‘A bancada evangélica não representa as mulheres evangélicas’
Pesquisadora Simony dos Anjos explica interesses da bancada evangélica do Congresso Nacional e incidência política de mulheres negras evangélicas.
Por Beatriz de Oliveira
10|02|2023
Alterado em 10|02|2023
O perfil evangélico tem importante espaço na política brasileira, tanto é que a bancada evangélica tem força nas votações do Congresso Nacional. No entanto, a frente não representa de fato os interesses da população que segue essa vertente religiosa. É o que constata Simony dos Anjos, antropóloga e pesquisadora da relação entre negritude, igreja evangélica e feminismo.
“Estão negociando nossos direitos enquanto trabalhadoras e trabalhadores por conta das pautas morais, que também são anti-povo”, aponta a integrante da Rede de Mulheres Negras Evangélicas.
A bancada evangélica ou Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional, é o grupo de deputados e senadores que se afirmam como evangélicos e defendem uma série de pautas em conjunto, normalmente são pautas conservadoras, como a criminalização do aborto, a ampliação do uso de armas de fogo e “combate à ideologia de gênero”.
Nas últimas semanas, os integrantes da bancada evangélica enfrentam conflitos sobre a aproximação ou oposição ao governo Lula. Após passar por uma confusão na votação para escolher o presidente da bancada, o grupo decidiu que a presidência será revezada entre os deputados Eli Borges (PL) e Silas Câmara (Republicanos).
Para Simony, essa divisão se dá entre aqueles que querem se beneficiar do apoio cedido pelo governo Lula às suas pautas e aqueles que querem pavimentar caminhos para as eleições do próximo ano, com a inserção na extrema direita.
Em paralelo a isso, a antropóloga aponta que vê um aumento de evangélicos progressistas, principalmente de mulheres negras evangélicas atuantes politicamente. “Nós, que somos progressistas, sofremos muito dentro da igreja evangélica, muitas de nós foram expulsas de suas comunidades”, afirma a pesquisadora se referindo ao governo Bolsonaro.
Segundo pesquisa do Datafolha, de 2019, mulheres negras são o perfil mais comum nas igrejas evangélicas. Mulheres são 58% do total de fiéis e as pessoas negras são 59%.
Para entender a atuação da bancada evangélica e a incidência política de mulheres negras evangélicas, leia a entrevista completa.
Nós, mulheres da periferia – Com o início do governo Lula, integrantes da bancada evangélica entraram em conflito, há quem queira se aproximar da nova gestão e aqueles que querem fazer oposição mais firme. Pode comentar este cenário?
Simony dos Anjos – Os evangélicos da bancada não tem um espectro político. Eles são conservadores, mas a relação deles com o poder é de interesses. Tanto é que, muitos que foram base do governo Bolsonaro e apoiaram o golpe contra a presidenta Dilma, também estiveram com o presidente Lula em 2002, como Silas Malafaia, Eduardo Cunha e Marco Feliciano. Há uma relação de aproximação com o Executivo e de demanda de benefícios dessa relação.
Hoje há uma força grande de extrema direita, que está de olho em fazer oposição ao presidente Lula pensando nas eleições de 2024. Existe uma base propícia para eleger prefeituras e vereadores, para perpetuar esse projeto de poder muito nítido, anti-direitos, anti-pluralista e antidemocrático.
Contudo, na carta que Lula escreveu aos evangélicos, ele dizia que iria apoiar ações sociais das igrejas. Tem uma parte dos evangélicos fundamentalistas que se aproximou do governo com a criação do departamento das Comunidades Terapêuticas, pelo Ministério do Desenvolvimento Social, comandado pelo político Wellington Dias (PT). Ou seja, tem uma parte desses evangélicos que já conseguiu negociar uma fonte de recurso do governo para financiar as suas ações nos territórios.
Nós – Qual a relevância da bancada evangélica no Congresso Nacional? Esta bancada costuma representar de fato os interesses da população evangélica?
Simony dos Anjos – A bancada evangélica costuma negociar apoio às suas pautas morais e de costumes com os apoios anti-direitos de modo geral.
É interessante falar para a periferia, de modo geral muito evangélica, e principalmente para as mulheres negras evangélicas, que esses parlamentares que dizem defender a sua igreja e a sua comunidade lá no Congresso estão votando numa agenda anti-povo.
