Profissionais relatam pressão para realização de intervenções nos partos e a proibição de entrada de doulas na maternidade
Texto: Amanda Stabile
Edição: Mayara Penina
Ilustrações: Gabi Lucena
Atualizado em 09|03|2023
“Se eu não pude me salvar, eu posso tentar salvar outras mulheres”. É assim que Jaquelini Calandrino explica o que a motivou a se tornar doula. Mãe de duas crianças, ela estudou e se preparou intensamente para dar à luz, mas mesmo assim foi vítima de violência obstétrica. “Aí eu percebi que só estudar não era o suficiente”, conta.
No Brasil, os dados sobre esse tipo de violência estão desatualizados. Porém, pelo menos 45% das mulheres atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – a maioria pretas (46,9%) e pardas (49,4%) – foram vítimas de violência obstétrica. Na rede privada, esse número diminui para 30%. Os dados são do levantamento Nascer no Brasil, publicado em 2012 pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
No final de 2022, Jaquelini, que mora no Rio de Janeiro (RJ), usou seu perfil no Instagram para fazer uma denúncia. Em um grupo de WhatsApp em que participa com mais de 200 doulas, ficou recorrente as profissionais enviarem relatos de violências e constrangimentos sofridos por elas e suas pacientes no hospital Amparo Maternal, em São Paulo (SP).
“O pessoal acha que doula é uma profissão de amor e empatia, mas a gente está todo dia recebendo relatos de violências. Então nós trabalhamos para que não tenhamos de ouvir que mais uma mulher sofreu”, pontua Jaquelini.
O que faz uma doula?
As doulas dão assistência para os bebês virem ao mundo. Desde que os nascimentos viraram fenômenos hospitalizados, elas também atuam para nutrir gestantes de informação e para evitar que aquelas que gestam sejam submetidas a negligências ou a violências. Para atuar nos hospitais, tanto públicos quanto privados, essas profissionais precisam fazer um cadastramento na unidade hospitalar. Geralmente as doulas são contratadas pelas gestantes, já que são poucas as maternidades que disponibilizam as profissionais durante o parto.
No texto na rede social, a doula apontou a ocorrência de situações humilhantes e vexatórias e de diversas pacientes que foram pressionadas a parir em determinado tempo sob ameaças de serem levadas para fazer cirurgias cesarianas. "Quando uma mulher se nega à cirurgia, é pressionada psicologicamente, com frases como 'se não quiser vai ter que aguentar as consequências' ou 'se qualquer coisa acontecer a culpa é sua'", apontava um dos trechos do texto.
A publicação não está mais disponível, pois Jaquelini tem recorrentemente seu perfil derrubado por conta de suas denúncias. Já as doulas que vivenciaram as situações têm medo de expôr os acontecimentos e sofrerem represálias ou terem seus trabalhos no hospital impedidos. Para evitar retaliações, a reportagem ouviu as profissionais sob anonimato.
As cesarianas podem reduzir a mortalidade materna e infantil quando realizadas por motivos médicos. Mas quando feitas desnecessariamente, aumentam em 120 vezes a probabilidade de o bebê nascer com problemas respiratórios e triplica o risco de morte materna.
Dentre as indicações para a realização da cirurgia, estão casos em que há ameaça imediata à vida da gestante ou do feto; quando há comprometimento materno ou fetal sem risco de vida imediato; por desejo da paciente; com o objetivo de salvar o feto ou a mãe; e após a morte materna, com o intuito de salvar o feto.
A cirurgia também é indicada em casos especiais, dentre eles, quando há infecção por HIV, Hepatites B e C ou herpes simples; quando a placenta obstrui a passagem do bebê (placenta prévia), quando o feto é pequeno para idade gestacional e em nascimentos prematuros, antes da 37ª semana de gestação.
Apesar das recomendações, o Brasil é o segundo país que mais realiza cesarianas no mundo. A cirurgia representa 55% dos nascimentos e supera até mesmo a taxa de partos vaginais, que são mais seguros para mães e bebês, já que não precisam de intervenções cirúrgicas.
Além disso, apesar da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) afirmar que o bebê está pronto para nascer com 40 a 42 semanas, o Painel de Indicadores de Atenção Materna e Neonatal aponta que o maior percentual de cesáreas (37,29%) ocorreu em gestantes entre 37 e 38 semanas ou seja, antes mesmo do trabalho de parto ser iniciado.
Painel de Indicadores de Atenção Materna e Neonatal
Ana (nome fictício) acompanhou pelo menos uma dezena de nascimentos no Amparo Maternal em 2022. Porém, desde setembro a doula acredita estar sofrendo perseguição dentro do hospital e sua entrada na unidade está bloqueada. “Eu fui impedida de acompanhar uma gestante que entrou para uma cesárea de urgência”, lamenta.
Tudo começou após Ana dar assistência ao parto de uma gestante que foi muito firme ao informar à equipe médica os procedimentos que não estava disposta a realizar. Dentre estes, exames de toque frequentes e em um espaço menor que uma hora; a administração do hormônio ocitocina para apressar o nascimento do bebê; e a realização de uma cesariana sem explicação da motivação do procedimento.
Vencida pelo cansaço, sua cliente foi levada para a sala de cirurgia. “Quando eu entrei parecia uma cena de filme. Eu me senti uma criminosa. Falaram: ‘você vai entrar só que não encosta em nada e não abre a boca”, conta. Após o nascimento, a doula foi convidada a se retirar do hospital.
