Argélia: sob o véu, uma revolução que tem rosto de Mulher

A mulher na Revolução da Argélia assumiu funções determinantes para a derrota da colônia francesa no país. Confira a coluna da jornalista Sâmia Teixeira.

30|11|2021

- Alterado em 17|05|2024

Por Sâmia Teixeira

Numa guerra por sobrevivência e liberdade, qual vantagem seria de extrema importância para uma vitória? Na Revolução Argelina, a mulher teve papel fundamental na luta para livrar o povo do domínio dos colonizadores franceses. Neste caso, um dos principais atributos dessas revolucionárias era o fato de serem “a mulher que vê sem ser vista”, por conta do uso do véu, o haik, parte da vestimenta de algumas culturas na Argélia. 

Essa expressão foi utilizada por Frantz Fanon, psiquiatra e intelectual revolucionário negro, nascido na Martinica e autodeclarado argelino.

A identidade deste importante militante para o movimento negro foi construída a partir de sua vivência na França – tendo experimentado a sociedade francesa racista em sua formação acadêmica – e na Argélia – atendendo a pacientes no Hospital Psiquiátrico de Blida, distrito próximo da capital Argel.

Domínio colonialista

Fanon se envolveu intensamente no processo revolucionário argelino e contribuiu enormemente para o registro desse período da história.

No primeiro capítulo de seu livro “Sociologia da Revolução” de 1959, ainda sem edição no Brasil, o intelectual fala exatamente sobre o véu tradicional das mulheres argelinas, que o Ocidente definia como um acessório da opressão patriarcal, mas que fora estrategicamente utilizado na luta pela libertação anticolonial, como um instrumento de resistência e ação insurgente.

Para destrinchar melhor sobre o assunto – de maneira introdutória, deixando a sugestão de estudarmos mais a fundo o tema e inserirmos em nossas reflexões atuais essa empreitada histórica tão importante que foi a Revolução Argelina – é preciso resgatar, mesmo que brevemente, algumas informações sobre o longo período histórico pelo qual a Argélia passava, sob domínio francês por mais de um século.

O intento colonialista em terras argelinas era o de total dominação. Isso se deu de diversas maneiras, das mais concretas às mais subjetivas.

Uma delas era, por meio da conquista das mulheres, desestruturar as origens e identidade de um povo, se utilizando de uma alegada preocupação sociológica e até mesmo de um suposto olhar feminista, para corromper valores culturais, tendo como via de regra a própria invenção do oriente pelo ocidente.

Foi com esse olhar de cima para baixo, na tentativa de se diferenciar do colonizado, que a França articulou o enfraquecimento identitário do povo argelino.

Cunhando a defesa por liberdade, igualdade e fraternidade em território próprio, a França aniquilou o povo da Argélia, matando centenas de milhares de argelinos.

O espelho de Fanon

Meu primeiro contato com os textos de Frantz Fanon aconteceu ao ter participado de discussões do movimento negro ligado ao movimento sindical, setor em que estou mais inserida. Depois, realizei um curso sobre Fanon com o professor Walter Lippold, que faço questão de mencionar e de recomendar aos que desejam conhecer melhor esse revolucionário e suas reflexões tão cabíveis aos tempos atuais. 

Foi a partir desta formação e de uma indicação de Lippold – um militante orgânico, da academia mas também do Hip Hop e da cultura ciberativista – que tive contato com a pesquisadora Cadidja Assis Pinto, historiadora e mestranda pela Universidade do Estado de Santa Catarina.

Cadidja tem se dedicado a estudar a atuação das mulheres na Revolução Argelina e seu trabalho é de extrema relevância, uma vez que o acesso às informações sobre o tema em português, ou até mesmo em inglês, é escasso e limitado.

Antes de elaborar as perguntas da entrevista, pedi que Cadidja me sugerisse alguma leitura introdutória ao tema. A recomendação foi o primeiro capítulo de “Sociologia da Revolução”.

Para quem já tem proximidade com vertentes e movimentos feministas e decoloniais, com nada se surpreende pelo fato de a França ter se utilizado de um suposto olhar engajado e feminista para atacar o véu branco, traje cultural da mulher argelina, e de se diferenciar dessa maneira na conhecida divisão “civilidade e barbárie”. 