Estão negociando nossos direitos enquanto trabalhadoras e trabalhadores por conta das pautas morais,. No caso da legalização do aborto, eu costumo dizer que a criminalização do aborto favorece o estuprador. No contexto religioso, existem muitos pastores que abusam das fiéis, e convencem essas mulheres a interromperem a gestação, pagam essa interrupção com o dinheiro dos dízimos da igreja e ainda dizem para elas “se você denunciar isso para alguém, você vai presa por que o aborto é crime”. Um dia eu disse isso numa comunidade religiosa, fazendo essa contraposição com a defesa da vida que a Frente Parlamentar Evangélica faz, e isso fez todo o sentido para aquelas mulheres. O modo como a Frente coloca as pautas morais é de causar pânico, medo e angústia nas pessoas.
Além disso, não é só sobre condenar a pluralidade de corpos, de religiões, é sobre também por meio de alguns projetos de lei, conseguir recursos para financiar suas próprias organizações. Quando fundamentalistas religiosos conseguem financiar essas organizações, eles estão fazendo um trabalho de base no território, mobilizando pessoas, aumentando o seu capital político, aumentando o seu poder de influência na vida dessas pessoas e, portanto, conseguindo ser eleitos nas próximas eleições.
A minha opinião pessoal é que a bancada evangélica não representa as mulheres evangélicas e o interesse do povo evangélico em suas ações. Contudo, quando a gente vai olhar para o discurso religioso, essas bases se sentem representadas pelas pessoas que estão lá.
A esquerda errou muito nos últimos anos por criar uma homogeneidade evangélica que não existe.
O grande desafio que nós temos é nos vincular às cicatrizes desse povo, que é o que o Luiz Inácio consegue fazer e que a gente ainda não criou uma metodologia na esquerda. Se eu não converso com as cicatrizes e com as necessidades do povo, vai ter um charlatão que vai conversar com a fé dele.
Nós – No artigo “Coletivos de mulheres negras evangélicas e a disputa pelo espaço público da religião” você afirma que há crescimento de grupos evangélicos no campo progressista, incluindo mulheres negras evangélicas e feministas. Pode explicar esse cenário?
Simony dos Anjos – Eu vejo hoje que o aumento dos evangélicos progressistas é efeito das políticas afirmativas do governo Lula. Temos que considerar a escolarização, o aumento da inserção de jovens na universidade, espaços de cultura, a possibilidade desses jovens circularem fora dos contextos religiosos. Por exemplo, na Rede de Mulheres Negras Evangélicas, que eu faço parte, a maioria de nós é fruto de políticas públicas de entrada na universidade. A partir das ferramentas que a universidade trouxe, a gente começou a questionar por outras vias o nosso contexto religioso.
Outro ponto importante são as redes sociais, que trouxeram circulação de um discurso feminista e antirracista. Se por um lado, o acesso à internet aumentou a capacidade de compartilhamento de fake news, também aumentou a produção de pessoas evangélicas que discordam em certa medida das posturas conservadoras e reacionárias. Há pessoas que acabam tendo impacto nas bases, como a Priscilla Alcantara e a Patrícia Ramos [influenciadoras evangélicas].
Nós – Como deve ser a incidência de mulheres negras evangélicas na política durante o governo Lula e quais as pautas reivindicadas pela Rede de Mulheres Negras Evangélicas?
Simony dos Anjos – Nossa incidência tende a se aproximar dos movimentos sociais populares, porque o que a gente enxerga dentro das nossas igrejas é a falta de moradia, o genocídio preto nas periferias, o racismo exacerbado.
Mas, para além da incidência pública, a nossa principal tarefa agora tem sido de acolhimento.
Junto com a politização e construção das narrativas críticas dentro das igrejas, há um sofrimento muito grande, um sentimento de inadequação dessas mulheres. O sofrimento mental das mulheres negras evangélicas é muito grande.
Passamos quatro anos na retenção dos ataques bolsonaristas. Nós, que somos progressistas, sofremos muito dentro da igreja evangélica, muitas de nós foram expulsas de suas comunidades. Nós avaliamos que esse ano é de autocuidado, vamos focar no bem viver e no acolhimento de mulheres evangélicas.
Outro desafio que a Rede se coloca é produzir letramento racial dentro das igrejas. Temos a reivindicação da efetivação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008 [que tornaram obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas]. A partir do momento que essas leis se efetivarem nas escolas, vai ser mais fácil conversar sobre racismo nas igrejas.