O show tem que continuar: artistas periféricas diante da pandemia de COVID-19

Da ponte pra cá, nas periferias, as diferenças e desigualdades cada vez mais evidentes também expõem os artistas periféricos.

Por Lívia Lima

28|04|2020

Alterado em 28|04|2020

A gente não quer só comida. Mas diante da pandemia de COVID-19, o isolamento social provocou o cancelamento das atividades e o fechamento dos equipamentos públicos e privados de cultura da cidade de São Paulo, desde cinemas, teatros, bibliotecas, dentre outros. Com isso, a categoria de trabalhadores do setor artístico se viu em situação comprometedora para garantir comida para si próprios – cerca de 5 milhões de pessoas em todo o país, segundo dados de 2018 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

O setor cultural chega a corresponder a 2,64% do PIB (Produto Interno Bruto), conforme o “Atlas Econômico da Cultura Brasileira”, lançado pelo Ministério da Cultura em 2017.  Estima-se que o prejuízo provocado pelos cancelamentos da quarentena ultrapasse os R$100 bilhões.

Dança na corda bamba o lado mais frágil dessa cadeia: profissionais técnicos, produtores, funcionários de espaços culturais, e também os artistas, sendo  que 44% da categoria são trabalhadores autônomos, segundo o IBGE. Da ponte pra cá, nas periferias, as diferenças e desigualdades cada vez mais evidentes também expõem os artistas periféricos.

“Neste momento o que tem sido mais desafiador é não ter margem para planejamento, não sabemos quando poderemos retornar nossas atividades, ensaios ou apresentações, não temos prazos para nada, essa incerteza e instabilidade atingem muitos artistas e produtores, prejudicando imensamente a situação financeira dos trabalhadores da cultura”, acredita Caroline Alves, 20 anos, atriz e moradora de Perus, região noroeste de São Paulo.

Caroline integra o Grupo Pandora de Teatro, formado em 2004 por moradores do bairro, e relata que tiveram que interromper os ensaios do próximo espetáculo, que já estava com data marcada. “Com o avanço da pandemia, aderimos ao isolamento cancelando os ensaios presenciais e adiando a estreia por tempo indeterminado. Desta forma, seguimos fazendo encontros semanais por vídeo-chamada, além de dar continuidade à escrita da dramaturgia, pesquisas, ensaios e produções individuais voltadas ao espetáculo”.

Segundo estudo da Associação Brasileira dos Promotores de Eventos – Abrape, 51,9% dos eventos programados no Brasil para 2020 foram cancelados, adiados ou estão em situação indeterminada. A entidade estima que as perdas somem R$ 90 bilhões.

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Caroline Alves e Grupo Pandora de Teatro

©Divulgação

Os cancelamentos também afetaram as atividades do Sarau do Binho, coletivo da região do Campo Limpo, zona sul de São Paulo, formado por mais de 30 artistas que dependiam das apresentações literárias em bibliotecas, casas de cultura e outros espaços culturais. Suzi Soares, produtora cultural responsável pelo sarau, afirma que no momento a única fonte de renda do grupo é do Proac (Programa de Apoio da Secretaria de Cultural e Economia Criativa do Estado de São Paulo), garantida para realização da 6ª edição da Felizs – Feira Literária da Zona Sul, prevista para setembro, mas sem confirmação diante dos impactos provocados pelo coronavírus.

“Temos visto surgirem alguns editais emergenciais, mas ainda não vi nenhum voltado para a área da literatura, especificamente, e considero que nenhuma linguagem artística é mais ou menos importante que as demais, então todas precisam ser cuidadas”, afirma. Diante da situação, o Sarau do Binho está à frente de campanhas de arrecadação, tanto para seus integrantes, como também para abastecer a comunidade.

“Criamos campanhas para arrecadação de fundos com o qual pudemos atender mais de mil famílias. Além disso, a arrecadação de alimentos e cestas básicas pra famílias em situação de maior vulnerabilidade.  Estamos mapeando estas famílias e captando os alimentos com quem pode contribuir. Minha casa virou um destes polos de arrecadação e distribuição, e as pessoas vêm aqui pra retirar, porque não temos estrutura pra entregar. Especificamente para os artistas do Sarau do Binho criei uma campanha e, com o dinheiro, mais de 25 artistas serão beneficiados. Cada um irá publicar uma vídeo-poesia nas redes sociais pelo período de três meses usando a hashtag #sarauemtemposdecorona”.