No mês seguinte, quando voltou para acompanhar uma nova gestante, foi escoltada pela segurança até a saída e informada de que estava proibida de atender lá dentro. Leia o relato completo.
Maria (nome fictício) presenciou situações desconfortáveis no Amparo Maternal desde seu primeiro atendimento na unidade. O trabalho de parto estava evoluindo bem e o bebê já estava até coroando, ou seja, a parte mais larga da cabeça da criança estava passando através da abertura da vagina.
“Entrou um médico indicando episiotomia e querendo se sobrepor à mulher em trabalho de parto, que estava se recusando a fazer o procedimento”, lembra a doula. Nesse procedimento é feito um corte entre o ânus e a vagina da parturiente sob a justificativa de “facilitar” a passagem do bebê. Em 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu que não há qualquer evidência científica que apoie a realização da episiotomia, que é considerada, por especialistas, uma forma de violência obstétrica.
A postura do médico ficou um pouco mais áspera após a recusa. “Ele falou ‘mas é uma indicação médica, você sabe que o bebê pode morrer. Seu bebê vai nascer sem ar e vai ser responsabilidade sua’”, recorda Maria. Além de serem palavras duras para dizer a alguém em trabalho de parto, as ameaças estavam sendo direcionadas a uma mulher que já havia passado pelo luto de perder uma criança.
As palavras do médico ainda foram reforçadas por outros profissionais que assistiam a cena e a gestante perguntou à doula o que ela achava que deveria ser feito. “Eu tenho certeza que você consegue”, encorajou a mulher. E não deu outra: em menos de cinco minutos o bebezão de 3,5 kg já estava nos braços da mãe. Leia o relato completo.
Na gestação de seu primeiro filho, a articuladora cultural Érika Barbosa recebeu a informação de que foi verificada a presença de streptococcus B em seu canal vaginal. Essa bactéria pode ser transmitida à criança durante o parto natural, fazendo com que o recém-nascido desenvolva meningite e infecções que podem levar à morte.
Com esse diagnóstico, o médico indicou a realização de uma cesariana. Na época com apenas 20 anos e falta de acesso à internet, a mãe de primeira viagem seguiu a recomendação do médico. Após sofrer no pós-parto, Érika descobriu que havia, sim, a possibilidade de um parto normal. Era apenas necessário que, durante o trabalho de parto, fossem administrados antibióticos para proteger o bebê da infecção.
Sabendo disso, quando foi parir sua segunda filha Érika tinha consciência de que desejava ser a protagonista desse nascimento. Mas após ser internada no Amparo Maternal, ela conta que foi impedida pela enfermeira de caminhar, submetida a vários exames de toque pela doutora na presença de residentes, e lhe foi negado banho e água quente.
“Toda hora a médica vinha e falava assim: ‘já se passaram seis horas’, ‘já se passaram 12 horas’, me pressionando”, lembra. Vencida pelos constrangimentos, Erika aceitou ser levada para a sala de cirurgia. Porém, ainda sonolenta após a anestesia, recebeu diversas perguntas da obstetra que, sem a sua permissão consciente, quase a submeteu a uma cirurgia de laqueadura.
Além disso, impossibilitada de pegar sua filha sozinha após a cesariana e sem ajuda da equipe do hospital, a mãe demorou a conseguir ter sua filha nos braços. “Foi só nessa hora, 12 horas depois do parto, que eu vi que tinha algo errado com a minha filha”, conta. A menina havia engolido sujeira do parto. “É surreal. Eu falo que até hoje parece que foi um mundo paralelo o que eu vivi ali dentro”, lamenta. Leia o relato completo.
A reportagem tenta contato com a SPDM PAIS - Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, que administra o Amparo Maternal, desde outubro de 2022, mas até a publicação da reportagem não recebeu retorno.
Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde respondeu que:
“A Secretaria Municipal da Saúde (SMS), por meio da Atenção Hospitalar, informa que, desde de 2020, mantém contrato de termo de colaboração entre a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) e o Hospital Maternidade Amparo Maternal. A unidade realiza em média 550 partos por ano, sendo 70% partos naturais e 30% por cento cesáreas.
A SMS esclarece que, para evitar aglomeração no momento do parto, apenas um acompanhante entra na sala, conforme acordado com a paciente. Sobre o médico citado pela reportagem, a direção do Amparo Maternal não recebeu nenhuma denúncia contra o profissional. A maternidade preza por garantir o melhor atendimento à população e está à disposição para registrar e apurar qualquer consideração.
Além das maternidades, a capital conta com duas casas de partos humanizados, a Casa Angela, localizada na zona sul, e a Casa de Parto Sapopemba, na zona leste da cidade. A Casa Angela é pioneira e referência em parto humanizado no Brasil e, desde sua fundação, em 2009, oferece assistência ao parto natural, em ambiente seguro, acolhedor e respeitoso. A Casa de Parto de Sapopemba, entregue há mais de 20 anos, recebe gestantes de qualquer região da cidade. O atendimento é realizado por enfermeiras obstetras e auxiliares de enfermagem que trabalham na unidade”.
*Os nomes citados no texto são fictícios para garantir o anonimato das fontes, que podem sofrer represálias e ter seu trabalho dificultado ou impedido.