Arte e resistência na Ucrânia: a jornalista Sâmia Teixeira apresenta as artistas Dasha Molokoedova, Katya Gritseva, Masha Pronina e Olga Lisowska.
Texto da colunista Sâmia Teixeira.
Sâmia Gabriela Teixeira é mãe de gêmeas e jornalista. Foi assessora da União Nacional Islâmica, onde criou o jornal Iqra. Atualmente integra a comunicação da CSP-Conlutas, escreve sobre movimentos sociais e mundo sindical internacional.
Atualizado em 16|08|2022
A agressão russa contra a Ucrânia, que já dura mais de cinco meses, não foi e não tem sido o único problema sério e de impacto humanitário no mundo. Nos últimos dias, bombardeios israelenses mataram ao menos 43 palestinos, sendo 15 crianças e quatro mulheres, segundo dados coletados em 7 de agosto de 2022 nos site da Al Jazeera -, mas tem tido bastante impacto no cenário global político e econômico e, sobretudo, na vida das pessoas comuns como nós, ainda que, em alguma medida, tenha caído na banalização e normalidade de tempos difíceis que experimentamos.
Por ter tido a oportunidade de acompanhar algumas ações militantes de apoio à resistência operária ucraniana, tive contato com alguns materiais gráficos impressionantes que me levaram a seguir perfis de artistas daquele país de diferentes estilos e inspirações, mas de modo geral questionadoras, humanas e, maior parte delas, com viés abertamente de esquerda.
São artistas que eu gostaria que muito mais pessoas conhecessem. Apresento-lhes: Dasha Molokoedova, Katya Gritseva, Masha Pronina e Olga Lisowska.
Para muitos daqui do Brasil, pode parecer bem difícil a associação dessas características mais subversivas com o povo da Ucrânia. Mas é por ignorância nossa. Simples assim.
O povo que luta na Ucrânia é combativo e há importantes organizações de esquerda no país, ainda que haja forte censura do Estado.
A resistência contra a ocupação russa hoje é formada por trabalhadoras e trabalhadores, muitos deles com posicionamento revolucionário de esquerda. Setores progressistas do Brasil desconhecem ou desconsideram essa característica, caindo na frágil narrativa de que existe algum movimento russo naquela região contra o nazismo, como engambela Putin.
Para uma dessas artistas ucranianas, o sonho e a arte se fundiram como expressão do que é resistir aos horrores de uma guerra. Quando conheci a obra dela, reafirmei minha percepção do que significam nossas vivências de sono profundo, me fez pensar no quanto é importante considerar as expressões mais subjetivas e profundas que carregamos, sobretudo nos momentos de mais inquietação íntima.
A jovem Olga Lisowska, de Kharkiv, tem 29 anos e deu início às práticas artísticas ainda aos 16. Em uma pintura recente de sua série, intitulada “Dreams Made of Red” (Sonhos feitos de vermelho), ela retrata um sonho, baseado em sua experiência com os bombardeios aéreos russos contra sua cidade natal.
A arte, tal como o sonho, não precisa se limitar ao coerente, ao equilibrado e censurado. Talvez, por isso, seja um catalisador tão capaz de bem exprimir sentimentos e, consequentemente, de possibilitar leituras importantes do mundo externo passado, presente e, como nos instiga o neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro, por que não, o futuro?
Enquanto eu aguardava o retorno das artistas entrevistadas, iniciei a leitura de “Sonhos no Terceiro Reich”, de Charllote Beradt, que traz relatos de sonhos coletados até 1939, quando a autora deixou a Alemanha, nos momentos críticos e devastadores da ascensão do nazismo.
Beradt descreve muito bem o que acredito existir atrás da obra de Lisowska. Para a autora, diferente de uma exposição consciente, quando mergulhamos profundamente no sono trazemos relatos muito mais concretos e reveladores.
“Quem resolve escrever um diário o faz de propósito; a pessoa dá forma às ideias, ilumina-as ou as encobre ao redigir. Mas sonhos, parecidos com diários noturnos, por um lado, pareciam registrar minuciosamente, como sismógrafos, o efeito, no interior da pessoa, de acontecimentos políticos externos; por outro, derivavam de uma atividade psíquica involuntária. Dessa forma, sonhos poderiam ajudar a interpretar a estrutura de uma realidade prestes a se tornar um pesadelo”, expôs no livro a autora.
