Canção para ninar menino grande: um reflexo da masculinidade tóxica na vida de mulheres negras

Fio Jasmin é mais um homem negro que teve o direito de ser príncipe negado na infância e que carrega essa marca em todas as relações que já viveu

28|09|2023

- Alterado em 29|09|2023

Por Ashley Malia

Lançado pela primeira vez em 2018, Canção para ninar menino grande é o quinto romance de Conceição Evaristo e teve nova edição publicada em novembro de 2022. Nesta obra, a autora conta a história de Fio Jasmin, um homem negro, ferroviário, casado que se relaciona com várias mulheres pelas cidades onde viaja a trabalho.

Como admiradora das obras de Conceição Evaristo, eu seria capaz de ler até mesmo a sua lista de supermercado. Assim que ouvi falar da história de Fio Jasmin, fiquei curiosa para saber o que Conceição havia escrito sobre este homem negro, afinal, todas as suas histórias que eu havia lido, até então, eram protagonizadas por mulheres negras. E fui embalada pela curiosidade que comecei a ler e notei que a narrativa se dava a partir do olhar dessas mulheres sobre o protagonista.

Na obra, Fio Jasmin é casado com uma mulher e trabalha como maquinista, por isso está sempre viajando. E é nessas viagens que ele conhece outras mulheres e se relaciona com elas, abandonando-as logo em seguida, rumo à próxima cidade e aos braços da próxima mulher. Essas mulheres se apaixonam e se sentem abandonadas assim que ele vai embora. Com isso, a narrativa nos traz as consequências desses abandonos, relatando o impacto disso na vida das mulheres com as quais Fio Jasmin se relacionou.

Conceição Evaristo nos faz refletir sobre como a masculinidade tóxica é construída na vida de homens negros, afinal, o protagonista era constantemente incentivado pelos colegas de trabalho a ser viril e se relacionar com muitas mulheres. Ele, por sua vez, acreditava que seguindo esse estereótipo teria a validação masculina que precisava.

A infidelidade de Fio Jasmin, seus constantes abandonos e o incentivo dos outros homens, colegas de trabalho, são apenas a ponta do iceberg do comportamento do personagem. Em certo ponto do romance, o narrador-personagem conta que uma vez, quando era criança, foi negado à Fio Jasmin o prazer de ser o príncipe na escola, dando o papel a um garoto branco de olhos azuis. Esse sonho persegue o protagonista que, de aparência tão bela, só desejava ser o príncipe que lhe fora negado na infância. É claro que isso não diminui a responsabilidade que lhe deve ser atribuída em relação aos abandonos e infidelidade, porém se torna parte do fio que conduz a trajetória do personagem.

Todas nós estamos sós, mas a nossa confraria não nos deixa sentirmos sozinhas. Somos e estamos umas com as outras. E, quando o vazio no peito atormenta, não nos entregamos ao desespero, compartilhamos a dor ancestral que existe em cada uma de nós.

Repleto de trechos impactantes, o livro traz a poética e a escrevivência de Conceição Evaristo de forma fluida e bela. Comecei a leitura acreditando que iria discutir apenas masculinidade e ela me surpreendeu, como sempre, trazendo o ponto de vista das mulheres para nos fazer refletir sobre o assunto de forma completa. E não tinha como ser diferente, afinal, são temáticas que estão interligadas e devem ser discutidas de forma conjunta mesmo, pois a masculinidade tóxica não afeta apenas a vida de homens negros, mas também a das mulheres negras.

“Canção para ninar menino grande” é mais uma grande obra de Conceição Evaristo e narra incontáveis escrevivências que podem ser identificadas na vida de várias brasileiras e brasileiros. Eu amo a forma como Conceição retrata a vida. Ela fala de nós como ninguém jamais falou e ao mesmo tempo é tão íntima que parece que ela está falando de pertinho conosco. A história de Fio Jasmin é vivida por vários homens do Brasil, assim como a de Juventina, Pérola, Neide, Angelina, Aurora, Antonieta, Dolores e Dalva. Fio Jasmin é mais um homem negro que teve o direito de ser príncipe negado na infância e que carrega essa marca em todas as relações que já viveu.

Ashley Malia Preta e plural. É baiana, jornalista e influenciadora digital. Fala sobre autoestima, raça, livros, cultura pop e viagens. Em 2020, foi premiada pela Câmara Municipal de Salvador com o Prêmio Maria Felipa.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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