Pretas Bás: mulheres de axé cuidam de espaço cultural em SP
O Chá das Pretas Bás acontece às terças-feiras, a partir das 14h, no Espaço Cultural Adebanke, em Artur Alvim, zona leste de São Paulo (SP).
Por Lívia Lima
03|08|2022
Alterado em 03|08|2022
Um chá entre amigas, com as vizinhas. Uma pausa na rotina para uma conversa, uma troca, uma partilha. Um encontro terapêutico. Esta é a proposta que Angelina, Graça e Marlene oferecem todas as terças-feiras, a partir das 14h, no Espaço Cultural Adebanke, em Artur Alvim, zona leste de São Paulo (SP). É o Chá das Pretas Bás.
Quando tiveram a ideia do encontro, a motivação era convidar moradoras dos bairros da região, donas de casa, mulheres idosas, para que saíssem de casa e parassem um pouco seus afazeres para conversar. Elas se surpreenderam, no entanto, com a presença de pessoas mais jovens, artistas e militantes – os “filhos” – que elas acolhem no Espaço Cultural Adebanke, local que fundaram e administram há 10 anos, ao lado da estação de metrô Artur Alvim, embaixo do viaduto.
Excepcionalmente, as Pretas Bás me encontraram em uma segunda-feira, fora do horário convencional. Mas o que era para ser uma entrevista, se transformou em mais uma edição do chá. Me serviram biscoitos, pipoca, café, achocolatado. A mesa ficou farta. E, então, elas me contaram sua história.
As Pretas Bás são Angelina Aparecida Reis, 65, moradora do Burgo Paulista, Maria da Graça Araújo – a Gracinha, 69, e Marlene Santana, 57, ambas moradoras do Jardim Nordeste, assim como eu. Elas se conhecem há mais de 40 anos, desde o início da militância delas nos ‘Grupos de União e Consciência Negra’, criados nos início dos anos 80 na Igreja Católica.
As Pretas Bás são Angelina Aparecida Reis, 65, moradora do Burgo Paulista, Maria da Graça Araújo – a Gracinha, 69, e Marlene Santana, 57, ambas moradoras do Jardim Nordeste.
©Lívia Lima
“Foi nessa militância que a gente se conheceu. A Graça eu conheci primeiro. Dentro deste grupo a gente tinha um trabalho a nível estadual e nacional e num desses encontros eu encontrei a Graça lá no Largo São Francisco, que era um lugar onde realmente o povo se encontrava, principalmente pessoas de luta”, conta Angelina.
Graça era moradora do Jardim Riviera, região do Jardim Ângela e Capão Redondo, na zona sul. Depois se mudou para a zona leste de São Paulo.
“Aí a Graça veio também para um encontro nosso aqui no núcleo do Burgo Paulista através da Elvira que é uma companheira que a gente fala muito porque foi ela que trouxe o Grupo de União e Consciência Negra pro Burgo Paulista”.
Nos registros que encontro disponíveis na internet sobre os Grupos de União e Consciência Negra da Igreja Católica, o nome de Elvira consta como Relações Públicas do movimento. Esses grupos se constituíram no contexto da Teologia da Libertação da Igreja Católica, fortemente ligada às questões sociais e ao enfrentamento à ditadura.
Nas atas das primeiras reuniões para formulação dos grupos, realizadas entre 1978 e 1979 em Brasília e São Paulo, constam as reflexões: “A escravidão é um “pecado estrutural”. Nós sabemos que os conventos tinham seus escravos. Estudos recentes têm mostrado como congregações religiosas, não só tinham escravos mas faziam tráfico (….) A atitude da Igreja deve mudar: em lugar de irmos aos Negros para convertê-los, deveríamos dar condições para que eles venham a nós e nos convertam”.
“Então a gente começa quando começou a criar grupo de negros, MNU (Movimento Negro Unificado – fundado em 1978), né? Eles ficaram muito mais com a parte política, mas a nossa luta começa praticamente juntas”, afirma Angelina.
