crianças com mãos umas sobres as outras

Cartilha sobre Batuque de Umbigada é barrada em escolas de São Paulo

Projeto “Criança pode Umbigar? Sim!” distribuiria 1500 cartilhas em escolas municipais sobre cultura afro-brasileira foi paralisado após ataques de grupos conservadores.

Por Redação

20|10|2022

Alterado em 24|10|2022

Beatriz de Oliveira e Mariana Oliveira

Crianças entre 10 e 11 anos, cursando Ensino Fundamental nas escolas municipais de Capivari, cidade a 140 km da capital paulista, tiveram cartilhas educacionais recolhidas em setembro deste ano. O material continha informações relacionadas ao Batuque de Umbigada, dança afro-brasileira típica da região.

O projeto “Criança pode Umbigar? Sim!”, desenvolvido pela professora Lorena Faria e apoiado pelo ProAC (Programa de Ação Cultural) e o Instituto Federal de São Paulo, estava previsto para ser finalizado em novembro, juntamente com o Dia da Consciência Negra. No entanto, está paralisado, após ser alvo de um movimento de moradores que associam o Batuque à uma religião de matriz africana e a sexualização de crianças. As ações são lideradas por articuladas por João Flausino (MDB), suplente de vereador na Câmara de Capivari e membro da igreja evangélica AD Brás Capivari. Ele protocolou um requerimento junto à prefeitura de Capivari, em 23 de setembro para encerrar o projeto, além de ter criado um grupo de WhatsApp para reunir pessoas contra a cartilha, em que na descrição diz que “em nome de Jesus” vão derrotar a “ação maligna” do Batuque de Umbigada, segundo print obtido pela reportagem.

Entenda o caso

Trazida pelos negros escravizados durante o período colonial, o Batuque de Umbigada é uma manifestação cultural afro-brasileira disseminada pelos mais diversos quilombos do país. A tradição africana se espalhou no interior paulista na segunda metade do século XIX. Atualmente, o Batuque ainda resiste principalmente nos municípios de Capivari, Piracicaba, Tietê e Rio Claro.

Falar sobre Umbigada é também falar sobre ancestralidade. Em setembro, o Nós, Mulheres da Periferia conversou com Dona Marta Joana, liderança da Umbigada de Capivari e fundadora do Quintal da Dona Marta. Relembre a entrevista.

Lorena Faria, professora do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) no campus Capivari há 15 anos e membro do Batuque de Umbigada no Quintal da Dona Marta, trabalha com relações étnico-raciais na escola. A especialista em docência para diversidade da Educação Básica, abordou em sua dissertação de mestrado a literatura africana e indígena e como a cultura pode modificar a identidade de crianças no Ensino Fundamental. Já no processo de doutorado, aprofundou seus estudos no Batuque de Umbigada. “Eu me envolvi muito na comunidade do Batuque com o Quintal da Dona Marta e passou a ser uma coisa de vida para mim, até culminar no doutorado”.

Movida por essa paixão pela manifestação artística e tradicional de Capivari, surgiu a ideia de produzir um material para ser distribuído nas escolas. O projeto busca ensinar as crianças a história do Batuque de Umbigada, apresentá-las às mestras de Capivari, muni-las de informação sobre cultura africana e, claro, ensiná-las a dançar Umbigada. A ideia da cartilha surgiu mesmo antes do doutorado de Lorena, isso porque dona Marta sempre reforça em seus diálogos o desejo de envolver mais as crianças na dança. Durante sua pesquisa amadureceu essa ideia, e ano passado, a cartilha “Criança pode Umbigar? Sim!” foi inscrita e aprovada no Edital 493/2021 da PRX do projeto Cartilha educacional viabilizado pelo ProAC (Programa de Ação Cultural).

Veja a cartilha completa aqui: “Criança pode Umbigar? Sim!”

O projeto foi escrito em parceria com o Diadorim Cultura Popular, coletivo cultural da Cidade de São Paulo e o Instituto Federal de Capivari.

Antes da distribuição das 1500 cartilhas, foi feita uma série de formações com os professores, coordenadas por Lorena. “Oferecemos formação para a questão das relações étnicas reais. Abordar racismo dentro de sala é importante, porque precisamos criar e construir identidades positivas nas crianças pretas, mostrar a África das guerreiras”.

