O terremoto e as tragédias que sempre nos atingem
As mais de 20 mil mortes pelos tremores na Turquia e Síria revelam a violência da desigualdade social
13|02|2023
- Alterado em 17|05|2024
Por Sâmia Teixeira
Sob os primeiros sinais de luz do dia, um menininho de camisetinha vermelha, bermudinha jeans, calçando o seu melhor sapatinho, está estirado na praia de bruços, como quem embarcou em um sono profundo. Essa imagem de 2015 é a do menino Aylan Kurdi, de apenas três anos, que se tornou o símbolo da crise migratória na Síria. A cena da criança morta por afogamento, em uma praia na Turquia, impactou o mundo todo.
Naquele mesmo ano, eu me tornei mãe. Apesar de as minhas filhas serem menores à época, era impossível não comparar aquele pequeno corpinho ao delas. Aquela imagem me acompanhou para sempre. Tanto que, oito anos depois, com o terremoto que atingiu a Turquia e a Síria no último 6 de fevereiro, voltei a pensar nele que representou, infelizmente, a tragédia que muitas famílias ainda vivem ou experimentaram nos últimos anos.
E é sobre tragédias e como elas acontecem e como nos afetam que eu penso sempre que elas acontecem.
Vidas e histórias que desmoronam
Naquele mesmo ano da morte de Aylan, pessoas que hoje são muito queridas pra mim chegaram ao Brasil, em situação de refúgio. Muitas, pela segunda vez, tendo de enfrentar novamente a jornada dura e perigosa que é atravessar fronteiras.
No caso das migrações e dos deslocamentos internos na Síria, foram os grupos armados e o regime de Assad os responsáveis pelas mortes ou pela expulsão de centenas de milhares de pessoas de suas casas e territórios. Culpados por histórias que foram deixadas para trás.
O terremoto que abalou a Turquia e a Síria também foi capaz de causar estragos similares. De fazer vidas construídas desmoronarem, literalmente, junto com prédios que viraram montanhas de escombros e pó. São mais de 20 mil mortes – até a sexta-feira (10) – e há previsão de que o número aumente nos próximos dias.
A brasileira Sabrina, que vive na Turquia desde 2019, relatou como foram os primeiros momentos dos tremores que a acordaram durante a madrugada e a fuga em busca de segurança.
A jovem se casou com um turco e está grávida de 30 semanas. O que mais a preocupava durante todo o tempo era sofrer um aborto em decorrência de tanto estresse.
“Eu botava a mão na barriga e dizia: minha filha, pelo amor de Deus, não nasce agora, não vai embora, fica com a mamãe. Eu tentava conversar com ela, porque tive receio de que o meu medo pudesse prejudicar ela”, compartilhou.
Com o marido, ela percorreu cerca de dois quilômetros até chegar ao apartamento do cunhado. Quando chegaram, Sabrina ainda estava com receio de novos tremores e preferiu dormir dentro do carro. Somente no dia seguinte, ela descansou em uma cama confortável.
No caminho, ela pode ver o resultado dos abalos sísmicos. “É uma cena, assim, devastadora. É muito triste”, disse.
Como ocorreu com Sabrina, o terremoto pegou a maioria das pessoas desprevenidas, uma vez que, pelo horário, estavam dormindo em casa. Para piorar, as regiões afetadas na Turquia e Síria possuem condições que intensificaram o impacto da tragédia. Esse tipo de tragédia que atinge em cheio os mais vulneráveis.
Desigualdade mata
Enquanto nas regiões urbanas mais desenvolvidas existe melhor preparo para enfrentar terremotos, como Istambul e Ancara, locais mais afastados, áreas rurais e mais pobres têm construções inadequadas e mais suscetíveis a danos em contexto de tremores de terra, como esse forte terremoto de magnitude 7,8.
A cidade turca de Gaziantep, por exemplo, com sua grande população de 2 milhões de habitantes e construções inapropriadas para suportar terremotos, foi duramente atingida.
Em 2018, às vésperas da eleição, Erdogan anunciou anistia aos responsáveis por construções irregulares. Isso não significou apenas o perdão de dívidas, como tornou regulares todos os imóveis com irregularidades constatadas. Um verdadeiro crime.
Naquele mesmo ano eleitoral, conforme publicou a Folha, “o número de inscrições para a ‘regularização’ passou de 2,6 milhões”. Um prédio residencial, em 2019, desabou e matou 21 pessoas. Este era um dos imóveis que obtiveram a regularização via o tal pacote “bondoso” de Erdogan.
Em troca de votos – ou afago aos empresários e mercado imobiliário -, muitas vidas foram perdidas.
Além disso, o governo recebeu cerca de R$ 4,6 bilhões de dólares com o recolhimento da chamada “taxa de terremoto”, desde 1999, que não parece ter servido para reforçar construções antigas ou prestar apoio urgente às vítimas atingidas.
Em algumas regiões, moradores denunciaram a demora de um dia e meio para que socorristas chegassem.
E por isso, os turcos têm reclamado da falta de assistência, muitos dizem que, se não morreram soterrados, morrerão de fome ou frio.
Em geral, a região sul da Turquia é menos desenvolvida e menos industrializada do que as regiões costeiras do Mar Mediterrâneo e do Mar Negro. Somente essa característica expressa bem as desigualdades sociais e econômicas entre as diferentes comunidades locais.
Pessoas em situação de refúgio
Na parte síria atingida, a situação também é de calamidade, com o agravante de que as pessoas daquela região já viviam em situação de extrema vulnerabilidade, causada por uma guerra de quase 12 anos.
