A COP 27 acabou. E agora, José?
A COP terminou frustrando as expectativas de ativistas e representantes dos países em desenvolvimento que são por consequência, os mais afetados pelas mudanças climáticas. Isayana Oliveira, especialista em clima e racismo ambiental explica o porquê.
22|11|2022
- Alterado em 17|05|2024
Por Isayana Oliveira Silva
É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. Este provérbio africano que nos faz pensar sobre unidade e responsabilidade coletiva, aponta o caminho para compreender a nós mesmos como parte de um todo indivisível e ao mundo como parte de nós. Se estamos doentes, o mundo também está.
Se o mundo adoece, adoecemos também. Mas quem adoeceu o mundo?
A Conferência das Partes como é a chamada a COP, terminou sua vigésima sétima edição frustrando as expectativas de ativistas e representantes dos países em desenvolvimento que são por consequência, os mais afetados pelas mudanças climáticas. Mas ao que parece, não frustrou os 636 representantes das grandes corporações de combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão), numa clara demonstração da influência das indústrias de combustíveis fósseis nas negociações do clima dentro e fora de Sharm el-Sheikh.
A COP 27 chegou ao fim com a decisão chamada de “Plano de Implementação Sharm El-Sheikh” que engloba a criação de um fundo para financiar as soluções para perdas e danos sofridos por países em desenvolvimento e a designação de um comitê de transição que estabelecerá, a partir de 2023, as regras e recomendações para a implementação e operacionalização do fundo, definindo os mecanismos de doação e acesso aos recursos.
Se por um lado, a espera pela criação de um fundo de perdas e danos acabou depois de 30 anos, por outro, não houve esforços dos 196 países membros da Convenção do Clima da ONU e dos 193 países membros do Acordo de Paris para definir uma meta de financiamento, tão pouco foram definidas que tipo de medidas serão adotadas pelos maiores poluidores do clima para reduzir gradualmente as suas emissões de gases do efeito estufa. Ou seja, os países ricos não deram indícios de que efetivamente vão abandonar o uso de combustíveis fósseis de suas economias e do seu modelo de desenvolvimento baseado na lógica colonial da exploração de territórios e populações africanas e latino-americanas, da dependência das economias dos países em desenvolvimento e de tratar a natureza como um grande almoxarifado em que se tira tudo o que se precisa.
Do lado das grandes corporações, expressões como “mix de energias limpas” e “eliminar subsídios ineficientes” foram usadas para suavizar e substituir a urgência em constar expressamente e com toda as letras a eliminação do uso de combustíveis fósseis. Assim, quem saiu ganhando foi o mais novo especulador: o mercado de carbono, que teve definidas as suas regras de operação e os instrumentos necessários para a sua implementação.
O Mercado de Carbono é o sistema de compensações de emissão de carbono por meio da aquisição de créditos de carbono por empresas que não atingiram suas metas de redução de gases de efeito estufa, daqueles que reduziram as suas emissões e está previsto no artigo 6º do Acordo de Paris. Escurecendo a questão, o mercado de crédito de carbono é o novo espelho que outrora os colonizadores deram de presente aos povos originários, para distraí-los enquanto destruíam sua terra: é a permissão para que empresas continuem poluindo e degradando um determinado local enquanto financiam, por exemplo, um projeto de restauração florestal numa comunidade tradicional, plantam eucalipto ou pagam por serviços ambientais, compensando assim seus danos ambientais com a compra de certificados de crédito de carbono provenientes das atividades de “restauração da natureza” que financiam em determinado lugar. É a ideia de que a emissão de gases pode ser neutralizada por ações que estimulam a absorção de carbono em outro lugar. Ou seja, pagar para poluir.
Mas, quem ainda tem floresta suficiente e biodiversidade capaz de neutralizar as emissões dos grandes poluidores na lógica mercadológica? África, Ásia e América Latina.
Com o mercado de carbono, apoiado pelas principais empresas de petróleo e mineração, nossas florestas terão sua capacidade de absorção de carbono colonizada pelas grandes corporações, ignorando-se como de costume, toda a cultura, espiritualidade e os ecossistemas presentes e todas as funções vitais para manter as presenças invisíveis que sustentam a água e o solo.
