Preta, você se sente culpada pelo seu avanço social?
A psicóloga Ingrid Lúcio indica caminhos para mulheres negras que sentem culpa por vivenciar a mobilidade social
Por Beatriz de Oliveira
25|07|2023
Alterado em 25|07|2023
Quando uma mulher negra acessa espaços que historicamente lhe foram negados uma série de questões podem vir à tona, como a sensação de solidão e de não pertencimento. Ser uma das únicas alunas negras numa sala de aula de curso superior ou ser confundida com a vendedora ao visitar uma loja são exemplos do racismo estrutural nosso de cada dia.
Quando essa mulher negra ascende socialmente e financeiramente surge um combo de questionamentos. O avanço social pode lhe causar culpa. Culpa por não se sentir pertencente à classe média. Culpa por achar que está traindo sua identidade periférica. Solidão e cansaço por ter sempre que se afirmar em lugares que a branquitude se acha dona. Preta, você se sente culpada? Vem com a gente nessa conversa.
Entrevistamos Ingrid Lúcio, psicóloga clínica e doutora em Psicologia Social, dona de uma tese que aborda os efeitos da mobilidade social da mulher negra. Ingrid também criou o grupo Girassol, em que realiza sessões psicoterapêuticas conjuntas visando o empoderamento real de mulheres.
Além de pesquisar o assunto, a psicóloga vivenciou a mobilidade social e explica: “não é só sobre dinheiro, é sobre acesso a arcabouços, à conteúdo. Mas quando acontece em ordem financeira, existe uma culpa. Existem questionamentos: eu mereço? É justo?”.
O estudo é o principal fator que contribui para a mobilidade social de mulheres negras. Elas formam hoje o maior grupo de estudantes em universidades públicas do país. É o que a ponta a análise de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), de 2019, feita pelos economistas Ana Luiza Matos de Oliveira e Arthur Welle. Mas apenas o acesso à educação não é suficiente.
“É preciso lidar ainda com o estranhamento social. Se você não consegue elaborar isso, corre o risco de não acreditar na sua própria potência”
Ingrid Lúcio
Não é simples ascender socialmente no Brasil, pelo contrário.Estudo divulgado em 2022, pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mostrou que seriam necessárias nove gerações para que os descendentes de um brasileiro entre os 10% mais pobres atingissem o nível médio de rendimento do país.
Mesmo quando conseguem contrariar as estatísticas e alcançar melhores níveis de renda, mulheres negras seguem sendo alvo de violências. O sociólogo Luiz Valério Trindade, autor do livro Discurso de Ódio nas Redes Sociais, identificou que mulheres negras jovens e em ascensão social são as principais vítimas de ataques racistas no ambiente virtual.
“A identidade nacional brasileira foi construída em cima de uma supervalorização da branquitude, de tal forma que, quando mulheres negras ascendem socialmente, (…) isso causa um estranhamento em pessoas que nutrem ideologias discriminatórias”, disse em entrevista concedida em 2022 para O Humanista, jornal laboratório da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Há caminhos para não se sentir culpada por novos acessos. Um deles é estar entre pessoas negras com as quais se sinta confortável e outra possibilidade é praticar uma regulação emocional. Outro ponto é a identidade: “é importante honrar esse lugar de mulher periférica, porque a forma que a gente lida com o cotidiano tem a ver com a bagagem periférica” pontua Ingrid.
Nós: Quais fatores são determinantes para a mobilidade social de mulheres negras?
Ingrid Lúcio: O estudo é a base principal, mas não é só isso. O senso de pertencimento é importante especialmente para as mulheres negras, porque somos educadas a sermos fortes e cuidadoras. Na lógica da pirâmide social, a mulher preta está na base. Então, é desafiador. Quando está estudando já percebe que está sozinha, olha ao redor e só tem ela, mais uma ou duas pessoas pretas.
Mobilidade social não é só através do dinheiro, é sobre acesso a arcabouços e a conteúdo. Mas quando acontece em ordem financeira nasce uma culpa. Existem questionamentos: eu mereço? É justo? Por isso, digo que a mobilidade social não é só através do estudo. Temos que fazer um processo de autopermissão, que chega na ideia de não se sentir culpada pelo seu sucesso, de se permitir ser merecedora.
É preciso lidar ainda com o estranhamento social. Não apenas o seu estranhamento, de olhar ao redor e não ver pessoas pretas. Mas, também, com o fato de você entrar num lugar e as pessoas levarem um susto. Se você não consegue elaborar isso, corre o risco de não acreditar na sua própria potência. Por isso, junto com o estudo, é necessário trabalhar um arcabouço psicossocial.
Nós: Como essas mulheres lidam com o estranhamento dos brancos a partir dos novos espaços sociais?
