MG: Com chuvas, mulheres narram risco de contaminação, descaso e medo

Segundo as mulheres ouvidas pelo Nós, mulheres da periferia, a ajuda que receberam chegou diretamente de seus vizinhos e movimentos sociais.

Por Jéssica Moreira

21|01|2022

Alterado em 27|01|2022

Michele Rocha, 36, vive em Betim, região metropolitana de Belo Horizonte (MG). Mesmo não tendo sua casa atingida pelas fortes chuvas, ela também é uma atingida. A Defesa Civil aponta que, dos 853 municípios do Estado, 376 seguiam em estado de alerta até a última sexta-feira (14).

“Minha casa está servindo de abrigo. Tem vizinhas que perderam tudo, não deu tempo de salvar nada”, conta a dona de casa nos intervalos entre uma entrega e outra de água ou outros itens para pessoas que ficaram desabrigadas.

Integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Michele tem auxiliado na arrecadação de alimentos e kits de higiene para os abrigos que foram organizados para receber as famílias.

“Teve mutirão das pessoas. Graças a Deus o povo é muito bom. A gente foi tirando as pessoas da casa. Agora, temos cerca de 200 famílias desabrigadas, 30% perdeu tudo, porque a água subiu muito rápido de sábado para domingo à noite”, conta.

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Segundo as mulheres ouvidas pelo Nós, mulheres da periferia, a ajuda que receberam chegou diretamente de seus vizinhos e movimentos sociais

©Gil Leonardi/Agência Minas


‘Perdi tudo que uma mulher tem em casa’

Desde o dia 8 de janeiro, a dona de casa Maria Luiza da Silva, 60, está sendo acolhida por Michele. Com a força e a rapidez que a chuva foi alagando sua casa, só houve tempo de ser socorrida pelos vizinhos, salvando também sua irmã e o filho.

“Não tive tempo de tirar minhas coisas. Tudo que você pensa que uma mulher tem em uma casa: coisas materiais, roupa, eu perdi tudo. Dessa vez, foi de arrepiar o cabelo. Estou arrasada”, conta Luiza, que não sabe se irá conseguir voltar a morar na residência. “Não sei quando vou conseguir organizar [a casa], que está trincada. Eu não sei o que fazer, se devo voltar pra ela ou não, porque tá numa área bem de risco”.


Recorde de municípios em estado de emergência

Segundo o relatório divulgado pela Defesa Civil do estado na sexta-feira (14), Luiza é uma das mais de 35.815 pessoas desalojadas em decorrência de chuvas em Minas Gerais Entende-se como desalojados aqueles que desocupam seus domicílios deslocando-se para a casa de amigos ou parentes.

O documento traz ainda um balanço de ocorrências de chuvas que vão de outubro de 2021 a janeiro de 2022. Até a última sexta, Minas já contabilizava 25 mortos por conta das chuvas e também 4.464 desabrigados, sendo pessoas que necessitam de abrigo público por conta de ameaças de danos ou danos que já ocorreram em seus domicílios.

Segundo o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), em três dias, de 7 a 10 de janeiro, já foram 381,6 milímetros de chuva. Embora neste janeiro as coisas pareçam ainda piores de contornar, o problema se arrasta durante anos.

O relatório do próprio governo do Estado evidencia este fato em um gráfico que detalha o volume de chuvas e o número de pessoas atingidas desde 2016. Em 2019, 256 municípios decretaram estado de emergência. Entre 2021 e 2022, esse número cresceu, passando para 376 municípios no total, sendo um recorde quando analisada a série de oito anos.

Depois da chuva, o medo continua

Bárbara Israel de Souza, 19 anos, mora em Santa Luzia, também na região metropolitana de Belo Horizonte. As chuvas em sua cidade começaram na última semana, mas foi no dia 9 de janeiro que a família toda se desesperou ao ver que a casa estava rachando.

“A área da churrasqueira trincou totalmente até chegar no beco. O Beco também cedeu depois de dois dias. A minha casa não foi tão abalada, mas deu algumas rachaduras. Vamos chamar a Defesa Civil para dar uma olhada para ver se interdita  ou não. O lote da minha família está todo parado e interditado. Porque como o barranco desbarrancou tudo não tem como passar”. Até a finalização desta reportagem, a Defesa Civil ainda não tinha realizado a vistoria na casa de Bárbara.

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“Todas as fossas daqui explodiram. Saltou tudo pra cima. Tinha que ver que terror que foi”, disse Rosilene

©Gil Leonardi/Agência Minas

‘Quando a água começou a chegar, ajoelhei e comecei a rezar’

A cerca de 50 km de Betim, a situação se repete em outro município de Minas: Nova Lima. No sábado (8), Rosilene Fernandes de Oliveira viu as ruas em volta de sua casa transbordarem de água cheia de lama.

No dia 8, a Barragem da Ilha do Pau Branco, da empresa de siderurgia Vallourec, transbordou, tomando boa parte da cidade e também das vias de acesso. Com o sinal vermelho acionado, muitos moradores saíram de suas casas para evitar uma tragédia ainda maior. Assim, além dos alagamentos por conta das chuvas, também há o risco de rompimento de barragens, algo que a população do estado já vivenciou em outros períodos.

Quando a água começou a entrar na minha casa, botei meu joelho no chão e comecei pedir a Deus misericórdia”, é o que fez Rosilene ao ver o nível da lagoa perto de sua casa subindo.

Rosilene conta que, no passado, onde ela e os vizinhos residem era uma lagoa, mas que foi soterrada. Desde então, muitas pessoas passaram a morar no espaço. Por mais que tenha vivenciado chuvas ao longo dos oito anos em que está no local, nunca tinha visto nada parecido.