A sociobiodiversidade dos povos da floresta, das matas, da terra e das águas são os saberes e as práticas que permitem a preservação do equilíbrio da terra. Por isto, não há reparação de danos sem a proteção dos direitos das comunidades e sem mudar a chave do crescimento econômico para o decrescimento baseado na redução da produção e consumo. O Relatório de Lacuna de Circularidade 2021 apontou que 70% das emissões globais de gases do efeito estufa estão diretamente ligadas á extração, produção, manuseio e destinação dos materiais que consumimos. Todo este processo tem como base a utilização de combustíveis fósseis, base do modelo de desenvolvimento capitalista e racista.
A resposta para o Brasil é ouvir as propostas do seu povo na sua diversidade cultural e territorial.
©Isayana Oliveira
Por que não substituir o Acordo de Paris, pelo Acordo do Quilombo da Liberdade, do Quilombo da Onça e da Favela da Maré? As populações negras no campo e nas cidades sabem que a solução passa pela construção de redes comunitárias de cuidado com sua gente, de regeneração e reprodução sustentável de seus territórios dos quais se sentem parte e mantém uma profunda relação.
A cosmovisão africana desde longe nos ensina que é preciso cultuar as forças da natureza como divindades dentro de nós, como Orixás. Gente também é floresta.
Da mesma forma, Guimarães Rosa escreveu que o sertão está dentro da gente: lua clareando a linha do horizonte, verde e sol depois da chuva, sabiás cantando, o silêncio da noite, o cheiro do mato, uma árvore morta ainda de pé, maracujá doce no fundo do quintal, a coragem do carcará, o tronco do jurema, as palmas da mão fazendo o som do tambor na mata, pés no chão, o sol do meio dia, o cheiro de terra molhada, a fruta madura na altura das mãos, rio encontrando o mar, alegria de cachorro, ninho de pombinha no alto da árvore, lilás e laranja do fim de tarde, peixe no rio, guarás avermelhando o céu, a flor do mandacaru.
O clima é transversal e não uma natureza separada de nós. Então é preciso uma mudança sistêmica e profunda da sociedade e do seu modelo de desenvolvimento. Não se pode esperar pela COP 28 nos Emirados Árabes – que construíram seu império com o petróleo – para que o Plano entre em ação.
Com a necessidade do agir local, olhando para as cidades brasileiras como um corpo de complexas interações onde diversas responsabilidades devem confluir, é preciso reorganizar os espaços urbanos com solidariedade, cooperação e planejamento ambiental, de modo que os sistemas que os compõem (políticas públicas, por exemplo) estejam em equilíbrio tal que proporcionem bem-estar, inclusão e sustentabilidade.
Na prática, nossas cidades precisam reconstruir laços coletivos e eliminar desigualdades socioambientais e de acesso à terra como o primeiro passo para superar a crise climática. Um povo desigual e marcado por violências e vulnerabilidades não é capaz de construir estratégias de mitigação e adaptação, tão pouco participar de forma justa da transição energética de que o Brasil e o mundo precisam para conter a crise social do clima.
É preciso superar os marcadores de raça, classe e gênero que constituíram as desigualdades e decidem quem vive e quem morre no Brasil, seja de fome, seja de bala, seja de chuva, seja de seca. O país acumula uma grande quantidade de refugiados do clima, fruto do racismo ambiental desde os retirantes do sertão até as famílias forçadas a se deslocarem para fugir de enchentes e deslizamentos, ocupando inclusive novas áreas que as expõem a mais riscos sociais e ambientais. O único debate possível deve começar pela racialização da crise social e, portanto, climática e pela construção de soluções coletivas e políticas a partir do protagonismo e proteção das populações quilombolas, indígenas, ribeirinhas, de agricultores familiares, comunidades extrativistas e população periférica. Só assim, as possibilidades e soluções florescerão.
Muito se tem dito sobre reconstruir o país, mas a resposta para o Brasil é ouvir as propostas do seu povo na sua diversidade cultural e territorial, investindo recursos púbicos e privados para que as comunidades no campo e nas cidades fortaleçam sua autonomia e autogestão, construindo, dessa forma, a territorialização das soluções, rompendo a lógica de que as prioridades políticas sejam definidas por raça e classe.
A reposta está na agroecologia, no lixo zero, na reparação integral de perdas e danos, na transição energética justa, na soberania e autonomia alimentar, na gestão comunitária dos territórios e em deixar o petróleo no subsolo.
Isayana Oliveira Silva Isayana Oliveira Silva é líder no Climate Reality Leadership Project, consultora Lixo Zero, jurista pelo Clima (LACLIMA) e pesquisadora de temas como resíduos e clima, racismo ambiental, agroecologia e Justiça Ambiental.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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