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Artistas que integram o Sarau do Binho. Suzi Soares, produtora do sarau, à direita.

©Lívia Lima

  • Para ajudar os moradores da zona sul, acesse o site da vaquinha.
  • Para conhecer e colaborar com o Sarau do Binho, acesse o site da campanha.

Auxílio Emergencial

Para não ficarem dependentes de doações e campanhas, muitos artistas que são microempreendedores estão recorrendo ao acesso ao auxílio emergencial, no valor de R$600 a até R$1200, para caso de mulheres chefes de família.

É o caso de Juliana Costa, 37 anos, grafiteira, artista plástica e professora, moradora de Itaquera. “Estou esperando a aprovação da ajuda emergencial, mas com um fôlego, pois sou autônoma desde 2007, e, desde então, com várias dificuldades, aprendi a me organizar financeiramente, porque todos esses anos tive meses de não ter renda nenhuma, e nos meses que sazonalmente tinha trabalho, me organizava pra bancar os meses que viriam sem, e neste ano foi o primeiro que não passei por esse problema, vim trabalhando muito e direto, inclusive ficando doente por essa demanda cheia, mas fora isso posso considerar que tive sorte”, relata.

Ju Costa considera que, caso o período de quarentena se estenda muito, ela inicie algumas atividades virtuais. “Já vejo alguns colegas fazendo live de pintura e de música, até de dentro de espaços culturais, mas infelizmente nada que possa atender as pessoas diretamente, e, principalmente, as que não têm acesso a redes de internet. Acho esse um grande problema a ser repensado ainda, para além de outros problemas que esses espaços já tinham de inclusão de demandas das mulheres periféricas, tanto de pensar nesse público, quanto de fortalecer e dar visibilidade múltipla cultural através das mulheres artistas”, pondera.

Como ativista, Juliana tem se dedicado a colaborar na produção de máscaras hospitalares no espaço LabCasa, projeto de docentes e parceiros da Fatec Itaquera. A iniciativa tem o objetivo de abastecer hospitais e UBS da zona leste. Além disso, a artista pretende retomar pela internet as aulas gratuitas de matemática para mulheres que eram realizadas no LabCasa. “Venho fazendo alguns estudos e quero voltar a produzir trabalhos de artes, em casa mesmo, mas não chegou o momento, as demandas são gigantescas, ainda mais sendo mãe”.

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A artista visual Ju Costa, moradora de Itaquera.

©Rbgraffiti

O Senado aprovou na semana passada uma alteração na lei do auxílio emergencial, que amplia a categoria de trabalhadores que terão direito ao benefício, dentre eles, “profissionais das artes e da cultura, como artistas, autores, intérpretes, técnicos de espetáculos; artesãos e expositores em feira de artesanato; e empreendedores em arte-educação”. O projeto de lei ainda precisa ser sancionado pela Presidência da República.

Paralelo a isso, a Frente Parlamentar em Defesa da Cultura, junto a coletivos e movimentos culturais, está mobilizada para que seja aprovado na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo um projeto de lei de socorro emergencial para os trabalhadores e espaços culturais.

“Muitos espaços culturais, principalmente os inseridos em zonas periféricas, já estão sendo utilizados como pontos base para ações emergenciais, como a distribuição de cestas básicas. Dito isto sobre a atual situação e a importância dos espaços citados, faz-se necessário que viabilize-se a distribuição recursos capazes de garantir a permanência dos espaços e a sobrevivência dos trabalhadores da cultura”, afirma Angélica Müller, 25 anos, atriz, palhaça, moradora de Perus, região noroeste de São Paulo, que ajudou na escrita do projeto de lei.

A PL nº 253/2020 prevê a manutenção de custos de espaços culturais (com auxílio no valor de R$3.500,00), viabilizando recursos direcionados ao custeamento de contas fixas como aluguel, água, luz, telefone, internet, gás, entre outros; e renda mínima para trabalhadores da cultura (no valor de R$1.163,55, um salário mínimo).

O projeto de lei foi construído e protocolado na assembleia legislativa pela Frente Parlamentar em Defesa da Cultura – Isa Penna (PSOL), Mandata Ativista – Jesus dos Santos (PSOL), Mandata Quilombo – Erica Malunguinho (PSOL) e Leci Brandão (PcdoB) – com apoio do Fligsp (Fórum do Litoral, Interior e Grande São Paulo), Viralize Cultura!, Coletivo de preservação da história e memória dos Queixadas (antigos trabalhadores da Fábrica de Cimento Perus – São Paulo) e Movimento de Teatro de Rua de São Paulo.