Após esse processo, a Prefeitura Municipal propôs para a Câmara dos Vereadores um Projeto de Lei (PL), pensando em uma possível reação negativa de grupos conservadores. Assim, foi aprovada a Lei no 6.315/2022, que instituiu no município de Capivari a “Semana Anicide Toledo”. Dessa forma também pôde sustentar a Lei nº 4.499/2014, que celebra o Dia Municipal do Batuque de Umbigada, em 6 de setembro, aniversário da Mestra Anicide Toledo, além de apoiar a Lei Federal 10639 de 2003, que prevê a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas grades curriculares dos ensinos Fundamental e Médio.

A PL municipal foi aprovada na câmara em agosto. No mês seguinte, em setembro, aconteceram alguns eventos em escolas da região para com apresentações do Batuque para as crianças. “Fomos convidados para mostrar nossa dança, nossa arte, falar com as crianças como se fosse um lançamento das cartilhas nas escolas”, afirma Lorena.

Ao todo, as atividades aconteceram em três escolas. Após esta última, articuladas por João Flausino, iniciaram movimentações nas redes sociais contra o Batuque de Umbigada, alegando que a dança na realidade é algum tipo de religião que fere os valores da família cristã e poderia sexualizar as crianças. O suplente de vereador formalizou na Prefeitura solicitação para interrupção imediata das atividades relacionadas ao Batuque nas escolas e o encerramento da distribuição das cartilhas para as crianças.

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João Flausino criou grupo em aplicativo de mensagens para mobilizar comunidade contra cartilhas

©Print concedido por Lorena Faria

A Lei de Diretrizes e Bases – Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, estabelece que o currículo escolar deve promover a valorização da experiência extra-escolar; vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais e consideração com a diversidade étnico-racial. Permitindo dessa forma, que as atividades relacionadas a Umbigada sejam realizadas em ambiente escolar.

Mesmo diante do amparo legal, o prefeito Vitor Riccomini (PSL) decidiu paralisar o projeto das cartilhas sobre o Batuque de Umbigada. Em vídeo publicado no Facebook de João Flausino, no dia 26 de setembro, o político afirmou: “o nosso compromisso com você, pai e mãe, é com o fortalecimento da família para que nós possamos amanhã ter cidadãos melhores, em momento nenhum o nosso governo estará fazendo qualquer conotação de cunho religioso dentro das escolas”.

Enquanto a questão não se resolve, as crianças perdem a oportunidade de aprendizado sobre cultura afro-brasileira. “A não aplicação desse material e de todo o planejamento que estava sendo desenvolvido é um prejuízo, especialmente para as crianças pretas e para as crianças que são membros do Batuque” reflete Lorena.

Nas movimentações para tentar reverter a decisão do prefeito, a professora participou de uma reunião na Câmara Municipal de Capivari para dar maiores informações sobre o projeto aos vereadores, que estavam sendo questionados pela população local. Lorena entregou uma cartilha a cada um dos presentes, e teve o apoio, por exemplo, de membros do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Piracicaba (Conepir), que classificou a situação como um caso de racismo. No mesmo dia, os vereadores assinaram um ofício solicitando que o prefeito recebesse Lorena e os demais envolvidos na cartilha em seu gabinete.

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Reunião na Câmara Municipal de Capivari

©arquivo pessoal

O ofício cumpriu seu objetivo e Lorena foi recebida pelo prefeito. Na reunião, segundo a professora, o mandatário afirmou que não viria a público novamente para informar uma eventual retomada do projeto das cartilhas, a fim de “evitar mais desgaste”. Acrescentou ainda que os professores envolvidos deverão prestar esclarecimentos aos responsáveis pelos alunos. Lorena conta que o assunto foi dado como encerrado e que as cartilhas continuam com distribuição suspensa.

“A gente está vendo a história se repetir”, desabafa Lorena se referindo às ofensas que tem ouvido nas últimas semanas sobre o Batuque de Umbigada, e aquelas proferidas no período colonial, quando a dança começou a ser praticada. Ela conta que os argumentos usados contra a tradição cultural são os mesmos ao longo das décadas, “dizem que é feitiçaria, que é macumba, que é maligno”.

Acrescenta que sente um misto de ódio e tristeza com essa situação. “Ameaçaram queimar cartilha na porta da prefeitura”, revela.


A reportagem tentou ouvir a prefeitura de Capivari, mas não teve resposta. Se houver alguma manifestação, será incluída.


Conteúdo publicado originalmente no Expresso na Perifa – Estadão