Mas sabemos que nosso feminismo é muito ocidental e que é muito mais fácil seguirmos tendências e pensamentos colonizados e brancos. E que somente por isso já vale conhecermos mais a respeito da participação das mulheres argelinas na luta pela libertação anticolonial, porque é este o caminho que nos aproximará das lutas feministas mais enraizadas e de base.

Sobre esse aspecto, em coluna anterior, quando tratei da situação das mulheres afegãs com a retomada do Talibã, em agosto deste ano, falei um pouco sobre o termo “orientalismo”, estudado pelo intelectual e escritor palestino Edward Said.

O que Cadidja me explicou seria uma expressão agregadora para o mesmo tema, que é a invenção do Oriente, dessa vez através do olhar de Fanon, com traços não só de análise crítica social, mas também carregadas de sua própria formação no campo da psiquiatria. 

“Essa imagem do que a gente entende por oriente é o ocidente criando a si mesmo, como se entende o chamado ‘estádio do espelho’ [em referência ao psicanalista Jacques Lacan]. Fanon traz esse apontamento, que ao olhar para o espelho, você está vendo a si mesmo”. 

E a barbárie, que é costumeiramente apontada pelo ocidente como uma característica do oriente, é apenas um reflexo no espelho do colonizador. 

“Por meio da análise da psiquiatria, com referência aos sonhos, por exemplo, os homens franceses sonhavam com o véu das mulheres argelinas, eles sonhavam poder desvelar essas mulheres. E este sonho é carregado de violência. É o colono desejando penetrar no mundo dessa mulher. E isso, muitas vezes, com significados de sentido literal”, explica a pesquisadora.  Ela também é integrante do AYA- Laboratório de estudos pós-coloniais e decoloniais

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Argelinas no do ano de 1956. Da esquerda para a direita: Samia Lakhdari, Zohra Drif, Djamila Bouhired e Hassiba Ben-Bouali. © Wikimedia Commons

Fanon representando a FLN na Conferência Pan Africana em Kinshasa em 1960. © Wikimedia Commons

Reprodução de um cartão postal, com uma mulher argelina sensualizada. © Universidade de Minnesota

O uso do véu para a luta

Culturalmente, e de maneira bem diversificada conforme as variadas etnias, o véu branco tradicional da Argélia não é utilizado pelas mulheres de maneira homogênea. Ele é usado em eventos especiais, cerimônias, quando em público, desacompanhadas de membros da família, dentre outras ocasiões. 

Com a pressão dos colonos para o fim do uso do véu, houve um ponto de virada no processo revolucionário, momento em que a mobilização ganhou peso massivo, e as mulheres, que antes utilizavam o véu em momentos específicos, passaram a se cobrir e utilizar a vestimenta como um elemento cultural de resistência, contra a investida colonialista.

A partir desse momento, as mulheres passaram a se envolver mais diretamente nas ações dos movimentos de libertação. Contra a opressão colonial, as mulheres entenderam que a retirada do véu afetava não somente individualmente, como a sociedade de modo geral. 

As investidas contra o uso do véu tinham mais relação com a conquista do território por completo, da dominação cultural, subjetiva e econômica. “Quando acontece essa recusa à imposição colonial, essa rejeição é compreendida como a emancipação dessas mulheres. Há também a compreensão de que a libertação só virá se ela for total, a partir da descolonização política, da conquista da independência política, porque a luta anticolonial é também uma luta anticapitalista e anti-imperialista”, avalia Cadidja.

A França seguiu cometendo massacres civis e atos terroristas. Na mesma medida, a luta pela construção de vida fora da opressão colonial seguiu e as mulheres passaram a se envolver de maneira mais organizada na FLN (Frente de Libertação Nacional), movimento organizado também por Fanon.

Então veio um segundo ponto de virada na luta, quando o véu passou a ser inutilizado pelas mulheres, para que as suspeitas contra as argelinas, já inseridas nas lutas, diminuíssem.

Essas militantes, agora com aparência ocidentalizada, eram responsáveis por tarefas de circulação na cidade inimiga francesa, porque era necessário que a revolução expandisse a rede de combatentes. Para isso, era preciso circular dinheiro, armas, munições e mensagens dentro da organização.

