10 anos depois, mulheres que participaram das ocupações secundaristas relatam legados do movimento

Em 2015 e 2016, estudantes de todo o país ocuparam escolas por educação de qualidade

Por Beatriz de Oliveira

10|07|2025

Alterado em 10|07|2025

Prestes a completar uma década, as ocupações secundaristas de 2015 e 2016 foram um marco na educação brasileira e na organização política da juventude. Ao transformar escolas em suas casas por alguns meses, estudantes periféricos aprenderam e ensinaram sobre a luta por direitos. Nesta reportagem, mulheres que participaram desse movimento contam suas experiências e como esse período moldou suas trajetórias de vida.

As ocupações secundaristas começaram no estado de São Paulo, como uma resposta  a uma proposta de reorganização da rede escolar pelo governo de Geraldo Alckmin (PSDB, na época). O plano, anunciado em 23 de setembro de 2015, previa o fechamento de 93 escolas estaduais e a separação das unidades escolares, de modo que cada uma passasse a oferecer apenas um dos ciclos da educação (ensino fundamental I, ensino fundamental II ou ensino médio). 

Em 9 de novembro do mesmo ano, a Escola Estadual Diadema, na região metropolitana de São Paulo, se tornou a primeira a ser ocupada. Logo, o movimento se espalhou e alcançou mais de 200 escolas em todo o estado. Manifestações nas ruas também fizeram parte da mobilização dos estudantes. Ao passo que a violência policial era constante.

No dia 4 de dezembro, o governo revogou a medida de reorganização escolar. No entanto, os estudantes continuaram em ocupação para reivindicar mais participação na gestão escolar, melhoria da infraestrutura das escolas e valorização dos professores.

A partir da luta travada em São Paulo, estudantes de vários estados do país também começaram a organizar ocupações em suas escolas e se mobilizaram contra medidas regressivas nas políticas educacionais. Posteriormente, o protesto contou com um motivo em comum para todo o território nacional: a luta contra a reforma do Ensino Médio e a PEC do Teto de Gastos, propostas pelo governo federal de Michel Temer. Mais de mil escolas foram ocupadas em todo país.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55/2016, conhecida como PEC do Teto de Gastos, previa o congelamento de gastos do governo federal em 20 anos, de 2017 a 2036. Na prática, a medida, promulgada em dezembro de 2016, diminuiu recursos destinados para áreas como educação e saúde.

Já a reforma do Ensino Médio, apresentada em setembro de 2016, propunha flexibilizar o ensino desse ciclo, estabelecendo disciplinas obrigatórias e opcionais. A Lei 13.415 que definia a reforma foi sancionada em fevereiro de 2017 e vigorou até 2024, quando foi aprovada a lei nº 14.945/2024, que estabelece a Política Nacional de Ensino Médio.

Segundo o artigo “Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016: sujeitos e trajetórias”, as ocupações foram marcadas por questionamento de identidades de gênero. “As mulheres repensam sua condição feminina e secundas [abreviação de secundaristas] reconstituem as relações de gênero, aplicando e desenvolvendo um feminismo secundarista e popular”, indica o texto. E acrescenta: “esse deslocamento teria permitido que outras identidades classicamente subalternizadas também viessem a ser ressignificadas e trazidas ao centro durante o movimento estudantil: pessoas de orientação sexual LGBTQIA+ e pessoas negras”. 

A fim de tratar desse cenário a partir do ponto de vista de quem o protagonizou, conversamos com três mulheres que participaram das ocupações secundaristas. Elas contaram como agiram durante as ocupações, o que consideraram mais marcante no movimento e como esse período impactou suas trajetórias.

Confira os relatos!

“Ter mulheres na linha de frente era algo inevitável”

Marcela Jesus é atriz, performer, ativista cultural e comunicadora. É criadora do programa “Dichavando meus traumas”, em que aborda assuntos delicados que são ditos na mesa do bar. É uma das protagonistas do documentário “Espero Tua (Re)volta”, que acompanha três jovens do movimento estudantil, que ganhou força a partir do ano de 2015 com a ocupação de escolas estaduais por todo o Brasil.

