Mônica Calazans e vacina: felizes e ansiosas mas com os pés no chão

Estamos emocionadas, esperançosas e ansiosas por nossas doses, mas com os pés atrás e bem no chão. Sabemos que o mundo é diferente da ponte pra cá.

Por Redação

18|01|2021

Alterado em 18|01|2021

Por Jéssica Moreira e Semayat Oliveira

A enfermeira Mônica Calazans tornou-se no dia 17 de janeiro de 2021 o maior sinônimo de esperança no Brasil. Mulher negra, moradora da zona leste da cidade de São Paulo, não por coincidência, o berço do SUS (Sistema Único de Saúde), de onde vêm outras tantas mulheres de luta, de sonho e de vida.

Que a população acredite na vacina. Estou falando agora como brasileira, mulher negra, que acreditem na vacina. Vamos pensar em quantas vidas nós perdemos, quantos pais, mães, irmãos. Eu quase perdi também um irmão por Covid. Diante disso eu tomei coragem. Foi falado que eu era cobaia de uma pesquisa de vacina. E eu aprendi, com uma pessoa, no dia da vacinação, que eu não sou cobaia e, sim, participante de pesquisa. Estou muito orgulhosa de tudo isso. Meu nome está aí no mundo inteiro. Sou uma pessoa comum, profissional da saúde e falo com segurança: não tenham medo da vacina”, disse a única mulher negra da bancada presente no evento da primeira dose de vacina no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). No total, 112 pessoas foram vacinadas.

Nós, mulheres negras, queremos viver. Assistimos de olhos atentos o processo de aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) na TV no último domingo. Geralmente, isso acontece em finais do futebol, de reality show ou novela das 20h. Mas nós temos pressa de vida e, por isso, celebramos  Mônica, celebramos a ciência, celebramos os mais de 30 anos do  SUS (Sistema Único de Saúde) — referência mundial de cobertura de saúde pública e gratuita para todos e todas.

Vacinar é urgente, mas é parte do processo. Nada apaga o fato de, até aqui, parte da população ter morrido de forma desproporcional. São mais de 209 mil mortos, milhares de famílias enlutadas. Mais de 8 milhões de contaminados. De acordo com o boletim “Curva das Periferias”, produzido pelo Nós e pelo Alma Preta, ao longo do ano de 2020, a curva de mortes e casos sempre esteve mais alta entre os distritos mais negros da cidade de São Paulo. E o socorro nas periferias tem vindo, sobretudo, da própria periferia.

Nos últimos meses, a ciência brasileira tem lutado muito. O SUS luta bravamente. Profissionais da saúde, da assistência social, lutam diariamente para sairmos desse cenário. Importante ressaltar que, a cada um minuto, um profissional da saúde é infectado no Brasil.

Temos um país sedento por esperança e, sim, sentimos alívio em ver Mônica sendo vacinada. Naquela tarde de domingo, o Brasil era a Mônica: uma mulher preta, periférica, pertencente ao grupo de risco e na linha de frente do combate à pandemia.

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Enfermeira Monica Calazans recebe a primeira dose da vacina contra o Covid-19

©Governo do Estado de São Paulo

Mas os atentados contra qualquer respiro mais profundo é persistente por aqui, não estamos de chapéu. Atrás do discurso afiado do governador João Dória (PSDB), está o desejo pela presidência da república. A corrida eleitoral de 2022 já começou. E no meio do duelo entre egocêntricos e genocidas negacionistas está o povo. 

Daqui de dentro de nossos isolamentos, assistimos ao show ao vivo de quem chega primeiro. Como diria Crioulo, “meninos mimados não podem reger a nação”. Temos uma vacina, mas ainda não há oxigênio. Temos vacina, mas é preciso apresentar um plano transparente de vacinação. A periferia não pede, mas exige urgência.

Aqui nas bordas, há unidades de saúde que ignoram pacientes com sintomas e se negam a realizar testes até mesmo em mulheres com mais de 60 anos, feito nossas mães. 

Estamos emocionadas, esperançosas e ansiosas por nossas doses, mas com os pés atrás e bem no chão. Sabemos que o mundo é diferente da ponte pra cá. 

A cena é perfeita para este momento político em que se fala tanto sobre antirracismo e desigualdades. A imagem simbólica, mas, acima de tudo, estratégica. 

O ministro da Saúde Eduardo Pazuello entrou em entrevista coletiva, com pouca novidade, ao mesmo tempo em que o governador João Dória. É assustador ver como o ministro trata jornalistas com total falta de respeito. Ele acusou o governador de São Paulo de ter praticado um “golpe de marketing”, como se essa não fosse uma tática bolsonarista.

Doria, em sua coletiva, respondeu que o Governo Federal tem uma “política de morte”, como se a letalidade policial não tivesse disparado em 2020. A letalidade policial bateu recordes no primeiro semestre de 2020.

Os primeiros seis meses marcaram o período que a polícia mais matou em duas décadas, mesmo em meio a uma pandemia. Os dados da Secretaria de Segurança Pública divulgados no fim de julho, apontam que, juntas, as polícias civil e militar mataram 514 pessoas, um aumento de 20% na comparação com o mesmo período de 2019. São Paulo é, historicamente, o estado mais racista do Brasil e sua herança é sentida na necropolítica adotada também por Dória.

Para fechar, o infectologista Sergio Sérgio Müller, coordenador de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos de Saúde,  disse durante a coletiva de imprensa que tem recebido ameaças de morte vindas de negacionistas.

Gente que negligencia e naturaliza a morte dos outros. Gente que, inclusive, assina as sentenças de mortes quando atravancam processos de autorização de vacina ou receitam medicamentos sem eficácia.

Negam humanidade e ameaçam vidas de diferentes formas. Pessoas que têm o discurso alimentado por lideranças do nosso país. A guerra é profunda, política e letal. 

No Brasil, não se vive sem náuseas por muito tempo. “Eu não posso respirar” não apenas atravessou 2020, como também chega nos primeiros dias de 2021 lembrando que ainda vai demorar para recuperarmos o fôlego.

No mais, viva as Mônicas que estão na linha de frente. Viva a luta do povo pelo SUS e da ciência para nos livrar da pandemia.