Carta aos Brasileiros de 1977 e de 2022: onde está a questão racial?
Articuladora política e advogada comentam documento em apoio à democracia e possibilidade de golpe de Estado.
Por Beatriz de Oliveira
09|08|2022
Alterado em 11|08|2022
“Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona: Estado Democrático de Direito Sempre!!!!”. Assim termina a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito, divulgada inicialmente com três mil assinaturas, incluindo juristas e empresários. Aberta ao público no dia 26 de julho, a carta conta mais de 900 mil adesões.
O documento adverte que estamos passando por um “momento de imenso perigo para a normalidade democrática” e afirma ser intolerável ameaças aos poderes e incitação de quebra da ordem constitucional, assim como os ataques ao processo eleitoral. Faz isso sem citar o presidente Jair Bolsonaro (PL), nome que profere esses ataques. A iniciativa é protagonizada por ex-alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e o lançamento ocorreu no dia 11 de agosto, na sede da instituição, localizada no centro de São Paulo.
É o mesmo lugar em que a Carta aos Brasileiros, do ano de 1977, foi lançada. Na ocasião, no dia 8 de agosto daquele ano, a carta foi lida pelo jurista e professor Goffredo da Silva Telles Junior. O documento denunciava a ilegitimidade da Ditadura Militar e pedia por democracia. “A consciência jurídica do Brasil quer uma coisa só: o Estado de Direito, já”, diz a última linha do texto.
Para Ingrid Farias, articuladora política e cofundadora do Observatório Feminista do Nordeste, todos os movimentos feitos nos últimos quatro anos com o objetivo de fortalecer a democracia são importantes, pois vivemos “um momento de uma ameaça da instalação, de projeto ideológico que defende a violação de direitos e aumento das opressões”.
Ingrid Farias é articuladora política e cofundadora do Observatório Feminista do Nordeste.
©reprodução Instagram
Mas é preciso fazer uma análise do conteúdo do documento. Para a articuladora, ambas as cartas, mesmo contando com 45 anos de diferença entre si, ignoram questões fundantes do país, como o racismo.
“Não falar dessas questões traz para nós, mais uma vez, o posicionamento de uma tentativa de mobilização que represente todo mundo, mas que, na prática, deixa pessoas negras, LGBTQIA+, mulheres e indígenas de fora desse acordo de firmamento da democracia brasileira”, afirma Ingrid.
O documento faz menção a raça em apenas um momento, afirmando que a igualdade de condições em termos de raça, gênero e orientação sexual ainda está longe de ser atendida.
Assim como Ingrid Farias, a advogada e superintendente adjunta do Fundo de Direitos Humanos do Brasil, Allyne Andrade, entende a relevância da carta no atual momento político. Em entrevista ao Nós, mulheres da periferia, ela conta que, entre as assinaturas, há nomes que admira, como seus colegas do Grupo Prerrogativas, que reúne advogados em defesa da democracia e justiça social.
À principio, a profissional pensou em não ser signatária da carta, por considerar algumas assinaturas como intoleráveis, como pessoas que participaram do impeachment de ex-presidente Dilma Rousseff. Mas decidiu assinar por fazer parte de associações que aderiram ao documento.
Allyne Andrade é superintendente adjunta do Fundo de Direitos Humanos do Brasil
©reprodução LinkedIn
Mesmo contando com assinaturas de pessoas negras, a Carta aos Brasileiros é, em sua essência, um movimento de homens brancos. Segundo Allyne Andrade, isso se deve ao fato de que a iniciativa começou pela elite política e jurídica do país.
“Essa elite não é permeada pela periferia de forma sistemática. Temos uma representatividade, o que não é equidade e justiça racial. Para ser, de fato, um representativo da sociedade brasileira, precisaríamos ter como protagonistas mulheres e homens negros da periferia, de várias profissões, e isso não faz parte da realidade da carta”, afirma.
Questionada sobre a relevância da discussão acerca da possibilidade de um golpe de Estado, em um contexto de ano eleitoral, a advogada afirma que, primeiro, é preciso que a população brasileira entenda a gravidade do momento que estamos vivendo, pois mesmo que Bolsonaro não seja reeleito, o bolsonarismo continuará existindo.
Desse modo, vale trazer a discussão para as realidades periféricas. Vivemos um governo “a favor da violência, racista, LGBTfóbico, defensor de um combo de coisas que nos mata, que autoriza a polícia a matar e a invadir nossas casas e autoriza que não haja direito à saúde e educação”, afirma Allyne.
A articuladora política Ingrid Farias salienta que a ausência da democracia é algo sentido atualmente nas periferias. “Muitas pessoas pretas e pobres ainda não tiveram acesso à democracia, que é a garantia total de direitos”.
Para Allyne Andrade, um dos caminhos para avançar nessa questão é a participação de periféricos na política institucional. Ela afirma que é preciso construir estratégias viáveis de candidaturas, além de formar lideranças tanto para participar do governo, quanto para cobrá-lo.