Quatro moças, sorridentes, usando saias plissé, empunhando armas e mostrando uma jovialidade rebelde e combativa foram eternizadas em uma das fotos mais conhecidas sobre a participação das mulheres na Revolução Argelina. Eram elas as militantes Samia Lakhdari, Zohra Drif, Djamila Bouhired, e Hassiba Ben-Bouali.

Em um relato de memória de Zohra, ela conta que ela e sua amiga Samia com frequência encontravam e escutavam histórias de sobreviventes dos ataques de soldados franceses. Alguns deles, de regiões mais rurais, contavam sobre os métodos utilizados pelo exército francês: eles cercavam vilarejos e bombardeavam regiões inteiras com napalm. De maneira sádica, forçavam argelinos a escolherem no palito quem tiraria o azar de ser friamente executado na frente da família toda. Além dessas técnicas cruéis, o estupro coletivo era uma prática comum.

As atrocidades dos colonos e soldados franceses foram alimentando cada vez mais a revolta do povo argelino, que apoiava as ações dos movimentos organizados de resistência por libertação.

Em 30 de setembro de 1956, Samia, Zohra e Djamila, todas com aparência ocidental, entraram na Argel europeia carregando bombas em cestos. Zohra foi designada para explodir o Milk Bar e Samia uma cafeteria. 

Após esses atentados e a retomada desses territórios, ocorreram também as primeiras prisões de mulheres, que foram violentadas e torturadas nas mãos da polícia francesa. A partir disso, a repressão nas ruas endureceu. Zohra foi presa e Hassiba foi morta. 

A cobertura da imprensa e a atenção internacional a todos esses eventos foi um importante ponto de virada na luta pela independência, com intensa atuação da FLN em outros atentados e manifestações de argelinas e argelinos em Argel.

E então o véu foi novamente retomado, como uma estratégia necessária para a luta, e adotado o estereótipo criado pelo colono, pois não bastava apenas reutilizar o haik para carregar uma arma escondida. Como explicou Cadidja, “era necessário passar a imagem de uma mulher comum para continuar transitando dentro da cidade inimiga”. 

A conquista colonial é masculina

Para o colonizador, poder enxergar o rosto da mulher argelina sob o véu significa desmobilizar os valores culturais de uma sociedade, uma vez que o véu tem um significado tradicional. O colono entende que, para quebrar a resistência cultural, ele precisa invadir, penetrar essas mulheres.

Essa é a análise que Fanon compartilha em “Sociologia da Revolução”, a de que é possível “compreender uma doutrina política precisa [na administração colonialista]: ‘se desejamos [a colônia francesa] atacar a sociedade argelina em seu contexto mais profundo, em sua capacidade de resistência, devemos em primeiro lugar conquistar as mulheres; é preciso que as conquistemos, atrás dos véus sob os quais se escondem, nas casas onde os homens as escondem’”.

Com base nesse objetivo, o discurso maquiado em defesa das mulheres foi abraçado por muitos movimentos feministas brancos do ocidente, que adotaram uma agenda carregada de armadilhas e de um desejo sádico de violação.  

Cadidja explica que o colonialismo pode ser tratado como uma forma masculina de invasão. “As experiências de colonização nos mostram que os colonizadores utilizam métodos como o estupro de mulheres locais, indígenas, como parte do processo de dominação. O primeiro território a ser contestado se dará a partir do estupro e da violência contra as mulheres, para que a penetração no território e a conquista colonial seja ainda mais eficaz”.

No caso da colonização francesa na Argélia essa dominação não se limitou apenas ao campo discursivo. Cadidja conta que em 13 de maio de 1958 ocorreu uma cerimônia, organizada pelos franceses, para o desvelamento das mulheres argelinas. 

Com um discurso de emancipação, os véus das mulheres, que estavam em um palco, foram retirados, no que se pode considerar uma verdadeira violação coletiva. “No período da guerra, a França mobilizou o movimento feminista francês para os seus próprios objetivos colonialistas. “Esse evento é muito simbólico e significativo e a gente vê isso ainda hoje. Pensando no feminismo ocidental, o que temos é uma ideia de que uma das primeiras manifestações feministas é francesa, ou se tem como referência a queima dos sutiãs. Mas o feminismo colonial nos impede de enxergar muitas outras diferenças”, apontou. 

