um dia, na infância, eu vi o meu pai ensinando ao ricardo, meu irmão, a técnica do assovio com o dedo. e, de repente, eles todos, os primos, os vizinhos e uma cambada de outros meninos começaram a se comunicar assoviando. o ricardo usava dois dedos, formando um anel bem debaixo da língua. seu assovio era tão peculiar que eu o reconhecia mesmo estando a metros de distância. era alto, forte e com um agudo no fim cheio de personalidade.

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eu olhava aquilo com inveja. “ora, eu também quero aprender”, pensava, brava. mas meu pai não me ensinava, não. “isso é coisa de menino”, só pra me irritar ainda mais. aí que, um dia, a tia cidinha, que mora nos fundos de casa e é uma mãe pra mim, pegou eu e minha prima aline pela mão e, juntas, fomos até a varandinha da cozinha da vó. nessa janela onde nosso quintal se mistura com uma floresta inteira formada há milhões de sei lá quando.

“então você coloca os dois dedos indicadores debaixo da língua, aperta um pouquinho, coloca pressão e assopra”. sua voz doce, com seu riso com buraquinhos na bochecha, sempre fizeram o que era difícil virar fichinha, tanto que dentro de alguns minutos eu havia transgredido a regra da minha casa e a menina aqui também havia aprendido como assoviar.

Garota na Bicicleta | Créditos: rolvr_comp| Flickr

eu fiquei tão feliz, tão feliz, mas, xereta como eu era, especulei a tia pra ela me explicar por que havia nos levado ali, naquele cantinho da casa, e não na rua como os meninos. “é que daqui, jércinha, o assovio, na verdade, é música pra conversar com os passarinhos”. 

que diferença faz uma tia cida na vida de uma menina jéssica.

Jéssica Moreira é jornalista, 26, cofundadora do Nós, Mulheres da Periferia e moradora de Perus.

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