Os Grupos União e Consciência Negra foram oficialmente instituídos em fevereiro de 1981, em um encontro de sacerdotes, religiosos e leigos negros com a presença de 25 pessoas no Capão Redondo, na zona sul de São Paulo e se expandiram por todo o Brasil.
“Agora faz uns quatro, cinco anos que eu estou mais pra cá na zona leste fazendo esse trabalho e conheci a Marlene através também de nossa luta”, relata Gracinha.
“E nesses encontros, inclusive foi na minha casa, eu encontrei com a Marlene, através do meu irmão, o meu irmão a conhecia do samba. Depois ela pode contar um pouquinho. Aí ele falou que eu participava como militante do grupo de consciência negra e a Marlene quis saber um pouco mais”, explica Angelina.
“Eu conheci o irmão dela, Gaspar, até então eu não participava de nada, estava prestes a iniciar um trabalho cultural, e fui conhecer. Teve uma reunião lá no Burgo e eu fui e cheguei num momento bem estratégico, estavam discutindo uma assembleia em nível nacional. E aí eu falei: nossa isso aqui muda a história, alguma coisa me chamou atenção. Nessa época eu era umbandista. E meu pai tocava atabaque. E com ele desencarnado, começou a nascer em mim, hoje entendo que é um bastão, meu ancestral, vem de uma de uma herança”.
Hoje, assim como Angelina, Marlene é ekedi no Candomblé. Graça também participa da religião. Para elas, o trabalho no Espaço Cultural Adebanke é uma extensão da espiritualidade que compartilham.
“A questão das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) naquela época realmente era muito forte, tanto que pipocava movimentos na leste. Tinha grupo de tudo e qualquer jeito lutando por justiça e igualdade neste mundo. E depois que vai enfraquecendo bastante esse setor da igreja, a gente também está fortalecida enquanto Grupos União e Consciência Negra. E aí a gente vai buscar também as nossas origens, buscar quem são os nossos orixás. Não adianta a gente falar sem tá sentindo na pele, conhecendo, e foi onde a gente foi buscar, no candomblé”, explica Angelina.
“Não basta só lutar, mas também tem essa espiritualidade, que faz com que a gente se energize mais e queira mais resultado. E dentro dela também a gente tem um conhecimento do solo, das plantas e tudo mais, como que é tão rico essa religião que ela traz tudo isso, né? E muitas vezes as pessoas menosprezam, sem saber realmente o que é o candomblé, as religiões de matrizes africanas”, conclui.
Mãos que cuidam da cultura
Há 10 anos as Pretas Bás realizam a gestão e organização do espaço, com apoio de mais dois parceiros que também fazem parte da associação, hoje formalizada.
©Lívia Lima
O Chá das Pretas Bás acontece todas as terças-feiras, a partir das 14h, no Espaço Cultural Adebanke e é aberto para quem tiver interesse em encontrar com Angelina, Graça e Marlene. Além dele, existem outras atividades fixas e outras que são esporádicas na programação.
Atualmente, todo 1º sábado de cada mês, as pretas lideram o preparo e distribuição de um café da manhã para pessoas em situação de rua do entorno do centro comunitário, um espaço que fica embaixo do viaduto ao lado da estação Artur Alvim do metrô.
Todos os sábados também tem acontecido orientação jurídica gratuita, em parceria com uma advogada voluntária e a partir de julho teve início o projeto Roda Terapêutica das Pretas, com encontros e atendimentos psicológicos.
Durante a semana, acontecem aulas de capoeira, exibições de cinema e está prevista a organização de um sarau. Alguns coletivos culturais promovem outras intervenções e apresentações artísticas pontualmente no espaço. No Boteco das Pretas, que acontece em fins de semana, há apresentações de dança, música, teatro e outras manifestações artísticas.
Há 10 anos as Pretas Bás realizam a gestão e organização do espaço, com apoio de mais dois parceiros que também fazem parte da associação, hoje formalizada.
“Nós temos um planejamento que a gente se reúne no início de janeiro após o dia seis, o anual. E aí a gente vai trabalhando as possibilidades, as propostas que já tem na casa que é justamente para articular com o nosso voluntariado – até hoje. A gente fazia alguns eventos pra poder trazer alguma renda para manutenção do espaço, para não deixar com que a gente não conseguisse pagar as coisas básicas. E é assim que a gente trilha, né?”, esclarece Marlene.