Revolução, substantivo feminino

Pensei inicialmente em traçar perfis das mulheres argelinas mais conhecidas, de valentia inspiradora. Mas ouvindo o que Cadidja tinha para falar, tendo como bagagem sua atual pesquisa de mestrado, compreendi que bem mais do que o famoso grupo de amigas argelinas revolucionárias, existiam muitas outras envolvidas no levante por liberdade.

Não eram somente as mulheres que explodiam cafés, transportavam armas, bombas ou que entregavam mensagens as que fizeram a revolução acontecer. Eram também as que cuidavam dos filhos, que aguardavam notícias dos parentes desaparecidos, as enlutadas pelos mortos pela polícia francesa. Eram enfermeiras, professoras, domésticas.

“Existia uma atuação ampla, desde a guerrilha até a própria casa. Porque as pessoas que têm seus filhos na guerrilha também estão em uma luta diária. Foi uma luta em massa e é muito importante que a gente traga essas mulheres para a nossa atualidade, por uma nova perspectiva de construir a vida”, reflete Cadidja.

Para ela, a Revolução Argelina deveria ser referência de luta das mais importantes e, por consequência, o feminismo decolonial. 

Para o nosso caso, ao nos afastarmos das mulheres indígenas e negras em luta, nos distanciamos de quem somos. “Elas precisam ser colocadas no centro das discussões, porque são essas mulheres as que estão na base da opressão no Brasil, na base da opressão colonial e na linha de frente das lutas. São as primeiras a morrer, a serem violentadas, as que têm mais dificuldade de encontrar emprego, de defender a própria família, então é com essas mulheres que precisamos estar juntos”, defendeu Cadidja.

Dessa maneira seria possível garantir melhor a reorganização de nossas pautas com a orientação de raça e de classe mais adequada para nossa história.

E, assim como Fanon, defender as diferenças tal como a igualdade, desconstruindo qualquer organização hierarquizada com base na diferenciação humana. 

“A partir de sua experiência profundamente atuante na Revolução Argelina, Fanon acreditava que a revolução anticolonial carregava a possibilidade de nascerem novos homens e novas mulheres”, detalha Cadidja. 

Para ela, é muito importante compreender esse movimento e divulgar mais sobre a relação entre Brasil e Argélia, uma vez que o país foi palco de uma revolução e recebeu muitos revolucionários brasileiros envolvidos na luta contra a ditadura civil-militar brasileira. 

“Há uma relação nossa pouco conhecida e que talvez poderia ser um pouco melhor estabelecida para pensarmos as organizações e os laços de solidariedade entre as lutas dos movimentos negro, indígena, sem terra e tantos outros. Para fortalecer a luta contra a fome, o Bolsonaro e seu governo genocida, que aplica a necropolítica e mata o povo brasileiro. Para mim, é importante termos não somente em Fanon, mas também nas mulheres argelinas e na própria experiência da Revolução Argelina uma fonte de inspiração”, defende Cadidja.

“A gente precisa, não é? A gente tem que continuar essa luta, a gente tem que aprender com os que vieram antes pra continuar essa luta. E é nesse sentido, do ponto de vista feminista e antifascista, que eu enxergo a Revolução Argelina enquanto uma referência”, conclui.

Eu me inspiro muito nessas mulheres. Muito mesmo. Em Djamila Bouhired, Samia Lakhdari (minha xará), Zohra Drif, Hassiba Ben-Bouali, nas mães, avós, primas, companheiras anônimas, em Cadidja Pinto e várias outras irmãs de luta.

Espero que estejamos, todas nós, de todas as cores, origens e raças, obstinadas e irmandadas em busca de desvelar quem nos oprime e coloniza. Que sobre nossos corpos, tenhamos somente nossa liberdade, nossas escolhas e nossos sonhos. E véus, a quem desejá-los ou a quem for necessário. Porque a luta é presente.

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Sâmia Teixeira é mãe de gêmeas e jornalista. Foi assessora da União Nacional Islâmica, onde criou o jornal Iqra. Atualmente integra a comunicação da Rede Sindical Internacional de Solidariedade e Lutas, escreve sobre movimentos sociais e mundo sindical internacional.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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