Zélia Amador: ‘Não podemos traçar nossas lutas sem a ancestralidade’
Participantes da Jornada das Pretas 2022 apontam a importância da troca entre gerações e valorização de estratégias criadas pelas mais velhas.
Por Beatriz de Oliveira
24|05|2022
Alterado em 25|05|2022
A troca de experiências entre gerações é caminho fundamental para criação de estratégias e articulações políticas. Foi em torno desse tema que ocorreu o segundo encontro da Jornada das Pretas 2022, no dia 21 de maio. Em formato virtual, o evento está em sua segunda edição e é organizado pela Oxfam Brasil em parceria com o Instituto Alziras, Mulheres Negras Decidem e o Instituto Marielle Franco. Para ler a primeira cobertura sobre a Jornada das Pretas, clique aqui.
Retornar ao passado para construir o futuro
Mônica Oliveira, facilitadora da Jornada e assessora parlamentar em Pernambuco, começou explicando que o segundo encontro da Jornada das Pretas seria um momento de compartilhamento de histórias entre as mulheres mais velhas e mais novas.
“Essa experiência está baseada em dois princípios. O princípio do Sankofa, porque a gente olha para o passado, para aquilo que já foi feito antes, para viver bem o presente e construir o futuro que desejamos. O outro princípio é o Ubuntu, que quer dizer ‘eu sou porque nós somos’. Quando aprendemos com as mais velhas e com as mais novas, estamos compartilhando a condição de sermos todas juntas, cada uma preservando sua individualidade, mas compartilhando”, afirmou.
Sankofa é um dos símbolos presente no adinkra, conjunto de ideogramas tradicionais de povos de língua Akan da África Ocidental. Representa um pássaro com a cabeça voltada para a cauda. E traz o ensinamento: “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”. Dessa forma, chama o povo negro a buscar sua ancestralidade para definir estratégias posteriores. Como mostramos na série Futurar, em que ouvimos mulheres que imaginam futuros sem nunca esquecer do passado. A filosofia Ubuntu tem origem na matriz cultural bantu, no sul da África, e traz o aprendizado: “eu sou porque nós somos”, trazendo à tona a importância da cooperação e solidariedade na convivência em grupo. O conceito foi usado, por exemplo, por Nelson Mandela, no contexto do apartheid na África do Sul.
Zélia Amador de Deus, professora emérita da Universidade Federal do Pará (UFPA) e doutora em Ciências Sociais, também trouxe o conceito de Sankofa, mas lembrou ainda de outras duas referências: Exu e Ananse.
“Além de Sankofa, temos que ter Exu, aquele que vai abrindo todos os caminhos e dotado do poder de comunicação para que a gente possa ter o dom da palavra. Também para além de Exu, tem a Ananse, aquela que tece as nossas teias de resistência. Nosso encontro vai ser capaz de tecer muitas teias que nos leve a agenciamentos políticos eficazes. Neste processo, temos que ter a esperteza de Ananse para não deixar que a branquidade esvazie os nossas articulações como ela tem feito sempre”, disse a militante do movimento negro.
Sobre a importância da intergeracionalidade, Zélia resume: “Nós não podemos traçar as nossas lutas sem pensar na nossa ancestralidade”
A Jornada das Pretas é uma série de encontros que têm acontecido durante o mês de maio
©Divulgação
Gritos por existência
Zélia é uma das fundadoras do Cedenpa (Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará), movimento criado em 1980 para lutar pela superação do racismo, preconceito e discriminação.
A iniciativa surgiu como resposta à invisibilização das populações negras que vivem na região norte. “O resto do país nega a existência de pessoas negras, mesmo contradizendo seus censos demográficos feitos pelo IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]. O Pará e o Amapá têm grande população negra, que se invisibiliza para que não nos ouçam, não ouçam os nossos gritos. Mas estamos atentas. Tão atentas que há 42 anos o Cedenpa foi criado. Quando não dá pra gritar algo, gememos, mas não paramos”.
Segundo a professora, as mulheres negras que vivem no Norte lutam primeiro para garantir sua presença, e depois sua humanidade. É uma consequência do período da escravização, em que corpos negros foram trazidos ao solo brasileiro como coisas, não como pessoas.
Outro grito por existência é o que pede pela preservação dos territórios, entendendo que as populações negras são as que mais sofrem os efeitos das degradações ambientais. Na resistência pela sobrevivência, o racismo ambiental se torna tema urgente.
“Nós, mulheres negras da Amazônia, somos aquelas que desde sempre lutamos contra o racismo, mas desde sempre já trazemos nas nossas lutas a questão do racismo ambiental. Aqui nessa região não dá pra gente lutar contra o racismo sem tratar do racismo ambiental”, alerta Zélia.
