O Nós, mulheres da periferia abraçou a produção de dois grandes projetos que versam sobre ditadura nas periferias. Desejamos contribuir para mais uma capítulo dessa História chamada Brasil. Boa leitura! Boa escuta!
Atualizado em 02|05|2023
A palavra Ditadura apareceu pela primeira vez pra mim na escola. Nas aulas de História e Geografia do Ensino Médio. Antes disso, ninguém teceu uma palavra sequer sobre a história de um país toda cheia de fissuras e ainda em construção.
Eu tinha 17 anos quando assisti a um documentário sobre a Vala Clandestina do Cemitério Dom Bosco, que por coincidência ou não está situado em Perus, bairro onde nasci, cresci e ainda vivo, na região noroeste da periferia de São Paulo.
Meu tio estava sentado ao meu lado, quando disse que, mesmo sem ele querer, colaborou tanto na construção da vala, quanto em sua abertura e descoberta em 1992, durante o mandato de Luiza Erundina como prefeita da capital paulista.
Naquele dia, tudo fez sentido. Desde pequena, eu frequentava o cemitério com meus pais. Na ala esquerda, em uma placa vermelha de letras brancas, a frase de Luiza Erundina dizia assim:
“Os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do Estado Policial, dos esquadrões da morte e, sobretudo, os direitos dos cidadãos pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos”.
Esta placa sempre esteve lá, principalmente no Dia de Finados, quando a primeira missa dentro do cemitério também fazia uma homenagem a todas as vítimas da Ditadura Civil-Militar encontradas naquele lugar.
Ao me tornar jornalista, contei essa história por meio das memórias de meu tio e seu colega de trabalho, Antônio Eustáquio. À época, administrador do cemitério.
Com a chegada de Bolsonaro à presidência, a pesquisa em busca de justiça e verdade orientada pelo GP Perus (Grupo de Trabalho Perus) quase foi interrompida, e senti a necessidade de falar disso mais uma vez na Agência Mural.
A verdade é que o assunto nunca se encerra, pois há uma lacuna muito grande de nossa história oficial. O Instituto Vladimir Herzog também já contou esse capítulo pelo olhar das mulheres vítimas da Ditadura. Eu e a Semayat Oliveira, também cofundadora do Nós, somos algumas das autoras de Heroínas dessa História - mulheres em busca de justiça por familiares mortos pela ditadura, lançado em 2020.
Escrever o perfil de Damaris Lucena me custou alguns meses. Eu mergulhei tão fundo nessa história que antes de começar o texto, eu sonhei com ela duas vezes. Em uma, nós duas tomávamos café em um restaurante ao ar livre.
No outro, eu revivia a cena do assassinato de seu marido no quintal da minha casa. Quando eu me ajoelhava para ver seu semblante caído no chão, era o rosto do meu pai. Escrever é um exercício de empatia tão grande, que algumas histórias se misturam com as nossas. Naquele dia, a caneta fluiu e consegui entregar a primeira versão do meu texto.
Passados alguns anos, agora em 2021, o livro Vala Comum, de Camilo Vanuchi, foi finalista do Prêmio Jabuti – o mais importante da literatura brasileira, me fazendo reencontrar essa história de novo.
Em artigo do livro paradidático "Vala de Perus: um crime não encerrado da Ditadura Militar", ouvi meus vizinhos e vizinhas sobre esse momento, sobre o que o cemitério significa para eles e como as novas gerações vem tratando esse assunto por meio de peças de teatro ou trilhas da memória.
A Ditadura, então, saiu das páginas dos livros didáticos e tomou uma nova proporção na minha vida. Falar sobre esse tema é falar sobre memória, território e também de vida. É falar sobre como as periferias atravessaram esse período, também marcado pela fome, pela carestia dos alimentos, pela violência policial com a população negra e periférica. E, mais que tudo, esse momento fala das várias formas orgânicas de resistência, formuladas principalmente pelas mulheres.
Entendendo todas essas camadas, o Nós, mulheres da periferia abraçou a produção de dois grandes projetos que versam sobre o assunto. Em parceria com o Instituto Vladimir Herzog, produzimos, roteirizamos e editamos a primeira temporada do podcast Marimbás, intitulada Territórios da Memória.
Junto ao Memorial da Resistência de São Paulo, produzimos uma série de três reportagens sobre o assunto, ouvindo apenas mulheres de três regiões periféricas paulistanas.
