
Lei do Feminicídio: “Quando a legislação não é clara, o Estado fecha os olhos”
Conversamos com a socióloga Rossana Marinho sobre os dez anos da lei e os desafios que persistem no combate à violência de gênero no Brasil
Por Amanda Stabile
05|05|2025
Alterado em 05|05|2025
Em março de 2025, a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015) completou 10 anos. Criada em um contexto de intensas disputas políticas e mobilizações feministas, a lei buscou dar visibilidade e nome a uma das formas mais extremas de violência contra a mulher: o feminicídio.
Sancionada pelo governo federal em 9 de março de 2015, ela foi resultado de anos de denúncias e evidências sobre a gravidade dos assassinatos de mulheres no Brasil. Para Rossana Maria Marinho Albuquerque, mestre e doutora em Sociologia e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UPFI), a legislação trouxe mudanças importantes na forma como a sociedade lida com o assassinato de mulheres.
A partir do momento em que o tema vem à cena pública e que existe um nome — feminicídio —, isso já provoca uma mudança. É uma pedagogia política.
Porém, ela destaca que ainda existem desafios consideráveis e que a sociedade precisa superar preconceitos e desigualdades profundas, como a violência patriarcal e o racismo, que dificultam uma mudança mais rápida.
Esses desafios também se refletem nos dados alarmantes de violência contra a mulher no Brasil. Em 2024, a cada 17 horas uma mulher perdeu a vida devido à violência de gênero nos nove estados monitorados pela Rede de Observatórios da Segurança. Ao todo, foram registrados 531 feminicídios, 70% cometidos por parceiros e ex-parceiros.
Bastidores da criação da Lei
Desde a promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006, o debate público sobre a violência contra as mulheres se ampliou. Outro acontecimento que impulsionou a criação da legislação foi a instauração da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher, entre 2012 e 2013.
A comissão percorreu 17 estados brasileiros e o Distrito Federal com o objetivo de investigar a situação da violência de gênero no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte do poder público com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para proteger as mulheres em situação de risco.
Dezenas de relatos foram ouvidos e a CPMI produziu um relatório contundente, que apontou a necessidade urgente de tipificar o feminicídio como crime específico no Código Penal brasileiro. A pressão dos movimentos sociais, de especialistas e da sociedade civil organizada foi decisiva para levar a proposta adiante.
No entanto, a tramitação da lei no Congresso Nacional expôs que nem todos estavam de acordo e a força de setores conservadores, especialmente da bancada evangélica. Desde 2013, com as chamadas Manifestações de Junho, o Brasil vivia um crescimento da presença de grupos conservadores na atuação política, acirrando tensões em torno de diversas pautas.
As Manifestações de Junho de 2013 começaram contra o aumento da tarifa de ônibus, mas logo viraram palco de críticas à corrupção, aos gastos com a Copa e à repressão policial. Com forte oposição ao Partido dos Trabalhadores (PT) e ao governo Dilma (2010-2016), abriram espaço para a ascensão da direita e aprofundaram a polarização no país.
“Gênero” x “condição de sexo feminino”
Nesse contexto, durante as negociações em relação ao texto final da Lei do Feminicídio, o termo “gênero” — que aparecia nas primeiras versões do projeto — foi suprimido do texto. Em seu lugar, entrou a expressão “em razão da condição de sexo feminino”, que acabou determinando o formato final da lei. Essa substituição teve implicações importantes.
“Primeiro, porque o foco passa a ser nas relações que produzem a violência, e não no corpo como se fosse uma essência. Quando usamos ‘sexo’, parece que a condição da mulher está vinculada ao corpo que ela habita, e não às relações de poder e construção social. E esse termo também acaba sendo trans-excludente”, explica Rossana.
Assim, ao optar por “sexo” em vez de “gênero”, a lei reforçou uma concepção biológica da identidade feminina, deixando de contemplar, por exemplo, mulheres trans e outras expressões de gênero que fogem da norma cisgênera.
“Quando a legislação não é clara, o Estado muitas vezes fecha os olhos. Ainda há uma visão muito patriarcal nas polícias e entre as autoridades que investigam. Isso gera problemas enormes, porque se os registros não são bem feitos, com campos claros e protocolos definidos, não conseguimos articular os dados. E sem dados, como fazer políticas públicas? Como mensurar o tamanho do problema?”, questiona.
