cartazes

Grafiteiras apontam machismo em mostra de artes no Itaú Cultural

Exposição “Além das ruas: histórias do graffiti” é criticada por falta de obras de artistas negras e pela escolha do curador

Por Beatriz de Oliveira

12|07|2023

Alterado em 12|07|2023

Em entrevista ao Nós, mulheres da periferia, grafiteiras apontam que a exposição “Além das ruas: histórias do graffiti” foi construída por uma perspectiva masculina e branca. As principais críticas são: ausência de obras de artistas negras e indígenas, desrespeito com o trabalho das poucas que foram convidadas e a escolha por um curador considerado misógino pelas entrevistadas, o grafiteiro Binho Ribeiro.

Realizada pelo Itaú Cultural, a mostra foi aberta no dia 06 de maio e ficará disponível até 30 de julho, na Avenida Paulista, região central de São Paulo (SP). Segundo o site da instituição, a pretensão é apresentar ao visitante as obras de grafiteiros, técnicas diversas, e “recortes históricos em uma linha do tempo que apresenta a riqueza da arte que vem das ruas”.

No último domingo (09), grafiteiras protestaram contra o apagamento gerado pela exposição. Ocuparam o Itaú Cultural com cartazes que diziam “Itaú financia machismo”, “histórias do apagamento” e “mulheres artistas resistem”. Houve também a leitura de um manifesto escrito pela Rede Grafiteiras BR.

“Toda quebrada é matriarcal, máximo respeito à tática comunitária do acolhimento! Saudamos sua atuação e memória política e recusamos a conciliação cara-pálida com as instituições e sujeitos financiados que se autodeclaram curadores, há décadas promovendo, sistematicamente, o projeto de apagamento das histórias do fundão e de forma mais grave em relação às mulheres periféricas, racializadas e dissidentes de gênero”, diz um trecho do texto.

Apagamentos

Quando visitou a exposição, a grafiteira Carolina Itzá se incomodou com a falta de mulheres periféricas entre os participantes e com a forma que a história foi contada. Postou suas indignações em stories de seu perfil do Instagram e recebeu mensagens de outras artistas que concordaram com suas falas.

Junto a integrantes da Rede Graffiteiras BR, Carolina Itzá organizou uma live para abordar o assunto. O vídeo, segundo ela, ganhou repercussão nacional entre os amantes da arte de rua. Devido a ameaças e agressões verbais recebidas em seu perfil, a grafiteira apagou o conteúdo.

Outra postagem que ganhou repercussão foi um vídeo com um trecho do documentário “Entre latas e lutas”, de 2018, em que o curador Binho Ribeiro comenta suas percepções sobre mulheres que grafitam. “Quando a menina decide ser grafiteira, provavelmente ela não vai ter muito tempo pra fazer o cabelo, pra fazer a unha”, é uma das falas.

Carolina Itzá considera que a exposição contribui para um imaginário social do graffiti sem a participação de mulheres periféricas, gerando um apagamento histórico. “A gente luta principalmente para reaver uma memória política do graffiti. Para se lembrar, por exemplo, que as bases do hip hop são geradas pela força do movimento das mulheres nas periferias. São essas pontas que a gente quer ligar, e que foram sendo cortadas por essa visão hegemônica do graffiti”, afirma.

Há também um apagamento regional, com a concentração de artistas da região sudeste, excluindo grafiteiros de outras regiões do país. “A minha maior crítica em relação à exposição é justamente como ela traz a questão do graffiti nacional. Então, cadê as pessoas do nordeste e do norte nesta exposição?”, pontua a grafiteira pernambucana Nathê Ferreira.

Para Carolina Itzá, a mostra alimenta ainda uma visão “higienizada” do graffiti, a qual contribui para que tudo que está continue sendo criminalizado. “O que tem se colocado dentro dessas exposições é uma forma de grafite muito higienizada, gourmet, centrado num ponto de vista gringo mesmo, do spray, e aí apaga toda uma diversidade”, explica.

A artista prosseguiu sua defesa destacando aspectos que considera fundamentais na cultura da qual faz parte. “No Brasil, as intervenções urbanas começaram com o rolinho e materiais de baixo custo, com as coisas que a gente tinha na periferia, e foram se desenhando de diversas formas. E essas exposições exaltam paleta de cores e um preciosismo técnico que chega a ser vazio”, conclui.

Para as integrantes da Rede Graffiteiras BR, diante dos apagamentos gerados pela exposição, é necessário que sejam articuladas reparações a longo prazo.

Obra incompleta

Entre os 51 artistas que têm obras expostas na mostra, há apenas três mulheres negras. Uma delas é a multiartista Soberana Ziza. Ela conta que, ao ser convidada para participar, não recebeu muitos detalhes sobre como a mostra seria organizada. Foi informada de que o registro de um trabalho seu seria usado para representar “o processo da pintura”. Era uma foto da obra incompleta.

A grafiteira imaginou que a foto seria colocada junto a outras imagens de obras de artistas em processo de pintura. No entanto, quando visitou a exposição, não foi isso que encontrou. Havia apenas a foto da sua obra incompleta, sem menção clara a um “processo de pintura”. Graffitis de outros artistas apareciam já finalizados ou com as imagens do processo e da pintura final.