Eu, que já tenho essa relação muito próxima com a temática, descobri que, mesmo semelhante, a Ditadura e suas reminiscências afetou as quebradas de modos diferentes. Os movimentos sociais surgidos à época também mudam de um lugar para o outro, embora em algum momento também se conectem.
Embora ouvir histórias esteja na nossa essência enquanto jornalista e contadora de histórias, as memórias da Ditadura nas periferias não são tão fáceis de ouvir. Elas mexem com feridas que ainda estão muito abertas, principalmente porque estamos falando das dores de pessoas que foram direta ou indiretamente atingidas pelo período.
Durante a realização das entrevistas, eu chorei muitas vezes. E, depois, tive que me distanciar do tema um, dois dias, para então conseguir voltar para a construção dos roteiros ou das matérias.
Eu precisei compartilhar, trocar com outras jornalistas, me sentir abraçada mesmo virtualmente, porque a dor de cada entrevistado não passou por mim distanciada, como dita as cartilhas do jornalismo. Deve ser porque as antigas cartilhas não imaginavam que nós, um dia, iríamos contar as nossas próprias histórias.
Não é tranquilo ouvir histórias de familiares desaparecidos, de amigos que foram mortos pelo regime, de pais e mães que passaram por muitas dificuldades diante da alta dos preços. Não era naquele tempo, não é hoje, não vai ser amanhã. Eu ia ouvindo e lembrando dos dizeres da minha avó, dos meus pais, da minha família. De algum modo, estar envolvida nessas produções também me ajudou a olhar pra minha história e entender questões e problemáticas que até hoje persistem do lado de cá da ponte.
No mais, esperamos que a leitura ou escuta desses materiais possam te ajudar a começar a entender esse momento, assim como te inspirar na contação de outras histórias sobre as tantas ditaduras que ainda persistem e precisam ser narradas. O trabalho de memória é vivo e passível de ressignificações a partir de quem, quando e como conta. Com esse trabalho, desejamos contribuir para mais uma capítulo dessa História chamada Brasil.
Boa leitura! Boa escuta!
Jéssica Moreira
Falar sobre Ditadura é falar sobre memória, território e também de vida
Jéssica Moreira, jornalista, escritora e cofundadora do Nós
Minha primeira entrevista foi com a Simone Nascimento. A quase 20 km de distância do centro de São Paulo, há um distrito chamado Pirituba. O nome é resultado da junção das palavras piri, que significa vegetação de brejo, e o aumentativo “tuba”, que na língua tupi significa “muito”.
Feito outros bairros da região, Pirituba tem como marco de inauguração o dia 1 de fevereiro de 1885, mesmo dia em que a estação de trem local foi fundada. Se o bairro nasceu a partir da linha de trem, também foi pelo mesmo meio de transporte que ele se eternizou, na voz do Grupo de Rap Família RZO, com a música “O trem”.
Falar com a Simone, que é da mesma geração que eu, é me ver em cada fala. Isso porque ela, como mulher negra e periférica que optou por permanecer na periferia, entende na cultura, tanto na música quanto na literatura, um jeito de olhar para essa história e colaborar com as juventudes.
Jornalista formada pela PUC (Pontifícia Universidade Católica), Simone sempre se incomodou com a narrativa que lhe era contada sobre a Ditadura Civil-Militar no Brasil. Afinal, onde estava Pirituba e outros bairros periféricos nesse momento? O que aconteceu nesse território, que pode ser encontrado ainda hoje como resquício dos anos ditatoriais?
Foi pensando nessas perguntas que Simone se tornou uma das articuladoras do Projeto Territórios da Memória, produzindo ao lado de Vinicius Câmara o documentário “Pirituba é assim”, onde ouve outras pessoas do território, como a rapper Luana Hansen, o slamer Igor Chico e outros entrevistados. Vale muito ouvir as reflexões de Simone sobre como o racismo também é um resquício dos tempos ditatoriais.
