O racismo sempre “foi de casa”

No último sábado (11), uma situação ocorrida no programa É de Casa, da Rede Globo, levantou questionamentos sobre racismo ao colocar uma mulher negra para servir

14|06|2022

- Alterado em 14|06|2022

Por Amanda Stabile

Silene é uma das mulheres negras que, nas palavras da teórica francesa Françoise Vergès, abrem a cidade. Além de trabalhar como doméstica em uma casa, a moradora da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, vende cocadas caseiras que fazem sucesso pelas ruas da cidade. Até sua filha leva os quitutes para vender no colégio. 

A doceira foi convidada a participar, no último sábado (11), do programa É de Casa, da Rede Globo, para ensinar a receita que usa para ganhar uma renda extra e fez parte de uma situação que repercutiu e gerou debates nas redes sociais. Após finalizar o preparo do doce, a apresentadora pediu para que Silene ainda fizesse “as honras da casa” e servisse a todos.

Há inúmeras discussões possíveis sobre essa situação. É importante lembrar que a apresentadora conheceu Silene enquanto fazia as unhas em um salão e achou que seria uma boa pauta levá-la para revelar o segredo de seu ganha pão em rede nacional. Nessa situação, cabe repetir a pergunta feita recentemente pela jornalista Lívia Lima em sua coluna: quantas mulheres (negras) garantem seu sucesso?. Em todas as profissões – e na vida – é essencial que questionemos as práticas cotidianas que, até nos pequenos detalhes, podem reproduzir o racismo que estrutura a nossa sociedade há séculos. 

Além disso, essa situação reproduziu, para milhões de espectadores, um comportamento extremamente naturalizado e que é uma herança escravocrata: a mulher negra no espaço de servidão. Como Lélia Gonzalez denunciou em 1984: na modernidade há uma reedição das funções escravocratas de trabalho das mulheres negras, principalmente no que diz respeito às mais pobres.

Silene, todos os dias, já é uma das milhares de mulheres racializadas que se ocupam incansavelmente de limpar o mundo e desempenham o esgotante trabalho de cozinhar, arrumar e servir. Como acreditar, sem questionar, que fazê-la repetir a mesma tarefa durante um programa de televisão seria uma forma digna de exaltar o seu trabalho?

Mas enquanto todos estavam confortavelmente sentados e esperando para experimentar as cocadas, uma atitude que merece destaque é a do jornalista, ativista social e cofundador da Central Única das Favelas, Manoel Soares. Ele não perdeu tempo, pegou a bandeja das mãos da convidada e disse: “Vamos fazer o seguinte: eu vou ser o seu garçom e você vai me orientar pra quem eu vou servir, porque você não vai servir ninguém”.

Como diz a máxima: em uma sociedade racista, é preciso ser antirracista. Assim como Manoel, que é um homem negro e já sensível para as violências raciais, é essencial que levantemos para agir e romper esse ciclo estrutural e as naturalizações cotidianas. E essa luta é de todos. Como disse Maya Angelou, “a verdade é que nenhum de nós pode ser livre até que todos sejam livres”.

Ainda é importante enfatizar que mulheres negras não têm o dever de tornar a vida de ninguém mais confortável. Pelo contrário, é a sociedade que tem essa dívida histórica e que precisa de uma mudança estrutural para reparar todas as violências já sofridas e os confortos, há muito, negados. E a conta só aumenta.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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