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Marcela Jesus participou das ocupações secundaristas © arquivo pessoal

© arquivo pessoal

Marcela durante as ocupações © arquivo pessoal

Marcela participou de manifestações por uma educação de qualidade © arquivo pessoal

Na época, meu professor de filosofia chegou em uma das suas aulas nos perguntando se estávamos sabendo sobre a reorganização escolar que estava acontecendo. A gente não sabia de nada até então. A partir disso, começamos a nos organizar e foi no dia 16 de novembro de 2015 que decidimos ocupar a Escola Estadual João Kopke, em Campos Elíseos, na cidade de São Paulo (SP). Nos organizamos de maneira autônoma e foi assim até o fim da nossa ocupação. Organizamos os lugares que não tínhamos acesso antes das ocupações, como a biblioteca e sala de mídias. Eu comecei a ser uma das lideranças, ter mulheres na linha de frente era algo inevitável.

O que mais me marcou no movimento secundarista foi conseguir entender que juntos somos capazes de fazer uma única voz, um único coro. Foi conseguir enxergar que mesmo com medo, eu não estou sozinha e que dentro de cada escola pública, existe um poder popular – apesar de muitos duvidarem de sua capacidade.

⁠Eu sempre digo que não sei o que seria da Marcela adolescente se não houvesse o movimento secundarista. O movimento me deu visão de vida, me mostrou o lugar que pertenço e as problemáticas que cercam esse lugar, me deu esperança de um futuro para além de uma carteira assinada. Antes das ocupações, a Marcela adolescente queria trabalhar em um banco, porque essa era a única forma que via de ter uma vida confortável. Depois das ocupações, a Marcela adolescente quis ser grande, quis os palcos, quis a arte; e mesmo que essa escolha não tenha deixado a vida ser confortável, meu peito anseia pela arte aonde quer que eu esteja.

“A ocupação foi um grande momento de descobertas na minha vida”

Luiza Akimoto é cantora, compositora e comunicadora social, originária da Brasilândia, periferia de São Paulo (SP). Participou do podcast Cria Histórias, no episódio “O que Aprende?”, que investiga e questiona o impacto da Educação formal na trajetória de crianças, adolescentes e jovens no Brasil, a partir das Ocupações Secundaristas de 2015. 

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Luiza Akimoto participou das ocupações secundaristas © arquivo pessoal

Luiza durante as ocupações © arquivo pessoal

Luiza durante as ocupações © arquivo pessoal

Ocupei a Escola Martin Egídio Damy em 2015. Estava no terceiro ano do ensino médio, mas já estudava na mesma escola desde a quinta série, então, sabia muito bem das virtudes e problemáticas daquele espaço. Fiquei grande parte do tempo da ocupação promovendo eventos culturais e artísticos, movimento que já fazia (com muita luta) anos antes, mas que nas ocupações, comecei a entender no corpo a possibilidade da arte como ofício.

O que mais me marcou nesse período foi o sentimento de pertencimento àquele espaço. A escola passou a ser a minha casa. Chegava do trabalho e ia direto para a escola. Lá, eu tomava banho, jantava, participava de cines debates, ficava compondo músicas com meus amigos e colegas de bairro até mais tarde. Me sentia segura e amada por todos.

A ocupação foi um grande momento de descobertas na minha vida. A escola se tornou refúgio de muitas coisas tortas que aconteciam no trabalho e na família. Nas ocupações, eu pude ser eu mesma! Certamente, o que marcou e deu uma virada na minha cabeça, foi vivenciar a arte no cotidiano, conhecer artistas independentes de quebrada. Foi ali que ganhei a referência que era possível, eu, favelada, mulher e sapatão viver de música. Que a arte não era só um hobby ou coisa de gente com dinheiro, sabe? Era pra mim também!