Além disso, Rossana destaca que a negligência institucional contribui diretamente para as mortes e para a invisibilidade das vítimas. No caso da população LGBTQIAP+, o descaso é alarmante. “Muitas vezes, mulheres trans assassinadas são registradas como ‘homens’, ou caem nas cifras gerais de homicídio, sem nenhum recorte de identidade de gênero. Isso apaga as causas reais da violência. É um problema estrutural da segurança pública”, aponta.
Feminicídio além da esfera doméstica
Outro ponto de crítica é a associação quase automática do feminicídio à violência doméstica. “Apesar de a lei mencionar ‘menosprezo à condição de mulher’ como uma das razões para o crime, a interpretação jurídica ainda é muito restrita ao contexto doméstico”, ressalta a socióloga.
Com isso, diversos feminicídios cometidos fora do lar — em universidades, locais de trabalho, ruas — deixam de ser reconhecidos como tal e registrados como homicídios. Essa restrição tem consequências graves: dificulta o registro adequado dos crimes, impede a criação de políticas públicas eficazes e contribui para a invisibilidade de determinadas vítimas.
“É o que acontece com mulheres lésbicas, trans e com lideranças políticas como Mãe Bernadete. Ela foi assassinada dentro da própria casa. Não era violência doméstica, era um feminicídio político e racista”, lembra.
Mãe Bernadete, referência no movimento quilombola, foi assassinada em 2023, mesmo estando sob proteção do Estado como defensora de direitos humanos. Ainda assim, o crime não foi oficialmente reconhecido como feminicídio.
Outro caso emblemático citado pela pesquisadora é o de Janaína Bezerra, estudante de jornalismo da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Em 2023, ela foi vítima de violência sexual e feminicídio por Thiago Mayson da Silva Barbosa em uma sala de aula da instituição.
“Foi um crime brutal, com violência sexual, mas como não havia vínculo doméstico com o autor, o caso foi classificado como homicídio qualificado, não feminicídio”, destaca Rossana. Para ela, isso revela como o judiciário ainda tem dificuldade de reconhecer a motivação de gênero fora dos moldes tradicionais. “A sensação é de que a justiça não foi feita”.
Ela ressalta que isso acarreta em uma profunda lacuna na produção de dados e, consequentemente, na formulação de políticas públicas eficazes. Para Rossana, além de ajustes legais, é fundamental que os estados adotem protocolos específicos, com campos detalhados nos boletins de ocorrência e investigações.
A mudança precisa acontecer na base, na ponta, onde os dados são gerados. Quando isso não acontece, a invisibilidade se perpetua.
O contexto político e os limites da lei
Aprovada durante o segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016), a lei foi apresentada como parte de um esforço institucional para combater os assassinatos de mulheres, ainda muitas vezes tratados como crimes comuns. No entanto, essa aprovação ocorreu às vésperas de uma das maiores crises políticas do país.
Ainda em 2015, o processo de impeachment contra Dilma começou a ganhar força, inaugurando um período marcado por retrocessos em políticas de gênero, cortes em programas sociais e fortalecimento de discursos antigênero e antifeministas.
De acordo com a especialista, nos anos seguintes, especialmente durante o governo Bolsonaro (2019-2022), a ofensiva contra os direitos das mulheres e da população LGBTQIAP+ se intensificou, com impactos diretos na implementação e na efetividade da própria Lei do Feminicídio. Mesmo após dez anos, o peso das disputas em torno da legislação ainda é grande.
Em 2023, houve uma mudança importante na Lei nº 14.550 que fez o feminicídio ser tratado como um crime próprio no Código Penal. Antes dessa mudança, o feminicídio era apenas uma qualificadora dentro de um homicídio, ou seja: se alguém matasse uma mulher por questões de gênero, o crime ainda era considerado um homicídio simples, mas com uma motivação a mais (a de ser um assassinato motivado pelo fato da vítima ser mulher).
O problema estava na possibilidade de o feminicídio ser descaracterizado durante o julgamento. Em suma, a defesa dos agressores podia tentar afastar a ideia de que o assassinato estava ligado ao gênero da vítima, muitas vezes fazendo com que o crime fosse tratado como algo menos grave.
Com a mudança, o feminicídio passou a ser um “crime autônomo” — tem um tratamento específico dentro da lei, com uma pena definida de 20 a 30 anos de prisão. Ainda assim, Rossana Marinho alerta que a essência do texto permanece com limitações graves. “O termo ‘sexo’ continua lá. E a gente ainda vive num país que não tem dados oficiais sobre os assassinatos de pessoas trans e de mulheres lésbicas”, conclui.