“A Ditadura não vai ser necessariamente de alguém que escondia livros, que não vai ser de alguém que sofreu tortura com choque, com ratos na vagina, mas vão ser resquícios do que o resto do Brasil viveu, que é territórios extremamente bélicos, território extremamente de ausência de direito, que a ditadura construiu. Na fala deles, a gente vai encontrar os resquícios da ditadura na construção do ser humano, na construção do cidadão brasileiro. Vamos encontrar reflexões do quanto essa é uma luta constante pela verdadeira democratização, porque a gente vê hoje uma disputa acirrada com o atual governo, é com relação a várias questões que vão estar expressas também nas falas deles. Sem dúvida alguma foi uma tentativa de tentar entender, buscar olhar para cada um deles e entender essa narrativa não convencional, mas uma narrativa periférica sobre a ditadura”.
Ouça ao episódio " Pirituba é assim " no Spotify
A Ditadura não vai ser necessariamente de alguém que escondia livros, que não vai ser de alguém que sofreu tortura com choque, com ratos na vagina, mas vão ser resquícios do que o resto do Brasil viveu, que é territórios extremamente bélicos, território extremamente de ausência de direito, que a ditadura construiu.
Simone Nascimento, jornalista
Para tentar contar sobre o período para além da Vala, que eu já conhecia um pouco, tentei ouvir novas vozes. Entre elas, a da professora Jandira Ribeiro, 74. Era o ano de 1969 quando ela chegou ao bairro de Perus.
No cenário nacional, completava um ano desde que o AI-5 (Ato Institucional nº 5) havia sido instaurado. Entre os 17 atos institucionais ditatoriais, o AI-5 foi considerado um dos mais duros do período: o Congresso Nacional e assembleias legislativas estaduais foram fechadas, a censura à imprensa e à cultura tomou proporções alarmantes, com forte repressão a esses setores.
Era no interior da Comunidade Eclesial de Base João XXIII, no Jardim do Russo, em Perus, que ela, outras mulheres e também homens se encontravam para pensar soluções para a região por meio do próprio Evangelho.
Mesmo não tendo uma leitura de que se tratava a Ditadura, como ela lê hoje, Jandira relaciona as dificuldades sociais e econômicas também à crise política. Data desta época a construção da Rodovia dos Bandeirantes, especificamente em 1978.
Centenas de famílias foram despejadas do local e ficaram sem moradia, o que, segundo Jandira, deu espaço ao surgimento de grandes favelas. Falar sobre a Ditadura neste bairro também é falar da luta com uma greve de sete anos dos trabalhadores Queixadas, que atravessaram a Ditadura utilizando o conceito de não-violência, uma luta puxada muito pela força das mulheres Queixadas, que ergueram um movimento contra o pó de cimento chamado “O pó de cimento esmaga a vida”, considerado um dos primeiros movimentos ecológicos do país.
É incrível como as mulheres periféricas há muito tempo vêm construindo soluções para nossos territórios.
Na zona leste de São Paulo, assim como na região noroeste, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) também serviam às comunidades para discutir suas questões. Já falamos sobre isso no especial que fizemos sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), mas não custa relembrar que o Movimento Popular de Saúde da Zona Leste inaugurou a discussão sobre saúde em toda a cidade de São Paulo, marcando-o como uma inspiração para outras periferias.
Em meio à resistência, bairros da zona leste foram marcados por muita violência em meio à Ditadura. É o que narra nossa repórter Lívia Lima, na segunda reportagem para o Memorial da Resistência.
No dia 7 de julho de 1978, mulheres e homens negros fizeram história em um ato nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, oficializando a fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU), organizado um pouco antes, em 18 de junho. Este se tornaria uma das mais importantes articulações políticas negras do país dali em diante.
O manifesto aconteceu como reação de militantes de diferentes entidades diante de dois casos de racismo – o primeiro envolvendo meninos do time infantil de vôlei do Clube Regatas Tietê, e o segundo, a prisão, tortura e morte de Robson Silveira da Luz.
Entre presente e passado, resgatar a memória e história do povo periférico, negro, indígena, migrante é o principal objetivo do Centro de Pesquisa e Documentação Histórica – CPDOC Guaianás, grupo criado em 2014 por trabalhadores ligados ao movimento cultural para realizar pesquisa nos bairros de Lajeado, Guaianases, Cidade Tiradentes e São Mateus, onde vivem.
Ainda na Zona Leste, guiados por Cristina Adelina e Adriano Souza, percorremos os muitos territórios da zona leste para entender que, nas periferias desse lado da capital, houve tantas torturas e desaparecimentos quanto na região central, onde estava concentrada a classe média da população.