O Espaço Cultural Adebanke conta com três pequenos e simples cômodos, onde ficam instalados a cozinha, banheiro e sala para encontros, uma ampla área externa, onde acontecem as apresentações culturais e onde as pretas cultivam as plantas e ao fundo do local, há uma quadra esportiva.
Tudo começou quando, dentro do movimento dos Grupos de União e Consciência Negra, elas se envolveram com os núcleos artísticos e, em conversa com integrantes do setor público, se comprometeram a cuidar desse espaço público que estava abandonado, servindo de moradia provisória para pessoas em situação de rua.
Elas ocuparam e iniciaram as atividades servindo um almoço no fim de semana, com frango e angu, e venderam ingressos para poder providenciar os ingredientes. Não imaginavam que seria um sucesso, e que viria muita gente, o que continua em todas as atividades que organizam no espaço.
“Passamos a noite toda, de sábado para domingo, cozinhando, aí fizemos aquele panelão porque já tinha convite vendido, trouxemos fogão, alugamos mesa e foi na quadra. E no domingo de manhã a gente entrou aqui dentro, cinco horas da manhã. Tinha gente aqui (usuários de drogas) porque eles pulavam. Aí nós pedimos licença, falamos: ‘olha, a gente veio porque hoje se inicia um trabalho de cultura nesse espaço. Se vocês quiserem tá vindo com a gente, maravilha. Se não quiser, eu sinto muito, mas a gente volta pra esse espaço. Então nós somos muito corajosas, sabe? Porque não foi brincadeira”, relembra Angelina.
Angelina relembra o começo das atividades no Espaço Cultural Adenbanke, diante das adversidades no território e menciona uma fala que ouviu de uma das moradoras, que as motivaram a continuar o trabalho, e que virou o lema do local.
“Teve muitos momentos difíceis e a gente ficava se olhando e dizendo: ‘será que isso aqui vai funcionar mesmo? Será que vai dar certo?’ E quem nos fortaleceu com uma frase linda, maravilhosa, foi uma senhora, ela olhou do lado de lá e eu perguntei se ela queria tomar um café. Aí ela foi chegando, entrou, fervi café. Ela viu que eu tava um pouco desanimada porque fazia um tempinho já que a gente vinha batalhando, eu falei: ‘tá tudo muito parado, a gente queria que o entorno desse uma força, que as pessoas vissem que a gente quer fazer um trabalho cultural aqui’. Aí ela olhou pra mim e falou assim: ‘filha, não se esqueça, não se preocupa, porque embaixo do viaduto também nascem flores’. Aí eu falei: nossa, que frase bonita, né? Aí corri, escrevi, passei pras meninas, e aí nós começamos a fortalecer essa frase. E cada pessoa que vem aqui, a gente falava da importância da semente, pra gente cultivar essa semente, né?
Durante a pandemia, as pretas conseguiram pela primeira vez um edital público para atividades culturais. Elas realizaram edições virtuais do Chá das Pretas conversando com convidados em lives.
As Pretas Bás seguem sendo sementes no chão da zona leste, inspirando jovens artistas, ativistas e moradores do entorno, revitalizando e transformando o território por meio da cultura. Marlene nos explica o significado de Adebanke, um nome feminino nigeriano que ela pesquisou.
“É o nome de uma mulher que significa ‘Deus está cuidando dela’, então a gente tá cuidando dela. Quem é ela? A nossa cultura. É através da nossa cultura que Deus salva vidas. Então foi assim que nasceu o nome Adebanke. São as mãos que acodem Brasil- África, esse é o sentido que a gente traz”.
Fotógrafa registra cotidiano de crianças na Favela da Rocinha
Nascida e criada na Favela da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro (RJ), Salem fotografa o dia a dia da comunidade a fim de quebrar estereótipos e realçar potências. Por meio desse trabalho, ficou conhecida como a Fotogracria, “a cria que tira foto dos cria”. Entre os seus trabalhos, se destacam as fotos […]