Como o governo Lula vai abordar a pauta racial?
Segundo historiadora Ana Flávia Magalhães, governo deve ter disposição genuína para não repetir erros de gestões passadas, ao passo que movimento negro propicia ampliação da consciência racial à população
Por Beatriz de Oliveira
30|11|2022
Alterado em 30|11|2022
Sob um governo que incita o ódio e nega a existência do racismo, a população negra brasileira viveu nos últimos quatro anos cenários de privação de direitos e insegurança. Mas a exclusão do povo preto da plena cidadania não é novidade. Pelo contrário, tem sido a regra na história do Brasil até aqui. O que nos leva a pensar: qual será o tratamento dado a nós pelo governo nos próximos quatro anos?
Para abordar perspectivas da população negra no governo Lula e entender paralelos do momento atual com outros momentos históricos o Nós, mulheres da periferia conversou com Ana Flávia Magalhães Pinto, professora da Universidade de Brasília (UNB), ativista da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros e da Coalizão Negra Por Direitos.
Para Ana Flávia, não devemos olhar para o enfrentamento ao racismo durante o governo Bolsonaro a partir das ações realizadas por ele. “Se essa fosse a medida, não seria nem mesmo possível dimensionar o tamanho do retrocesso”, afirma e explica que ações do movimento negro e de mulheres negras têm contribuído para o maior conhecimento sobre os efeitos do racismo.
“Considero que a ampliação da consciência racial até mesmo explique por que a rejeição a Bolsonaro tenha sido muito mais acentuada entre a população negra (pretos e pardos) do que entre os brancos”, aponta.
Com a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 1º de janeiro de 2023, o enfrentamento será, dentre outras questões, contra a sub-representação de pessoas negras nos âmbitos de poder. “Não se pode mais insistir no erro de circunscrever o enfrentamento ao racismo basicamente a uma secretaria com status de ministério e a uma fundação dentro do Ministério da Cultura. Os instrumentos do antirracismo devem estar no desenho de toda a gestão pública”, enfatiza.
Além dos momentos em que se vivencia o ódio e repúdio a quem tem pele negra, há outro ponto comum na história do país. Trata-se da resistência e criação de estratégias do povo negro na luta por cidadania, de acordo com a historiadora. Como ensina o ideograma Sankofa -“retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro” – devemos nos apropriar desse legado ancestral para seguir lutando por um Brasil em que possamos viver de fato como cidadãos.
Confira a entrevista completa.
Nós, mulheres da periferia – O quanto retrocedemos em relação ao combate ao racismo nos últimos quatro anos?
Ana Flávia Magalhães – O enfrentamento ao racismo não deve ser medido apenas pelas ações protagonizadas pelo governo. Se essa fosse a medida, não seria nem mesmo possível dimensionar o tamanho do retrocesso, uma vez que a perspectiva do governo Bolsonaro foi de absoluta negação do racismo e de reafirmação da ideia de que a chamada miscigenação seria a garantia, por si só, da democracia racial. Ocorre que, sobretudo nas últimas décadas, a ação de indivíduos e grupos que compõem os Movimentos Negro e de Mulheres Negras tem resultado na ampliação da consciência de que a democracia racial no Brasil é um mito, uma promessa que nunca se cumpriu.
A compreensão do caráter estrutural do racismo na organização da sociedade brasileira tem feito com que um número cada vez maior de pessoas se indigne com os dados da violência policial letal contra jovens negros, com o fato de que pessoas negras tenham morrido por Covid-19 proporcionalmente mais que pessoas brancas, com a maneira como crianças negras foram mais afetadas com o sucateamento da educação, etc. Considero que a ampliação da consciência racial até mesmo explique por que a rejeição a Bolsonaro tenha sido muito mais acentuada entre a população negra (pretos e pardos) do que entre os brancos.
No momento atual, além de explicitar as graves violações de direitos humanos cometidas e estimuladas pelo governo, devemos ampliar o reconhecimento da ação política daquelas e daqueles que não permitiram que os danos fossem ainda maiores.
Precisamos ser cada vez mais capazes de identificar como ativistas negras/os têm sido capazes de confrontar o racismo nos mais diversos espaços, a exemplo das ações impulsionadas pela Coalizão Negra por Direitos, que articula centenas de organizações em todo o país.