Sobre “Sonhos feitos de Vermelho”, cheguei a imaginar que a cor da obra carregasse algum sarcasmo ou denúncia quanto ao posicionamento político e ideológico do governo russo, que se coloca à esquerda, e que tenta manter algum kitsch dos tempos soviéticos. Mas a artista contou que a cor vermelha de seu trabalho representa, simplesmente, sangue e fogo. Retratam as memórias dos ataques e das mortes das vítimas da guerra.
Lisowska retratou seu pesadelo em série intitulada “Sonhos Feito de Vermelho”.
“Quanto à Rússia ser vista como um país de esquerda, acho que está muito mais parecida com a Alemanha nos anos 40. Os discursos de Putin estão totalmente alinhados com os de Goebbels, exceto pelos topônimos”, desmoralizou o chefe do Kremlin a artista.
Toda a família de Lisowska vive hoje em Kremenchuk, região em que houve o criminoso bombardeio contra um shopping lotado, em 27 de junho. “Eu me preocupo muito com eles, especialmente depois desse ataque”, relatou.
Lisowska gosta de diversidade e liberdade em suas obras. Utiliza spray, lápis. Gosta dos acidentes, busca inspiração na natureza, no cinema, na música e nas pessoas. “Eu costumava trabalhar com temas leves como a beleza cotidiana, mitologia, mas depois da guerra, todos os meus trabalhos são sobre sofrimento e medo”.
Os sonhos de sua série são memórias dos bombardeios aéreos que vivenciou
Sua realidade transfigurada pela guerra fez com que sua arte também se modificasse. “Eu sou moderadamente de esquerda. Antes da guerra em grande escala, eu não usava minha arte como uma declaração política ou social, infelizmente. Mas agora percebo que dar visibilidade a esta guerra é realmente importante, especialmente por meio do olhar de dentro, de uma pessoa que vive a realidade concreta”.
“Honestamente, estou cansada de pombas da paz sem sentido e outras coisas, é melhor chamar as coisas pelos nomes. Portanto, aproveito todas as oportunidades para contar o que a Rússia está fazendo com a Ucrânia”, desabafou a artista.
Eu costumava trabalhar com temas leves como a beleza cotidiana, mitologia, mas depois da guerra, todos os meus trabalhos são sobre sofrimento e medo
Olga Lisowska, de Kharkiv, tem 29 anos
Desde o dia da invasão russa, já se passaram mais de cinco meses. E como quase tudo o que é noticiado e consumido desenfreadamente, logo se perde num mar de outras informações, tal como ocorreu com outros casos, como no Afeganistão, como sempre acontece com a Palestina, na região de Tigray, na Etiópia, em Mianmar, para citar somente alguns exemplos recentes.
O problema é que a solidariedade é ainda mais importante nesses momentos, quando os holofotes já se viraram para outros lugares, outros assuntos.
Dasha Molokoedova, artista de 20 anos, nascida em Kramatorsk, fala sobre essa urgência: “Conheço esta retórica de nossas autoridades de que esta é a mais impiedosa guerra desde a Segunda Guerra Mundial. E isto é verdade, mas também entendo como é difícil projetá-la em outras realidades, especialmente quando você está em outro contexto, talvez sem saber absolutamente nada sobre um país como a Ucrânia. Mas é realmente importante saber o que está acontecendo, que as pessoas ainda estão morrendo aqui, e talvez dentro de seus contextos, tentar ajudar”.
Ela descreve que “é assustador quando tudo começa a ser esquecido”, o que é natural, “especialmente quando você está em condições de vida confortáveis”, mas que a ajuda é fundamental, “porque a guerra é um pesadelo sem data definida para acabar, então você precisa ao menos tentar não esquecer e apoiar com tudo o que for possível”, defendeu.
Molokoedova é uma artista que encontra inspiração em tudo. Com a guerra, muito mudou. Ela tem utilizado muitos vídeos em suas artes e se sente confortável com essa plataforma, mas não considera como sua única ferramenta.
A artista tem utilizado o vídeo como recurso, mas trabalha com diversas técnicas.
“Agora é muito importante falar sobre a guerra, contar histórias pessoais no contexto da arte, a fim de apresentar os envolvidos nisto e tornar as pessoas de fora menos indiferentes. Por mais triste que pareça, a arte inspira excitação, sentimentos, dor, raiva e esta ausência de expectativa para o fim desta guerra. A arte, mesmo que não percebamos nos afeta, ela ajuda a muitos. Ela libera energia, raiva e saudade”, disse.
