“Sou gorda, lésbica e periférica e adoro todas as dobras do meu corpo” por Mari Moura

Colcha de Retalhos Eu nasci com um útero, dois seios, uma buceta e muitos sonhos. Nos primeiros passos já era torta das ideias, nessa época minha avó já disse a primeira frase: “Maria, essa menina não tem os dois pés no chão.” E não tinha mesmo, não tenho. Liberada pela mãe e encostada num canto pelo pai. Como […]

Por Redação

13|04|2016

Alterado em 13|04|2016

Colcha de Retalhos
Eu nasci com um útero, dois seios, uma buceta e muitos sonhos. Nos primeiros passos já era torta das ideias, nessa época minha avó já disse a primeira frase: “Maria, essa menina não tem os dois pés no chão.” E não tinha mesmo, não tenho. Liberada pela mãe e encostada num canto pelo pai. Como ter os dois pés no chão?
Ainda assim, fui criada por duas guerreiras, que me ensinaram como me comportar socialmente. E certo dia, a mais velha disse: “É, está ficando uma menina diferente. Não te entendo.”

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arte: negra hamburguer


Fiquei menina e sou uma mulher, tenho a ousadia de me reconhecer como tal. A tal da irmã mais nova esquisita que nunca namorou. Há anos o homem forte disse: “não vai arranjar namorado, é gorda.” E ele estava certo, não arranjei namorado! Sou gorda e sou lésbica, adoro uma buceta, assim como adoro todas as dobras do meu corpo. Embora reconheço que elas me pesaram por anos, me deram baús de lágrimas e pesadelos noturnos, me tiraram a vontade de atacar aqueles brigadeiros das festas dos colegas da escola… Hoje,  eu não só ataco brigadeiros, como devoro mulheres.
O homem estava certo, sua filha gosta de colar velcro, assim como de colar os pedaços que arrancaram dela a vida toda. Hoje ela parece uma grande colcha de retalhos, cada pedaço tem sua história, e ela se cobre, nua. Observa o sangue que escorre pelas pernas todos os meses, não vem só do seu útero, vem também das lembranças de um passado estilhaçado. Mas um dia, num pedaço de vidro, ela se viu… se despiu, se tocou. Nasceu!
Eu nasci há poucos anos, continuo sem os dois pés no chão. Quase todos os dias eu subo pro céu, dou uma volta no meu paraíso e volto renovada daquele azul bebê que me lembra a infância. Me curvo criança, menina, mulher. Com as mãos estendidas para minhas irmãs, que têm feridas diferentes das minhas, estou de peito aberto para outras lobas que se aproximarão de mim.
Iremos nos cheirar, nos reconhecer, cruzar as mãos, fazer pacto, fazer arte, torrar o saco, o que você quiser chamar. Continuaremos o legado das mulheres revolucionárias que mudaram o mundo e já aviso… viremos de baciada, aos montes, multiplicadas, um vírus perigoso, contagioso. Com os dois pés na porta, as veias e as pernas abertas, sangrando na cara do patriarcado.
marimouraMari Moura, 27, lésbica, feminista, atriz, fotógrafa, estudante de cinema e assistente de produção cultural. Integra a Associação Cultural Conpoema e é uma das fundadoras do Coletivo Baciada das Mulheres do Juquery. Acredita fortemente na coletividade, no ser humano e na força de luta das mulheres. Maria é moradora de Franco da Rocha, região metropolitana de São Paulo.