Os refugiados daquela localidade – um território fora do controle do regime sírio – enfrentam desafios duros como resultado do deslocamento interno. Lidam com o desemprego, a pobreza, a fome, dificuldades no acesso à educação e saúde e infraestrutura básica precária. Neste período do ano, sofrem com o inverno rigoroso na região, com tempestades de neve e temperaturas muito baixas.
Com o terremoto, até 5,3 milhões de pessoas na Síria podem ter ficado desabrigadas. A ajuda humanitária tem sido prejudicada tanto pelo difícil acesso à região quanto pelas condições cotidianas impostas pelo regime de Bashar al-Assad. Aliás, depois de quatro dias dos fortes tremores, Assad sequer fez algum pronunciamento solidário com as vítimas.
Rawa Alsagheer, uma amiga palestina nascida na Síria, chegou ao Brasil em 2015. Com familiares que ainda vivem na Síria, ela confirmou que “na região afetada pelo terremoto foram os próprios sobreviventes que resgataram as pessoas presas sob os escombros”.
Por isso, muitas pessoas ainda podem morrer debaixo dos escombros, com fome e frio.
Tragédia para quem?
Infelizmente, em tragédias como essa, muitos outros ainda morrerão vítimas do descaso dos governos e regimes, como o de Assad, que forçam a fuga em massa de populações que apenas buscam viver com dignidade.
É bem comum utilizar a expressão “tragédia anunciada” para descrever eventos dramáticos como o que atingiu a Turquia e a Síria, quando na verdade seriam massacres previstos.
No Brasil, basta “dar um Google” com o termo “tragédia anunciada” e selecionar notícias para relembrar diversos eventos fatais. Mas qual a causa?
Todos os anos acompanhamos o sofrimento dos que perdem familiares com os deslizamentos de terra e enchentes nos períodos de chuvas. Quem se lembra do incêndio no Ninho do Urubu, do avião com pouco combustível – para lucrar – que vitimou os jogadores da Chapecoense? De Mariana e Brumadinho, das vítimas de balas perdidas, do genocídio dos Yanomami ou da invasão dos patriotas em Brasília?
Pode procurar, em todos esses casos, sempre existe a ganância do Estado ou de empresas por trás, seja pelo abandono – em nome do poder-, ou pelo lucro. Ou pelos dois.
A verdade é que é preciso adotar novos termos para essas situações. Pois, como dizem, “é preciso chamar as coisas pelo nome”. Pelo nome real que têm.
Em todas essas ocasiões o que ocorre é uma “tragédia-crime” ou algo do tipo. Porque o “anúncio da tragédia” não é algo que alguém que está vivendo a dura vida, seja na encosta do morro que desliza, no prédio velho e irregular, ou no campo de refugiados, tenha que acolher como mais uma responsabilidade. Afinal, a realidade que pesa nas costas de todos nós que estamos bem aqui embaixo não permite que busquemos lugares mais seguros para viver.
Recentemente, li “As Maravilhas”, de Elena Medel, e há no livro três gerações de mulheres, muito impactadas pela história individual de cada uma, mas ao mesmo tempo conectadas, pela realidade política, social e, principalmente, econômica. Em determinada cena, uma jovem de classe baixa perguntou à María, a personagem mais velha da trama, como era sua militância com outras mulheres na juventude. Quais eram as dificuldades de colocar as opiniões em organizações com pouco espaço de fala para as mulheres. E ela relembrava nesse trecho como era, até determinado ponto de sua vida, importante ter seus pensamentos validados e expostos pelo companheiro que tinha na época, até que impôs a própria voz. E sobre outras mulheres ela disse: “mas nunca encontrei mulheres, quer dizer, mulheres como nós. Como assim como nós, María? Mulheres pobres. Até para protestar é preciso ter dinheiro”.
Que verdade disse María de Medel. Não nos resta tempo para nada, para muitos, nem para protestar. Só resta mesmo um dia após o outro, vencendo mil dificuldades diárias, para ter o básico garantido. Às vezes, para garantir somente a vida.
A classe trabalhadora está cansada de tragédia. Os povos originários, os que migram, os que vivem sob ocupação, guerra, que sofrem com o machismo, racismo, LGBTQIfobia. É essa gente que, andando pelas ruas ou atravessando o mar em um pequeno bote, vivendo em ocupações, nas periferias, no campo, está na mira, na corda bamba, lutando apenas pela sobrevivência.
Não recebemos nada de ninguém de cima, a não ser de quem vive bem do nosso lado, somente dos sobreviventes que lutam pelas vidas de quem sente o peso da realidade opressora, tal qual escombros ou terra que sufoca.
É dever nosso continuar na direção da mudança, porque estamos fartos dessas tragédias.
Não esqueceremos de Aylan, iluminado pela aurora, que partiu de bruços na praia turca, nem do silêncio perceptível na imagem de Mesut Hancer, o pai turco que foi fotografado enquanto segurava a mão de sua filha de 15 anos, a adolescente Irmak, morta sob os escombros.
Que as vítimas fatais da violência, da desigualdade social, do racismo ambiental e dos desastres naturais – provocados quase sempre pelas ações dos poderosos-criminosos – encontrem a paz que merecem, onde estiverem.
É por elas, pelos nossos, que seguiremos.
Sâmia Teixeira é mãe de gêmeas e jornalista. Foi assessora da União Nacional Islâmica, onde criou o jornal Iqra. Atualmente integra a comunicação da Rede Sindical Internacional de Solidariedade e Lutas, escreve sobre movimentos sociais e mundo sindical internacional.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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