Apesar desse inevitável resgate acontecer por meio da expressão e do consumo da arte, ela não se pergunta o quanto ela é salva por esse meio. “Eu estou nela [na arte] e para mim ela serve como armadura nesta batalha”, explicou.
Mais de sete milhões de ucranianas e ucranianos cruzaram fronteiras desde os ataques russos e são mais de sete milhões os deslocados internos.
Há ainda uma importante parcela dos que ficaram, sobretudo as mulheres, para cuidar de companheiros ou idosos impossibilitados de fugir. Essas, sob o risco de sofrerem diversas violências de gênero.
Essas pessoas são vistas, muitas vezes, por parte da comunidade internacional, sob uma certa normalização da barbárie, e enfrentam um exército invasor com poucos recursos - ainda que se propagandeie de maneira hipócrita pela União Europeia o envio efetivo de armas às forças de resistência ucranianas.
Agora é muito importante falar sobre a guerra, contar histórias pessoais no contexto da arte, a fim de apresentar os envolvidos nisto e tornar as pessoas de fora menos indiferentes. Por mais triste que pareça, a arte inspira excitação, sentimentos, dor, raiva e esta ausência de expectativa para o fim desta guerra. A arte, mesmo que não percebamos nos afeta, ela ajuda a muitos. Ela libera energia, raiva e saudade
Dasha Molokoedova, artista de 20 anos, nascida em Kramatorsk
A artista Katya Gritseva é uma dessas pessoas que optou por ficar em território ucraniano. Ela relatou que seu processo criativo foi afetado pela guerra há oito anos, quando forças russas tomaram a Crimeia. Segundo ela avalia, esse processo de ocupação a fez se envolver com os problemas da sociedade.
“A guerra me afetou diretamente, e começou no limiar do meu caminho criativo há oito anos. Quem sabe, talvez estes terríveis acontecimentos me tenham impedido de crescer alienada. Acredito que a criatividade tem uma enorme influência sobre as percepções das pessoas. A arte teria o poder de “fazê-las pensar sobre coisas que, quem a consome, preferiria ignorar”, disse.
Katya foi o meu primeiro contato com as demais artistas ucranianas entrevistadas para a coluna do Nós, mulheres da periferia. Nascida em Donetsk, na cidade de Mariupol - uma das que foram devastadas pelas forças russas - vive há 4 anos em Kharkiv.
Com traços e cores tão peculiares, de tão forte identidade, ela retrata a classe trabalhadora de seu país, em especial mulheres, em paisagens conhecidas por nós trabalhadores, como fábricas e portos.
Eu vi algumas diagramações dela feitas especialmente para o combativo movimento Social Ruh e fiquei entusiasmada para conhecer mais. Quando pude saber mais sobre seu posicionamento político, sobre a sua bagagem artística e suas referências, virei muito fã. Saiba disso, Katya. Virei muito sua fã.
Katya tem mantido um espírito revolucionário sob condições muito adversas. A família da artista vive em território ocupado e perdeu a casa que ardeu em chamas. Hoje consegue manter algum contato com a família, que vive sob ocupação russa, apenas pela internet.
Com cores vibrantes e traço forte, a artista desenha fábricas e usinas em muitos de seus trabalhos.
“As pessoas nos territórios ocupados se adaptam da melhor maneira possível, o que é muito assustador. Tal adaptação se manifesta tanto na colaboração e aceitação da propaganda de Putin como verdade, quanto na realização de vários trabalhos humilhantes. Para poder comprar alimentos, as pessoas estão empenhadas no enterro forçado dos cadáveres de concidadãos, na remoção de escombros e na venda de mercadorias obtidas em saques. Agora meu pai está envolvido no conserto da planta metalúrgica de Illichya, onde trabalhou durante toda sua vida adulta. Este é um lugar perigoso, as minas já explodiram e mataram mais de oito trabalhadores durante tal trabalho, mas as pessoas são forçadas a aceitar qualquer vaga para sobreviver. E a atuação de sindicatos está fora de questão. Ao assinar um contrato, os trabalhadores são forçados a assinar uma carta de demissão para evitar burocracia desnecessária em caso de morte. Os residentes dos territórios ocupados são apenas material dispensável para o governo russo” descreveu.
Apesar dessa realidade, Katya diz que não vai deixar o país, por considerar que há muito trabalho em sua terra natal e que deixar a Ucrânia em um momento tão difícil seria uma traição contra ela mesma. “Preciso viver este momento histórico, e se eu tivesse menos obrigações, gostaria até de estar mais perto da linha de frente e me voluntariar mais”, compartilhou.