Esse ano faz 10 anos de ocupação! Colocar luz nessa história depois de uma década é resistir ao apagamento e esquecimento da luta dos jovens periféricos, daqueles que hoje seguem vivos na luta pelos direitos de existir no território.

“O que mais me marcou foi o pertencimento ao espaço escolar”

Camila Lanes é formada em Letras, cursa Marketing, é ativista no combate à desinformação e à extrema direita nas redes sociais. Na época das Ocupações Secundaristas era presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes).

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Camila Lanes era presidente da Ubes durante as ocupações secundaristas © arquivo pessoal

Camila ao lado da irmã em ocupação © arquivo pessoal

Camila Lanes era presidente da Ubes durante as ocupações secundaristas © arquivo pessoal

Camila durante as ocupações © arquivo pessoal

Camila visitou ocupações em todo país © arquivo pessoal

Eu fui eleita presidente da Ubes no dia 15 de novembro de 2015, em Brasília, no Congresso Nacional da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, na época eu tinha 19 anos e esse congresso reuniu mais de 7 mil estudantes. E em paralelo a esse congresso, já ocorriam em São Paulo as ocupações de algumas escolas. Depois que fui eleita em Brasília, fui direto para São Paulo fazer parte de todo o circuito de ocupações. A minha participação era baseada em conseguir dar auxílio jurídico e estruturar as ocupações. Eu lembro que eu passei mais de dois meses indo de escola em escola com alimentos obtidos a partir de uma campanha de arrecadação.

A minha participação se deu em várias camadas, eu tive o privilégio de conhecer os 27 estados brasileiros e isso se deu devido ao volume de ocupações. Eu viajava o Brasil todo tanto para conhecer as ocupações, como também para fazer auxílio jurídico. Como era um movimento novo no Brasil, a própria polícia militar não sabia como tratar esses estudantes. Eu cheguei a ser presa na primeira ocupação que eu fui visitar, numa escola da zona leste de São Paulo.

O que mais me marcou foi o pertencimento ao espaço escolar. Eu vi escolas que estavam caindo aos pedaços e que a comunidade ergueu muros, pintou, fez momentos de recreação aberta para os pais dos alunos ocupados. Os estudantes passavam o dia na escola, tendo aulas livres, como artes, lutas, dança e teatro. Eu vi estudantes se preocupando não só com o seu umbigo, não só com com a sua realidade, mas que de fato compreenderam a profundidade da escola naquele espaço geográfico. Quando a gente fala em ocupação, muitas pessoas remetem a um movimento em que estudantes ficavam o dia inteiro soltos dentro de uma escola, mas isso não é a realidade, pelo contrário; a gente conseguiu compreender a complexibilidade da administração de gerenciar financeiramente um espaço como uma escola, e da divisão igual das tarefas.

A partir das ocupações, eu me renovei como figura. Eu era uma menina muito lutadora, mas a partir do momento das ocupações eu pude me conectar muito mais com um lado meu que eu nunca tinha aflorado de fato, que é a parte da comunicação, que é a parte da estratégia. Foi durante as ocupações que eu tive, por exemplo, aulas sobre fotografia, audiovisual e edição. Foi nas ocupações que eu pude conhecer mais a complexibilidade, o desafio que os nossos professores têm dentro das salas de aulas a partir do meu estudo.

De fato, as ocupações elas trouxeram uma grande vitória política para nós. O então presidente Michel Temer conseguiu estabelecer o teto de gastos e cortar muitas das políticas de investimento na educação. Mas, mesmo assim, nós tivemos um grande ganho. Foi uma luta de estudantes de todo país e isso é muito bonito. Esse reconhecimento da importância da educação, essa proximidade com a comunidade nos espaços da escola e, acima de tudo, a valorização e a defesa da educação são as coisas que mais me impressionaram. Me marcou muito entender que impactamos uma geração inteira de jovens que até hoje levam no seu DNA a importância da defesa da educação.