas trans e negras. Apesar das dificuldades em se ver representada nas salas de aula e na proposta pedagógica, Calisto relata como se esforça para se conectar sempre com sua motivação para ingressar na universidade: construir sua própria história e “entender as histórias minhas” .
Calisto do Carmo ´r produtora cultural da Casa de Cultura do Campo Limpo, em São Paulo (SP).
©arquivo pessoal
Entretanto, a experiência no ambiente acadêmico não é acolhedora e convidativa. Calisto descreve o desafiador processo de compreender o individualismo imposto pela lógica da instituição, afirmando que “foi um baque perceber que eu teria que fazer tudo sozinha, sem ninguém para me acompanhar”. Ela aponta a construção de coletividades na universidade como um desafio: “Tá todo mundo no seu corre. A gente está tão preocupada em trabalhar, levar o sustento pra casa e se manter viva, que esses espaços acabam não sendo nossa prioridade neste momento. Às vezes não temos energia no fim do dia para debater outros assuntos que nos atravessam, pois acaba sendo desafiador com as demais demandas do dia”.
Além de estar se formando como historiadora, Calisto também atua como produtora cultural na Casa de Cultura Campo Limpo, quebrada onde nasceu e cresceu. Seu trabalho com cultura tem sido empoderador, permitindo que ela descubra suas capacidades e potencialidades. Apesar dos desafios enfrentados em um território periférico, Calisto desenvolve um trabalho de extrema importância, trazendo artistas trans e travestis, especialmente negros e negras, para a programação da Casa de Cultura. Segundo ela, esse processo tem gerado tensões, mas também abre espaço para a apreciação dessas temáticas por parte dos frequentadores do local. A produtora relata que até mesmo senhoras de idade têm aproveitado a oportunidade de assistir a shows de artistas travestis, ampliando seus horizontes além das tradicionais aulas de artesanato.
As atividades acadêmicas de Calisto e sua atuação como produtora cultural periférica se entrelaçam e ganham significado a partir de sua relação com o sagrado. “A espiritualidade tem sido minha base, meu sustento, é onde eu enxergo meu chão para caminhar”. Ao ser acolhida e se identificar com suas irmãs de santo, também travestis, e com as entidades ligadas a grupos socialmente excluídos, Calisto relata um encontro consigo mesma e com algo superior que ampara sua luta. “Os terreiros foram construídos como espaço de resistência de ancestralidade africana e marginal. E entender isso é poder ter uma visão de amanhã”.
E sobre o amanhã, Calisto enfatiza a dificuldade que um corpo travesti, negro e periférico enfrenta para se projetar. As violências que a atingem são inúmeras. No entanto, ela sonha em continuar viva e prosperar em todos os espaços que tem construído para si mesma. Seu objetivo é fortalecer e criar um ambiente onde possa ser verdadeiramente independente, sendo seu próprio porto seguro. Calisto conclui sua mensagem com um apelo para outras travestis periféricas:
“Você é uma pessoa incrível. Neste momento, você pode estar em busca de se encontrar, mas entenda que todas as coisas que você é já são mais do que suficientes, e suas mãos têm o poder de dominar o mundo. Assim como Xica Manicongo suavizou essa terra para que pudéssemos continuar existindo aqui, você também tem o poder”.
Calisto do Carmo
Victória Dandara Victória Dandara é travesti, cria da zona leste de São Paulo (SP), pesquisadora em direitos humanos, advogada transfeminista e filha de Oyá. Foi uma das primeiras travestis a se graduar em direito na USP e hoje luta não só pela inclusão da população trans e travesti, mas por uma emancipação coletiva a partir da periferia e da favela.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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