Qual o impacto da Guerra às Drogas nas periferias e no aprofundamento do racismo?

Nathália Oliveira, da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, conversou com o Nós e apontou caminhos possíveis para a diminuição dessa violência que para ela passa pela descriminalização e legalização das drogas, informação e vontade política.

Por Bianca Pedrina

24|06|2021

Alterado em 24|06|2021

Como a “Guerra às Drogas” promovida pelo Estado e o poder público para o combate ao tráfico ou às facções criminosas impacta as favelas e periferias? Essas ações são feitas majoritariamente nesses territórios e acabam em mortes de inocentes e medo constante de quem vive nessas localidades.

O caso mais recente é o de Kathlen de Oliveira Romeu, 24 anos, que estava grávida, e foi morta durante uma batida policial com troca de tiros, no Complexo do Lins, na zona norte do Rio de Janeiro.

Essa violência incide, principalmente, na realidade de pessoas negras, que são a maioria da população nesses contextos, por conta das desigualdades provocadas pelo racismo.

“Em um país racista como o Brasil, em que o cano do revólver é apontado só para as periferias, criou-se uma justificativa e um imaginário de que o tráfico de drogas acontece apenas nas favelas, o que não é verdade. Já está comprovado que o tráfico é uma indústria transnacional da ilegalidade”, defende Nathália Oliveira, da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas.  

A guerra às drogas impacta no encarceramento em massa e em uma estrutura punitivista que não resolve o problema em sua raiz, ao contrário, perpetua “um amplo exercício de controle e de violência, sobretudo por parte das forças de segurança pública em territórios mais vulneráveis”, argumenta.

No Brasil, de acordo com dados do Fórum de Segurança Pública, em 2019, 66,7% das pessoas encarceradas eram negras e 32,3% brancas, o que demonstra que o alvo é a população negra.

Outro dado de alerta desse mesmo levantamento aponta para a prisão de 65% de mulheres acusadas de tráfico de drogas, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional.

A Lei de Drogas datada de 2006 aumentou expressivamente o encarceramento em massa com crescimento de 209% da população encarcerada entre 2005 a 2019. Outros dados e mais informações sobre o tema também podem ser conferidos em matéria especial feita pela Ponte Jornalismo. 

Nathália conversou com o Nós e apontou caminhos possíveis para a diminuição dessa violência que, para ela, passa pela descriminalização e legalização das drogas, informação e vontade política.

“Essa proibição fortalece a manutenção de estruturas racistas, com a ação da segurança pública, do sistema de justiça, e, no caso do Brasil, é uma boa justificativa para manutenção das desigualdades e relações racistas por parte do Estado, de acordo com a população para onde essa política pública é dirigida”, aponta. Confira:

Nathália Oliveira, da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas. Crédito: Arquivo pessoal

NMP: O que significa o conceito de “Guerra às drogas”?

Nathália: É a tentativa falha de combate ao uso de substâncias psicoativas que não estão regulamentadas e são consideradas ilegais. Para isso, é desenvolvido um amplo exercício de controle e de violência, sobretudo por parte das forças de segurança pública em territórios mais vulneráveis.

Cannabis (Maconha), LSD (Dietilamida do Ácido lisérgico), conhecido também como “doce” ou ácido, derivados de cocaína são consideradas substâncias ilegais. Outras substâncias que também são psicoativas, mas que são consideradas legais para o consumo e venda, são o álcool e cigarros e algumas medicações.

NMP: Por que substâncias psicoativas como álcool e cigarros são legalizadas e outras não?

Nathália: O álcool já foi uma substância proibida no início do século 20. O país que mais empreendeu uma guerra contra seu consumo foi os Estados Unidos, que decidiu abandonar essa estratégia justamente por perceber que essa perseguição, além de fortalecer o crime organizado, também fazia com que as pessoas consumissem substâncias de péssima qualidade.