“A exposição não registrou a potência da minha obra. Poderia ter colocado um processo sim, mas também a obra final. Nenhuma outra obra lá é apresentada em um início, no rabisco”, afirma.

Soberana Ziza pesquisa o apagamento de mulheres na arte e sente que, nessa situação, está vivenciando o tema de seus estudos: sendo invisibilizada enquanto artista numa exposição em local renomado. “Já pensei em retirar a obra, mas aí ficaria mais apagada ainda”, diz.

Sobre o curador e as escolhas feitas por ele, afirma: “é um universo dos pioneiros, essa turma que iniciou esse movimento e que não conseguiu ainda entender todo esse movimento que a gente faz sobre garantia dos direitos, de acesso a todos os lugares. O que a gente não vai é se calar. Esse universo é muito machista, misógino e preconceituoso”.

Pintura recortada

Nene Surreal é outra integrante da exposição “Além das ruas: histórias do grafiti”. Assim como Soberana Ziza, também se sentiu lesada como artista. Sua obra foi colocada em local “escondido” e foi recortada, não aparece por completo. Por não querer vivenciar mais de perto a dor que esse apagamento lhe causa, decidiu não visitar a exposição.

“A galera [que visitou] começou a me mandar a obra que ele tinha escolhido. Além de estar recortada, ainda pega a beiradinha do trampo de duas pessoas. A galera falou para mim que é a maior dificuldade para achar o meu trabalho, meu trabalho tá lá no fundo”, diz.

A grafiteira conta que, quando recebeu o convite para participar da exposição, desconfiou que não gostaria do resultado, por já ter se decepcionado em parcerias anteriores com Binho Ribeiro, mas aceitou por estar vivenciando uma escassez de propostas de trabalho. Então, mandou para Binho Ribeiro alguns de seus materiais e não recebeu mais detalhes. Também não foi chamada para a montagem.

“É isso que os brancos fazem, vão lá e jogam a gente [mulheres negras] de qualquer maneira só para legitimar o rolê deles”, diz.

Bases negras, holofotes brancos

Apesar do graffiti ser um movimento com bases negras e periféricas, são os homens brancos que alcançam maior destaque nesse meio dentro do contexto brasileiro. É o caso de nomes como Binho Ribeiro e Os Gêmeos. Nene Surreal vive essa indignação em seu cotidiano e compreende as estruturas que possibilitam esse cenário.

O fator financeiro faz parte da explicação. “Uma lata de spray é quase R$30. Para fazer um corre legal assim, pelo menos meia dúzia de lata você precisa ter; pra fazer um trampo grande”, diz.

É preciso entender também o contexto dessa arte de rua no país. “A origem do graffiti no Brasil é rolinho e [tinta] látex. E esses caras [homens brancos pioneiros do graffiti no país] conseguem acessar o spray muito rápido. Eles conseguem o melhor material, eles têm tempo.”, relata Nene Surreal.

“Dentro da cena, tem o movimento de cobrar a técnica, uma técnica implantada por eles. Eu mesma já corri atrás dessa técnica. A gente falava que queria fazer o ‘tracinho dos Gêmeos’”, acrescenta.

Também não deixou de citar o machismo dentro desse meio. “Se um evento tem 50 caras, vai ter cinco manas”, resume.

Outro lado

Em nota enviada ao Nós, mulheres da periferia, o Itaú Cultural declarou que a escolha por Binho Ribeiro como curador se deu pelo seu reconhecimento no campo. “Além de artista em atividade na arte urbana, tanto no Brasil quanto no exterior, ele assina curadorias e produções de mostras como, por exemplo, o Museu Aberto de Arte Urbana de São Paulo (MAAU-SP) – em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura, o Metrô, o Paço das Artes e a Galeria Choque Cultural –, e a 5ª Bienal Internacional de Graffitti Fine Art, que reuniu 60 artistas do mundo inteiro no Memorial da América Latina no ano passado”, diz o texto. Afirma também que o processo de pesquisa para a exposição foi de responsabilidade do curador e a instituição validou a lista de obras.

Sobre o apagamento de mulheres e artistas negros, o Itaú Cultural afirma que “apesar de a exposição apresentar trabalhos de mulheres, pessoas negras e do universo LGBTQIAP+, quando percebemos o alerta das mulheres nas redes sociais, compreendemos que ela poderia ter ido mais a fundo na construção de narrativa”.

Além disso, a nota reforça que convidaram “representantes da cena de mulheres grafiteiras para entender as suas posições. Nesse processo de escuta encontramos, em conjunto, caminhos para trazer o debate para o Itaú Cultural com ações idealizadas entre a instituição e esse coletivo”, acrescenta.

Como medida de reparação, a instituição afirma que fará atividades a curto, médio e longo prazo. “Em um primeiro momento faremos um conjunto de quatro oficinas, que acontecerão ainda com mostra em cartaz, no espaço expositivo. As oficinas buscam contribuir para o fortalecimento da presença de mulheres nas artes de rua. Elas serão realizadas aos finais de semana de julho, sempre às 11h, e os temas são Da rua às roupas: formas de organização e resistência no graffiti na cena das mulheres, no dia 22 (sábado);

Mulheres negras no graffiti e o autorretrato, no dia 23 (domingo), Desafios e ferramentas para iniciar a pintar paredes, no dia 29 (sábado), e Mulher na história da arte: apagamento e apropriação, no dia 30 (domingo)”.