“Nossas formas de organização política não são reconhecidas”
Desde as eleições de 2020, por decisão do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), os partidos foram orientados a destinar de maneira proporcional, para candidatos negros e brancos, valores do fundo eleitoral. Também nesse ano, foram aplicadas cotas para mulheres: cada partido deve ter ao menos 30% de mulheres como candidatas.
Mesmo com políticas como essa, ao alcançar presença na política institucional, o trabalho de mulheres negras não está garantido: suas atividades dentro dos partidos são desafiadoras. “Na minha atuação mais recente no interior de estruturas partidárias eu venho percebendo nessas instituições, e no próprio movimento feminista, que as nossas formas de organização política não são reconhecidas. Mas a verdade é que as nossas estratégias de articulação, de aquilombamento, de organização política, precedem e transcendem a narrativa hegemônica do feminismo, que costuma se reivindicar como uma luta das mulheres”, conta Nathália Carlos, assistente social, articuladora política e educadora popular no Rio de Janeiro.
A educadora ressalta que nossas ancestrais desenvolveram estratégias de articulação e resistência que podemos fazer uso hoje. “Esse solo sobre o qual eu marcho hoje só é possível porque ele foi pavimentado pelas nossas mais velhas, que estão há muito tempo fazendo a incidência e a articulação política”, afirma.
Ela cita a fundação do MNU (Movimento Negro Unificado), em 1978, e a Marcha das Mulheres Negras, em 2015, como alguns dos avanços da população negra na reivindicação por seus direitos nas últimas décadas. Contudo, enxerga o assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018, como uma tentativa de barrar o fortalecimento da luta. Apesar da brutalidade do caso, a assistente social aponta que o movimento negro deu o recado de que continua resistindo.
Levando a ancestralidade para a luta
Instigadas a refletir sobre o uso da ancestralidade para pensar estratégias políticas no presente, as participantes trouxeram diferentes apontamentos. Tatiana Pires, pré-candidata a deputada federal no Rio Grande do Norte, alertou para a importância de desmistificar a ideia de que negros não votam em candidatos negros e mulheres não votam em candidatas mulheres. Para ela, as estratégias de articulação devem ser pensadas de acordo com as especificidades de cada região, respeitando as particularidades de cada um como indivíduos e comunidades.
Ana Cleia, de Porto Nacional (TO), destacou a solidão da mulher negra no exercício político. “As mulheres não estão inseridas, não fazem parte dessa agenda dos espaços de poder. A gente está na base da pirâmide social, então somos as últimas a serem ouvidas e de fato as últimas a serem consideradas”.
Em contraponto a esse sentimento de solidão, Cristina Almeida, pré-candidata a deputada federal no Amapá, trouxe o fortalecimento coletivo para a conversa. “Não estamos sós. O crucial desse movimento é que tem alguém junto conosco. Não só no Amapá, mas no Brasil, nos fortalecemos como pauta única. Na minha experiência na política, entendi que não existe receita pronta para uma campanha eleitoral”.
Zélia Amador destaca que carregamos a ancestralidade nos momentos de conquista. “Importantíssima é a história de resistência que a gente carrega no nosso corpo. Nós nunca estaremos só. Quando ocupamos espaços, não estamos ocupando individualmente, estamos ocupando por todas nós. Todas nós que historicamente recebemos uma carga do racismo e ficamos de fora desses espaços. Agora conseguimos aqui ou ali ocupar espaço e é tudo resultado da luta das que nos antecederam”, conclui.
Alessandra Ramos Makkeda presente
Alessandra Ramos Makkeda é referência na luta do movimento LGBTQIA+ e defesa dos direitos humanos. Era uma mulher negra transexual que nasceu em 1982 em Brasília. Educadora social, intérprete de libras e assessora parlamentar, Alessandra fundou o Instituto Transformar Shelida Ayana, formado por mulheres e homens trans e travestis, que atua no combate à LGBTIfobia, à desigualdade racial e de gênero.
O segundo encontro da Jornada das Pretas 2022, que reúne mulheres negras ativistas de todo país, homenageou Alessandra Ramos Makkeda, que faleceu no dia 15 de maio após sofrer um mal súbito. Alessandra foi uma mulher trans, defensora dos direitos humanos e ativista pelos direitos LGBTQIA+.
“Falar da Alessandra é sempre muito difícil. Ela segue presente aqui conosco. Nós nos despedimos da presença física da Alessandra de uma forma abrupta. Foi uma perda que nos atravessou de formas muito agudas. A Alessandra interpretava inúmeros idiomas, mas nos deixou sem voz”, disse Roberta Eugênio, do Instituto Alziras.
Ainda no tema de mulheres trans e travestis, a cantora Ayô Tupinambá, que vive em São Paulo e realizou a abertura do evento, entoou: “Hoje eu sou livre, tão livre que nada segura. Não é só roupa, voz e cabelo. É sobre olhar no espelho e saber que sou feliz”. A música fala sobre seu processo de transição, que se define uma travesti, preta, gorda e periférica.
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