Preciso viver este momento histórico, e se eu tivesse menos obrigações, gostaria até de estar mais perto da linha de frente e me voluntariar mais
Katya Gritseva, nascida em Donetsk, na cidade de Mariupol - uma das que foram devastadas pelas forças russas - vive há 4 anos em Kharkiv
Masha Pronina nasceu em Donetsk, Mariupol, e também segue no país, viajando por diversas regiões, onde quer que a ajuda seja necessária. “Não deixar a Ucrânia até a vitória, apenas para viagens de negócios, é minha posição de princípio, não posso sequer imaginar que deixarei o país para viver em outro lugar”, contou.
Sua arte militante é feita sobretudo com colagens. Foi por publicações de Maria que conheci um batalhão LGBTQI+ ucraniano que está defendendo militarmente o território dos ocupantes russos.
Em suas obras, há muita crítica aos militares invasores e defesa às liberdades e diversidade, algo muito importante, em contraponto à perseguição conhecida do governo de Putin contra a população LGBTQI+. Ainda usa, de maneira poética e sarcástica, trechos recortados de manchetes de jornais, para obter elementos do cotidiano por meio desses conteúdos informativos, com o toque indagador e de desconstrução, construindo, como ela explica, uma espécie de “multiverso”.
Masha faz belas colagens e incorpora sarcasmo e provocação em seus trabalhos.
A artista, apesar de ter apenas 35 anos, tem uma longa caminhada na arte. Foi, como descreveu, “poeta marginal” em 2014, época dos conflitos em torno do domínio da Crimeia. Ela teve de deixar sua terra natal, tomado por separatistas, e relata que seus poemas passaram a ser cheios de dor e a criatividade, à época, tomou um lugar secundário.
Foi então que ela começou a trabalhar com imigrantes, especificamente com crianças que haviam deixado abrigos de diferentes partes das regiões de Donetsk e Luhansk, traumatizadas pelo processo de deslocamento interno em decorrência do avanço russo nessas regiões. “Há vários anos trabalho com arte-terapia e contos de fadas. Junto com esta atividade, como terapia de arte para mim mesma, comecei a fazer colagens, isso em 2015”, ela relembra.
Suas obras refletem sua defesa pelos direitos LGBTQIA+s.
Masha trabalha com adolescentes LGBTQI+ e outros setores mais vulneráveis. Nesse voluntariado, ela realiza inúmeras oficinas de arte. Além disso, a partir de um projeto muito bonito chamado Plataforma Tyu, que acaba funcionando como uma espécie de vitrine para outros artistas ou interessados nos trabalhos e oficinas oferecidas, divulga importantes debates que abordam o lugar político das pessoas e as expressões artísticas.
“A arte ajuda muito em tempos de guerra, no mínimo é uma forma de autorreflexão e, na melhor hipótese, é uma declaração excepcional que as pessoas recebem e que pode impactá-las. Muitas vezes recebo comentários de que minha arte revela outros pontos de vista, que ajuda e até torna possível o protesto contra os ocupantes, porque uso muitas citações de conversas interceptadas. E claro que levanto constantemente o tema do heroísmo do povo ucraniano, porque eles são as pessoas mais heroicas do mundo de hoje”, considerou.
A Plataforma Tyu existe apenas com a contribuição voluntária de doações. “Qualquer pessoa pode se juntar à iniciativa! Para ajudar as famílias que deixaram sua cidade sem pertences e sem dinheiro, que fugiram para salvar suas vidas. Porque é assim que os ucranianos sobrevivem e vencem. [Com o projeto] Apoiamos todo o nosso povo em todo o país, é inspirador”, destacou a artista.
A arte ajuda muito em tempos de guerra, no mínimo é uma forma de autorreflexão e, na melhor hipótese, é uma declaração excepcional que as pessoas recebem e que pode impactá-las. Muitas vezes recebo comentários de que minha arte revela outros pontos de vista, que ajuda e até torna possível o protesto contra os ocupantes, porque uso muitas citações de conversas interceptadas. E claro que levanto constantemente o tema do heroísmo do povo ucraniano, porque eles são as pessoas mais heroicas do mundo de hoje
Masha Pronina tem 35 anos e nasceu em Donetsk, Mariupol, mas segue no país, viajando por diversas regiões, onde quer que a ajuda seja necessária