O cigarro já foi amplamente incentivado, no entanto, a partir das décadas de 70 e 80, depois dos malefícios causados à saúde pelo seu uso, iniciou-se uma campanha com o alerta sobre esses danos. A OMS [Organização Mundial da Saúde] começou a orientar os países para regulamentar sua circulação.

Essas substâncias, em especial o álcool, foram regulamentadas após o entendimento de que sua proibição fortalecia o crime organizado e enfraquecia o Estado, além de abrir um mar de corrupção, e fazer com que as pessoas fossem prejudicadas em sua saúde, por não saberem a procedência do que estão consumindo.

As outras substâncias permanecem sendo proibidas por uma opção política, que é a opção de guerra às drogas. Existem vários motivos para que a proibição seja da maconha, da cocaína, mas, sobretudo, opções políticas que vão se adequando em cada país.

Essa proibição fortalece a manutenção de estruturas racistas, com a ação da segurança pública, do sistema de justiça, e, no caso do Brasil, é uma boa justificativa para manutenção das desigualdades e relações racistas por parte do Estado, de acordo com a população para onde essa política pública é dirigida.

Crédito: Agência Brasil

NMP: Como ela impacta na vida das pessoas negras e moradoras das periferias, comunidades e favelas?

Nathália: O impacto disso no Brasil e em várias partes do mundo é que essa guerra é direcionada e prejudica parcelas mais vulneráveis da sociedade. O grande problema é que não existe guerra contra substâncias, existe contra pessoas, com reflexos mais nocivos aos moradores negros e das periferias.

No caso de um país racista como o nosso, negros e moradores das periferias sofrem com a guerra às drogas diretamente, inclusive, de uma maneira mais violenta. Em um país racista como o Brasil, em que o cano do revólver é apontado só para as periferias, criou-se uma justificativa e um imaginário de que o tráfico de drogas acontece apenas nas favelas, o que não é verdade. Já está comprovado que o tráfico é uma indústria transnacional da ilegalidade.

NMP: A legalização das drogas ainda é tabu na sociedade pelos danos que essas substâncias causam em muitas famílias. Quais argumentos podem ser usados para justificar esta legalidade?

Nathália: A justificativa de legalização das drogas, assim como descriminalização ou regulamentação, é tabu, sobretudo, por conta de muitos mitos e desinformação. No caso de danos em muitas famílias, isso se dá por conta da proibição. Porque como o debate fica interditado e proibido, as pessoas não têm acesso à informação segura, uma prevenção distante de mitos, tampouco da qualidade da substância que esses usuários estão consumindo.

Ainda que essas substâncias possam causar danos para algumas pessoas, não é a maior parte delas que faz uso de drogas que irão desenvolver um uso crônico. Um exemplo disso é o caso do álcool, que é uma droga que muitos experimentam e seguem ao longo da sua vida consumindo, não se tornando alcoolistas.

Neste sentido, a justificativa principal para a legalidade, além do acesso à informação, a qualidade da substância consumida e, sobretudo, a regulamentação de uma indústria que já existe – o fato de ser proibido não impede essa existência –  é justamente que pagamos um preço muito alto, com pessoas perdendo a vida todos os anos e sendo encarceradas, contexto esse que também provoca a destruição de muitas famílias. É um preço alto e que não vale a pena para a sociedade.

Dentro de uma esfera regulamentada, inclusive, poderíamos ter muito mais recursos para poder não apenas trabalhar a prevenção, como ter tratamento de qualidade para as pessoas que venham a desenvolver o uso abusivo.

NMP: O que seria prevenção às drogas distante de mitos?

Nathália: Via de regra, a prevenção às drogas é feita por meio de uma metodologia chamada de amedrontadora – em que se espera ao passar as informações que deixem as crianças ou adolescentes com medo eles não fossem fazer o uso dessas substâncias. Essa lógica é baseada em um método criado nos Estados Unidos. O programa feito neste país inspirou o nosso Proerd [Programa Educacional de Resistência às Drogas].