Ingrid Lúcio: Cada uma tem a sua estratégia. Na tese chamo de estratégias de resistência. Algumas mulheres frequentam os mesmos lugares, pois passam a ser conhecidas e isso diminui o risco de sofrerem situações de discriminação racial. Existe a estratégia da pessoa entender que tem que se arrumar muito a todo tempo para ser ‘aceita’. Há ainda o desafio de ter uma adaptação ao ambiente de classe média e não se ver embranquecendo.
Quando ocorre esse movimento de mobilidade social, existe a importância de alimentar o senso de pertencimento, que é o aquilombamento. Estar entre pessoas pretas, com as quais a sua conversa flua. Não é sobre abandonar sua galera de origem periférica. É se permitir transitar entre esses lugares com mais orgulho, não se sentindo traindo os seus. Esse movimento não é fluido, é preciso prestar atenção em como cultivar essa nova identidade.
Nós: Como fica a identidade da mulher negra que ascendeu socialmente? Continuam se identificando como periféricas?
Ingrid Lúcio: Isso é um pouco perigoso, porque você às vezes força a barra para estar em um lugar que já não está mais. Vou dar o exemplo de uma mulher negra que eu atendia. Ela era doutoranda na época. Numa das nossas consultas, quando abri a porta, ela estava conversando com uma faxineira, também negra, e em determinado momento disse: “pois é menina, pra gente que é pobre não dá pra ficar pagando essas coisas”.
Ela trouxe essa situação para a sessão. Eu falei pra: “acho que você precisa ter cuidado para não parecer desrespeitosa”. Era totalmente natural ela se colocar num lugar de igual, só que ela não era mais igual.
É importante honrar esse lugar de mulher periférica, porque a forma que lidamos com o cotidiano tem a ver com a bagagem periférica. Mas se afirmar como mulher periférica pode parecer desrespeitoso para o outro que está ouvindo.
Então, podemos pensar em uma identidade que tem noção de vivência com questões periféricas, mas que, no momento atual, não está vivendo essa realidade. Vale se afirmar como mulher periférica numa lógica de origem e de representação social. Mas carregamos signos que informam que não estamos mais na periferia, por isso, é importante ter cuidado.
Nós: Você faz parte do grupo de mulheres negras que viveram a mobilidade social. Pode contar um pouco sobre a sua experiência atual?
Ingrid Lúcio: Quando me apresento nos vídeos que posto nas redes sociais faço questão de falar que sou doutora em Psicologia Social. Mas quando alguém entra em contato comigo prefiro não ser chamada de doutora, porque a ideia é ter vínculo e conexão. Faço isso por acreditar na micropolítica, para outras mulheres negras verem mulheres pretas doutoras. E também para pessoas brancas verem mulheres pretas doutoras.
Hoje, o meu valor de sessão é alto, tenho poucas vagas no consultório e toda a minha bagagem faz sentido para isso. Em um primeiro momento me questionei sobre me posicionar nesse lugar. Também faço trabalhos em grupo, que têm valores mais acessíveis. E faço lives semanais, que são gratuitas. Então, quem não pode me acessar financeiramente, têm acesso dessa forma, e eu apareço para essas mulheres, o que é importante.
Nós: Têm alguma dica para mulheres negras que estão ascendendo agora e lidando com as questões que conversamos até aqui?
Ingrid Lúcio: Sugiro pensar de maneira ativa em como se manter sob a influência de mulheres pretas. Então, vale escolher quem vai seguir nas redes sociais. Escolher perfis de mulheres pretas que você admira e que te ajudam a se sentir no caminho, é uma forma de psicoeducação. Essa lógica da identificação é muito importante. Juntar a um aquilombamento presencial também é interessante.
Quero trazer um exemplo pessoal. Sempre tive um cabelo alisado, desde criança. Quando fui fazer a transição capilar, há mais de 10 anos, não tinha noção de como era o meu cabelo e não tinha acesso a ninguém de cabelo crespo. Então, busquei me apaixonar pela minha beleza e comecei a seguir várias youtubers de cabelo crespo.
Fui me apaixonando por aqueles cabelos e, quando percebi, estava super ansiosa para cortar o meu. Durante esse processo de ascensão, para se sentir pertencente e potente, essa identificação é fundamental.
Outra coisa: preste atenção se você sente vergonha em ser bem sucedida. Neste lugar você acaba acreditando que não pode, não por falta de potência, mas por achar que está cometendo uma traição. Olhe com atenção a vergonha ou a culpa que possa aparecer simplesmente por caminhar na direção dos seus sonhos.
Por isso, trago a questão da regulação emocional como um ponto forte, é importante para seguir em frente. Não em uma lógica de ignorar a culpa e o medo. Mas sim para se olhar com carinho e pensar em como fazer um melhor manejamento dessas emoções.