São histórias como a de Dona Astrogilda. Uma mulher negra, periférica, cujo marido era sargento da polícia militar e comunista. Preso junto a outros 32 policiais, o caso deles se tornou emblemático no período, mas ainda pouco conhecido quando trazemos as narrativas do período. Outros entrevistados também trazem suas histórias de violência policial e até de prisões que mostram como a postura do Estado contra a periferia não é um caso isolado de nosso tempo.
Na terceira e última reportagem do Memorial, a repórter Semayat Oliveira traz a voz e a história de Ana Dias. Ana é uma das protagonistas do Movimento Contra a Carestia.
Em 1978, o movimento levou mais de 20 mil pessoas para o marco zero da cidade de São Paulo em relação à política econômica do então governo. Naquele momento, o presidente do Brasil era o militar Ernesto Geisel.
Outro fato que marcou a história foi a conquista de mais de 1 milhão e 300 mil assinaturas em um abaixo-assinado que exigia o congelamento dos preços dos alimentos, mais creches e escolas para as crianças. O documento foi entregue ao ditador General Geisel.
“Muitas iam para a porta das fábricas colher abaixo assinado. Aí os patrões falavam para os funcionários: ‘escuta, onde sua mulher tá indo com esses papéis? Se sabe que sua mulher tá indo em lugar perigoso?’. Sabe? Eu pensava: Meu Deus, mulheres analfabetas na luta e na discussão. Tudo isso me deixava tão feliz, em saber quanta coisa a gente podia fazer”.
Além de Ana Dias, fomos guiadas também por Gizele Alexandre, do Capão Redondo. Gizele é jornalista e também atua no CDHEP Campo Limpo, um dos lugares que mais articulou pessoas em meio à Ditadura na Zona Sul de São Paulo. Ela ouviu muitas histórias ligadas tanto à Ditadura, quanto aos seus resquícios nos anos de 1990.
Gizele fala sobre a importância da educação e da cultura para mudar o cenário de violência encontrado na sua região. Nos primeiros anos da década de 1990, Jardim Ângela e adjacências eram territórios considerados os mais violentos do mundo.
“E eu penso que esse registro de memória vai fazer com que a gente construa novos olhares e novas oportunidades a partir de lideranças jovens que vão reconhecer quem foram as pessoas que passaram por aqui, quais foram as lutas e vão poder olhar para frente e pensar em outras maneiras de se fazer”.
Ouça ao episódio "Capão Redondo" no Spotify
Ainda pelo lado sul do mapa paulistano, encontramos Luana Oliveira, que ouviu diversas mulheres negras de diferentes épocas para entender como o período continua ressoando nos dias atuais.
Além de Ana Dias, Luana tentou também evidenciar a histórias de outras mulheres no projeto Territórios da Memória, para mostrar como esta luta foi coletiva e cheias de rostos que, infelizmente, foram sendo apagados pela História.
Ela nos apresentou o Clube de Mães e como essas mulheres reunidas incentivaram diversas outras por toda a cidade, fazendo com que a ideia chegasse em outros cantos da cidade.
“Começaram a discutir, além de produzir aquelas coisas artesanais. Começaram a discutir as demandas que elas tinham né Demanda por infraestrutura, demanda por creche. O próprio preço dos alimentos que era muito alto”.
Como disse Jennifer Nascimento em trecho de documentário feito por Luana, é importante que a gente questione nossos modelos de democracia, antes que eles migrem para uma Ditadura. Não temos saudades da Ditadura, queremos ter realmente acesso a direitos que já deveriam ser acessíveis a todas e todos nós.
Um deles, com certeza, é a educação. Uma educação inclusiva, emancipatória, que pode ser um caminho para conhecer a história do passado e construir nesse agora um outro jeito de se pensar sociedade e a própria democracia. Deixo vocês com a fala de Luana, que sonha, um dia, que a gente possa ir além desse lugar de sobreviventes, mas de viver plenamente.
Ouça ao episódio "O Clube de Mães e a Zona de São Paulo no Spotify"
Eu penso que esse registro de memória vai fazer com que a gente construa novos olhares e novas oportunidades a partir de lideranças jovens que vão reconhecer quem foram as pessoas que passaram por aqui, quais foram as lutas e vão poder olhar para frente e pensar em outras maneiras de se fazer
Gizele Alexandre, jornalista