Nós, mulheres da periferia – Vivemos um período de incitação ao ódio e repúdio às diferenças. Podemos fazer uma comparação do momento atual vivido pela população negra com outros momentos históricos?
Ana Flávia Magalhães – Em 2022, alcançamos a marca do Bicentenário da Independência do Brasil, ou seja, há duzentos anos o Brasil é uma nação que responde por si perante o mundo. Ocorre que esse período tem sido marcado por projetos sucessivos de interdição de cidadania à maioria do povo brasileiro. É preciso lembrar que nem sempre todos os cidadãos brasileiros foram iguais perante a lei e que a exclusão foi uma deliberação consciente de vários representantes de grupos concentradores de renda, terra e poder. Ou seja, temos um acumulado de experiências de ódio e repúdio aos apontados como “os outros”, os diferentes.
No século XIX, conforme aumentava o número de gente negra livre e liberta na sociedade brasileira, mais se verificava o estabelecimento de medidas de controle social ou mesmo interdição à cidadania plena. A exclusão de analfabetos e pessoas de baixa renda do direito político do voto se deu por meio de uma reforma eleitoral em 1881. Com o fim da legalidade da escravidão, há um agravamento da prevenção da participação popular no jogo político, da exclusão da população negra para as periferias e favelas dos centros urbanos, do controle do acesso à educação, etc. Isso se deu justamente num momento em que assistia uma intensa mobilização popular em prol de sua cidadania.
Os estudos históricos sobre liberdade negra durante a escravidão e no pós-abolição têm evidenciado uma série de episódios em que indivíduos e grupos negros agiram em defesa de sua cidadania e confrontaram projetos de exclusão. Por força da negação do racismo, a memória dessas ações não foram priorizadas, comprometendo o entendimento de como se deu esse desmonte da escravidão sem a garantia de igualdade efetiva entre todos. Trata-se de um equívoco que não devemos deixar se repetir na atualidade, uma vez que uma movimentação intensa tem sido feita pela população negra por respeito, justiça e dignidade.
Nós, mulheres da periferia – O que a composição de transição do governo Lula nos mostra sobre a participação que pessoas negras terão em sua gestão?
Ana Flávia Magalhães – Assim como toda a sociedade brasileira, o governo Lula ainda padece dos vícios resultantes da naturalização do racismo.
Historicamente, os governos brasileiros mais negaram a gravidade das desigualdades raciais do que as combateram. Nesse sentido, há muita chance de o governo Lula repetir erros antigos. Será necessária uma disposição muito genuína para aprender com os equívocos das gestões anteriores, no sentido de superar a desnaturalização da ausência ou da sub-representação negra em espaços de decisão.
Não se pode mais insistir no erro de circunscrever o enfrentamento ao racismo basicamente a uma secretaria com status de ministério e a uma fundação dentro do Ministério da Cultura. Os instrumentos do antirracismo devem estar no desenho de toda a gestão pública.
Nós, mulheres da periferia – Quais devem ser as principais pautas reivindicadas pelo movimento negro no futuro governo Lula?
Ana Flávia Magalhães – A garantia do direito à vida é central para a população negra. Isso implica ações incisivas de combate à fome e ao desemprego, bem como a construção de uma política de segurança pública fundamentada no antirracismo. Também se desdobra no fortalecimento e na completude do projeto do SUS [Sistema Único de Saúde], uma vez que 70% dos usuários do sistema são negros. Além disso, a garantia da educação pública, gratuita e de qualidade em todos níveis, é essencial para a retomada de mudanças que garantam condição de exercício pleno de cidadania para todos. A titulação de terras quilombolas também é outra prioridade.
Nós, mulheres da periferia – Quais aprendizados podemos resgatar do passado brasileiro para fortalecer a população negra em suas lutas hoje?
Ana Flávia Magalhães – Desde antes da independência brasileira, homens e mulheres negros têm se dedicado a projetos de sociedade em que o respeito à vida de todos e todas seja possível. Esses esforços não se deram sob as sombras ou no subterrâneo da história. Isso se revela nas irmandades religiosas, nos terreiros de candomblé, nos clubes sociais, nos sindicatos, nas iniciativas educacionais, etc.
Ao longo do tempo, a população negra tem se feito um agente constante e estratégico nas lutas por cidadania. Precisamos nos apropriar desse repertório para defender com mais segurança o nosso direito de nos beneficiar dos resultados de nossos esforços coletivos.