Chamamos de mito porque não é verdade que se a pessoa usar esse tipo de substância imediatamente ela se tornará dependente. Neste sentido, os jovens, sem a informação adequada, mesmo sabendo que de alguma maneira não estão correspondendo a um padrão esperado da sociedade, percebem que não se tornam dependentes logo de cara. Por isso, essa educação baseada no medo e no mito é falha, porque essas orientações não correspondem à realidade.

Uma prevenção distante disso incide em passar as informações desde a infância, em coletivos ou espaços escolares – que são o primeiro contato de socialização desses indivíduos, que seja pautada na educação das emoções para lidar com conflitos, além de informações que não subestimem a inteligência desses jovens.

Outro fator que pode ajudar é termos profissionais de referência tanto nas UBS [Unidades Básicas de Saúde] quanto nas escolas, ou em outros dispositivos do território, que façam com que esse adolescente, ao se envolver em algum conflito, possa buscar nesses espaços apoio e orientação.

NMP: Qual a diferença entre legalizar, regulamentar ou descriminalizar as drogas?

Nathália: Descriminalizar é fazer com que uma conduta deixe de ser crime, não prescrevendo a maneira de regular essa relação. Então, no caso das drogas, faria com que a conduta de uso ou de mercancia deixe de ser ilícita. No entanto, não é criada uma legislação que regule essa indústria.

Por isso, temos usado muito o termo regulamentação, porque, com ela, você traz para esfera pública e privada os acordos para regulamentar toda a cadeia de comercialização e distribuição dessas substâncias.

NMP: Como a guerra às drogas está atrelada ao encarceramento em massa e como isso impacta na sociedade?

Nathália: O fato de o tráfico de drogas ser equiparado a um crime hediondo, porque é entendido como uma crise contra a saúde pública, faz com que as pessoas que estão respondendo a delitos relacionados tenham que cumprir uma parte da pena em regime fechado, ou seja, nas prisões.

O resultado disso é um aumento exponencial do encarceramento em massa, não só no Brasil, mas em outros países do mundo, inclusive, nos Estados Unidos, cujo país é o que mais encarcera, por esse motivo tem revisto as suas leis de drogas, sustentado na diminuição das prisões.

NMP: A Lei de Drogas data de 2006 e é tida como uma das principais responsáveis pelo crescimento da população prisional do país. Como isso afeta principalmente jovens negros nas periferias?

Nathália: A Lei de Drogas no Brasil prevê muitas condutas que podem ser tipificadas como tráfico de drogas ou associação ao tráfico. Existem muitas maneiras de enquadrar um sujeito, mesmo sem a posse de drogas, como é o caso do tráfico de drogas.

A polícia atua de maneira mais violenta e truculenta, para não dizer criminosa, nas diversas periferias do Brasil. No caso do tráfico de drogas, é quase uma licença aberta para prender pessoas em qualquer circunstância dentro das favelas.

Estudos comprovam que pessoas presas por tráfico ou por delitos relacionados às drogas, em 70% desses casos só têm como testemunha os próprios policiais que acompanharam a ação. Isso faz com que esses policiais tenham autonomia para acusação. O próprio Ministério Público não investiga as circunstâncias da prisão, e isso vai fazendo com que muitos jovens negros das periferias sejam presos, acusados, muitas vezes, sem ter drogas, ou com quantidades muito pequenas. É um preço muito alto, muitas vezes um jovem ser preso por isso e ter toda a sua vida afetada por essa condição.

NMP: A descriminalização é um jeito de combater o racismo?

Nathália: Uma nova política de drogas é fundamental para o combate ao racismo, uma vez que a atual política para esse combate tem efeitos mais danosos para a população negra. Por isso, é importante que se aponte saídas para além da descriminalização, mas a regulamentação de toda essa indústria, para que a sociedade possa se beneficiar e ter um controle sobre isso, porque hoje não é o que acontece, esse controle é das facções criminosas, do crime internacional, então, é importante que a sociedade e o Estado se apropriem disso.

Pode ser um caminho para o combate ao racismo também na medida em que isso pode gerar renda, que pode ser revertida em impostos para o desenvolvimento de mais políticas públicas de combate ao racismo.

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