“Tava aquela chuvinha fininha, aí piorou mesmo, foi de sexta para cá. No sábado para domingo, eu fiquei acordada a noite inteira, com medo do rio chegar na gente e não ter como correr”, conta. “Aí ajoelhei meu joelho no chão, minha filha. Fui orar. Fui pedindo a Deus, fui pedindo a Deus. Foi quando acalmou, mas o rio chegou até em cima da rua”.

No dia 11 de janeiro, quando fizemos a entrevista com Rosilene, as chuvas tinham cessado e o nível da lagoa  havia baixado. As goteiras em sua casa ainda persistiam, mas a dona de casa já tinha conseguido limpar o barro que tomou a cozinha.

“Agora eu tô aqui, limpando. Limpando as coisas que sujaram. Graças a Deus a chuva acalmou um pouco, a lagoa está baixando.  Está pingando tudo, molhando, mas dá pra secar”.

Durante dois dias, Rosilene e seus vizinhos ficaram sem energia. Ela, que é diabética, ficou com receio de perder sua insulina, que precisa ficar refrigerada. Outro receio é a contaminação das águas depois das chuvas.

“A gente fica com medo de ficar tomando essa água, que é de cisterna. E aí pode estar contaminada. Todas as fossas daqui explodiram. Saltou tudo pra cima. Tinha que ver que terror que foi. As fossas enchendo e o solo jogando tudo pra cima”, diz a moradora,  relatando que as doações de águas e outros itens só chegaram ao local na terça-feira (11), já que antes a rodovia estava interditada.

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Segundo fontes ouvidas para esta matéria, nesses casos, as condições climáticas adversas se encontram com fatores como a mineração e outros

©Marco Evangelista/Governo de Minas

‘Até quem tem medo de contaminação, entrou na água’

O medo de Rosilene se estende para outros municípios, já que em janeiro completa três anos do crime de Brumadinho, quando a Barragem do Feijão rompeu e matou 262 pessoas. Para além das mortes, toda a população que vive nas margens do Rio Paraopeba, que pega parte da região metropolitana de BH, também foi atingida. As sequelas persistem até hoje por meio de problemas de saúde ou contaminação do solo.

Assoreado é o adjetivo que os moradores de Betim utilizam para descrever o Rio Paraopeba, desde o rompimento da Barragem do Feijão. Raso e contaminado por restos de minérios que também se misturaram com as águas das chuvas desta semana.

Em Betim, Michele conta que, mesmo quem tem receio da contaminação das águas, não teve escolha.  Ela se viu obrigada a entrar nas águas para resgatar vizinhos ou móveis de casa.

“A dificuldade hoje é maior. Porque o rio está assoreado por causa da lama do crime”, diz em referência  ao  rompimento em Brumadinho, em 2018. A palavra “crime” aparece no relato de Michele e de outras entrevistadas, já que entendem o ocorrido como um ato criminoso. “E essa água é contaminada. Muita gente não quer entrar, mas dessa vez, foi tão estrondoso que ou entra ou perde tudo”.

As barragens também têm tirado o sono de Arlete Custódia Ferreira, 43, em Itatiaiuçu, também na região metropolitana de BH. Segundo a moradora, as chuvas derrubaram pontes e deixou pessoas ilhadas. Mas o grande receio que têm é da Barragem Serra Azul, da mineradora ArcelorMittal romper. Há anos moradores pedem por indenizações no local.

“A gente está com muito medo. Recebemos ajuda de vizinhos e do poder público. Mas estamos muito tristes. Além das chuvas que enfrentamos, também precisamos brigar com multinacionais como a ARcelorMittal”, conta a moradora.

Segundo nota divulgada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), os eventos climáticos que estão acontecendo em Minas Gerais são agravados  por condições climáticas adversas, mas também “são aprofundados pelo interesse da especulação imobiliária, da mineração, dos empreendimentos de geração de energia, de uma agricultura predatória e de outras iniciativas que priorizam o lucro”.

A nota aponta também que todas essas instâncias encontram a conivência do governo. “Isso acontece quando o poder público negligencia questões ambientais relevantes e posterga o investimento em soluções para problemas tão recorrentes. A situação vivida pelas cidades alagadas em Minas Gerais é agravada pela falta de políticas públicas básicas e de defesa social capazes de garantir moradia, saneamento e obras que evitariam tragédias ambientais, aponta o movimento.

Segundo as mulheres ouvidas pelo Nós, mulheres da periferia, a ajuda que receberam chegou diretamente de seus vizinhos e movimentos sociais.

Outro lado

Em nota divulgada pela Agência Minas, do Governo do Estado, o governador Romeu Zema assinou um decreto de luto oficial de três dias em todo o estado. Segundo a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) e a Coordenadoria Estadual de Defesa Civil de Minas Gerais (Cedec), o governo liberou mais de R$ 1,2 milhão para a aquisição de cestas básicas, kits de higiene pessoal, limpeza, colchões e kits-dormitório.

“Até o momento, mais de 10 mil itens de ajuda humanitária (cestas básicas, kits de higiene pessoal, limpeza, colchões, roupas e kits dormitório) foram entregues aos municípios para assistência à população nas regiões atingidas”.

O Governo aponta também que criou um Comitê Gestor de Medidas de Prevenção e Enfrentamento das Consequências do Período Chuvoso. O  grupo recebe apoio das Forças de Segurança e secretarias de Estado para dar apoio aos municípios atingidos.

Segundo a Agência, o Estado anunciou R$560 milhões para a realização de ações nas cidades atingidas pelas chuvas do último período. O Governo de Minas também solicitou R$940 milhões ao Governo Federal.

Reportagem publicada originalmente no portal Expresso Na Perifa – Estadão.

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