#CulturaEmCasa

Tanto para continuar se mantendo financeiramente, mas também para seguir em contato com seus públicos, artistas têm contornado o isolamento social, promovendo atividades online ou divulgando seus trabalhos, além de aproveitar também o momento para estimular a inspiração e criatividade.

Caroline Alves, atriz do Grupo Pandora de Teatro, tem se dedicado ao projeto “Brincantes em casa”, adaptação do projeto “Brincantes em Ação”, com atividades lúdico-pedagógicas para crianças, realizado na Ocupação Cultural Canhoba, localizada em Perus. “É uma adaptação do nosso trabalho para esse período de quarentena, com atividades totalmente online em vídeos gravados previamente ou transmitidos ao vivo nas nossas redes sociais”. As ações virtuais estão acontecendo desde o dia 11 de abril e vão até 03 de maio, aos sábados e domingos, sempre às 15h.

Bia Graboschi, 23 anos, moradora de Ermelino Matarazzo, na zona leste de São Paulo, é dançarina e profissional de educação física, e tem realizado virtualmente as aulas de Twerk que aconteciam na Ocupação Cultural Mateus Santos, casa de cultura do bairro.

“Está sendo um processo entender que nesse momento a internet é nossa melhor solução. Estou dando aula de twerk e personal online, com um valor mais acessível para a atual situação. Além de esperar e estar contando com a confirmação do governo sobre o auxílio emergencial, correndo o risco de ser negado. O valor arrecadado com as aulas estou guardando e gastando com o necessário. E uma das alternativas para acaso não tiver dinheiro, é correr atrás de doação de cesta básica”, relata.

Bia tem disponibilizado aulas gratuitas uma vez por semana para o público que já frequentava o espaço cultural. Ela aproveita a estrutura do local para a gravação das aulas, sem a presença do público. Com a programação cancelada por tempo indeterminado, a Ocupação Cultural Mateus Santos tem realizado a live “Ao vivo pra manter o povo vivo!”, com apresentações musicais de artistas periféricos. Além disso, tem arrecadado e distribuído cestas básicas e máscaras de tecido para os moradores de Ermelino Matarazzo.

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Aula de dança Twerk na Ocupação Cultural Mateus Santos em Ermelino Matarazzo

©Divulgação

A grafiteira e artista visual Ladyane Araújo – Lady Brown, 26 anos, moradora da Vila Zilda, zona norte de São Paulo, teve que abandonar por um tempo a rotina pelos muros da cidade, além de viagens previstas para festivais de grafite. Mas o Coronavírus acabou se tornando inspiração para novas criações ao se engajar na campanha “Social Vírus”, promovida pelo grafiteiro Binho Ribeiro. “A ideia é que, de forma internacional, artistas produzam obras e vendam por um valor acessível e destinem parte do valor a uma ação social. Daí eu fiz 10 desenhos da minha personagem, que é uma velhinha, e vendi a cem reais cada um, e doei 500 reais pra uma casa de repouso pra mulheres carentes que fica próximo da região onde eu moro”.

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Desenhos da artista Lady Brown para a campanha "Social Vírus" © Divulgação

A produção rendeu e Lady agora pretende estender o tema da campanha em outras criações. “Minha ideia agora é fazer uma fanzine sobre as diversas situações da quarentena. Me envolvi com um grupo que está distribuindo marmitas nas ocupações aqui perto da casa. Corremos atrás de doações de itens de higiene, fraldas e alimentos para montar cesta básica. Acho que por isso quis fazer a fanzine, pois cada família, cada história, são realidades muitos diferentes de quarentena. Os bolivianos especialmente tem me chamado atenção, pois são numerosas as famílias deles, moram em barracos nas ocupações, ou seja, estão em aglomeração, e eles não tem tido nenhuma renda, trabalham com confecção de roupas e não tem tido trabalho. Enfim estou nessa missão de tentar ajudá-los e pensando em como posso arrecadar doações através dessa fanzine”, revela.

  • Colabore com a campanha ‘Social Vírus’ e conheça o trabalho de Lady Brown.

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