Relatos de adolescentes que recorreram a procedimentos na clínica conhecida como “casa da bruxa”; outras que recorreram ao tráfico para conseguir empréstimos para abortar; além de mulheres que abortaram por não terem acesso à serviços adequados de contracepção
Texto: Amanda Stabile
Ilustração: Gabi Lucena
Edição: Mayara Penina e Semayat Oliveira
Atualizado em 24|10|2023
No Brasil, as disposições do Código Penal criminalizam a interrupção voluntária da gravidez, prevendo uma pena que pode variar entre um e três anos de prisão. Isso, porém, não impede que os abortos aconteçam no país. As razões que levam as mulheres a recorrerem ao procedimento são muito mais fortes do que a criminalização.
No país, o aborto é permitido apenas em três casos: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto.
Portanto, a implacável ilegalidade segue contribuindo para a morte e o sofrimento de mulheres por complicações relacionadas aos abortos provocados. Além disso, dificulta a produção de dados oficiais, impedindo que se tenha uma visão ampla e real sobre o tema e suas especificidades.
A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), coordenada pelos pesquisadores Débora Diniz (Universidade de Brasília), Marcelo Medeiros (Columbia University) e Alberto Madeiro (Universidade Estadual do Piauí), se propõe a jogar luz sobre a interrupção da gestação no país. A edição de 2021, divulgada em março de 2023, entrevistou 2 mil mulheres com idades entre 18 e 39 anos, alfabetizadas e residentes em áreas urbanas do país.
Dentre os principais resultados, o estudo mostra que uma em cada sete mulheres já abortaram e, 21% delas, mais de uma vez na vida. Isso é chamado de aborto de repetição e 74% daquelas que realizaram são negras. Outro dado preocupante é que 43% das entrevistadas que fizeram abortos considerados ilegais precisaram ficar internadas por complicações do procedimento.
A pesquisa também revelou que o aborto é um evento que ocorre no início da vida das mulheres: 52% das entrevistadas pelo estudo tinham 19 anos ou menos quando interromperam uma gestação pela primeira vez.
O Nós, mulheres da periferia conversou com algumas integrantes de uma rede de acompanhantes de aborto, que ajudam mulheres a interromper gestações com segurança, em casos considerados ilegais no Brasil. Só em São Paulo, a organização acompanha entre 70 e 100 mulheres e pessoas gestantes por mês.
O primeiro contato daquelas que querem interromper uma gestação acontece por e-mail e a rede pede que mandem um ultrassom para que avaliem a idade gestacional e se há alguma contraindicação para a interrupção da gravidez. Caso não haja, é designada uma acompanhante/doula para acompanhar a mulher remotamente durante todo o processo.
“Toda pessoa que quer ser uma doula/acompanhante de aborto, passa por um treinamento que inclui protocolo de medicamentos, mas também orientação sobre estigma e sobre as restrições de acesso ao aborto no Brasil”, explica Maria (nome fictício), integrante da organização desde 2016.
A rede, inclusive, fornece as pílulas para a realização de abortos medicamentosos. “As pílulas podem ser de graça, dependendo da necessidade da pessoa. Mas em geral as acompanhadas fazem uma doação que serve para cobrir medicamentos, ultrassom e transporte para as que não tem. A ideia é criar uma rede de solidariedade infinita entre as mulheres”, conta.
Outro trabalho feito pela organização é a orientação caso as acompanhadas precisem ou tenham direito a algum serviço de assistência social, violência doméstica ou mesmo quando são elegíveis para o aborto legal. “Nesses casos podemos eventualmente até acompanhar no serviço, a depender do grau de confiança estabelecido”, aponta Maria.
Raíssa (nome fictício) foi uma das acompanhadas pela organização. Aos 27 anos, a moradora de Realengo, no Rio de Janeiro (RJ), descobriu-se grávida e foi um momento desesperador, tanto que não se lembra de alguns detalhes, como a data em que realizou o aborto e o seu tempo de gestação na época.
“Eu sempre tive clareza que não queria ser mãe porque eu tenho uma relação péssima com a minha”, conta. “Sou uma mulher negra de pele clara, pobre, sempre morei na periferia e estive sozinha na luta pela sobrevivência. Então eu não tinha condições favoráveis para ter um filho. Eu mal tinha visão de um futuro próspero”, desabafa.
Em seu relacionamento, Raíssa sempre deixou claro que não queria ser mãe e tinha brigas constantes com o companheiro que não queria usar camisinha durante as relações sexuais. “Quando eu apareci grávida ele queria impor que eu tivesse o filho porque queria muito ser pai. Como eu não queria manter a gravidez, ele me deixou sozinha”, lembra.
Ela tinha certa quantia guardada, mas o valor não era suficiente para comprar o misoprostol (medicamento conhecido popularmente como Cytotec, usado para induzir o aborto), então contou sobre a gravidez para algumas pessoas para tentar conseguir dinheiro emprestado. “Não me ajudaram, só me julgaram. Então foi um período muito solitário”, conta.
O Cytotec é um medicamento que tem o misoprostol como princípio ativo. Ele foi criado para tratar úlceras de estômago. Porém, na década de 1990, as mulheres brasileiras descobriram o potencial do medicamento para provocar contrações uterinas, ocasionando abortos.
Além disso, Raíssa passava muito mal, vomitava constantemente, não se alimentava bem e tinha até impulsos suicidas. Mesmo não tendo o valor completo, ela foi até o fornecedor do medicamento e pediu para que vendesse por mais barato, já que aquele dinheiro era tudo o que ela tinha.
“Só que quando eu usei a medicação a primeira vez, bem no início da gestação, não deu certo e o desespero cresceu. Meu irmão tinha uma amiga que tinha um contato dessa rede que dá assistência aos abortos e eu entrei em contato”, recorda.
“Elas me deram informação, me forneceram a medicação e me acompanharam por mensagem. O procedimento eu fiz todo sozinha e deu tudo certo”.
Porém, nos dias seguintes, ela sentiu muita dor e fraqueza e decidiu ir ao hospital sozinha. Ficou horas esperando, se contorcendo de dor, suja de sangue. Quando foi atendida, ouviu opiniões como “por que abriu as pernas?”. Até forçaram que ela contasse se havia induzido o aborto ou não antes de a levarem para fazer uma curetagem. “Apesar disso, eu não me arrependi nem um pouco. Sou muito feliz por ter feito o aborto”, confessa.
Hoje, Raíssa integra a rede e ajuda outras mulheres a realizar o procedimento.
“Eu também proponho mudanças dentro do nosso procedimento porque não podemos tratar mulheres negras, da mesma forma como mulheres brancas. O racismo impõe muitas camadas e um atendimento diferenciado fez falta no meu aborto”,
aponta.
Suzana (nome fictício), é acompanhante de aborto rede desde 2016 e conta de um procedimento que acompanhou e a marcou. “A menina tinha uns 17 anos e um relacionamento complicado com um parceiro abusivo e muito mais velho que ela”, lembra. Após desavenças em casa por causa do padrasto, a adolescente foi morar na rua junto com o namorado.
Tudo aconteceu durante a pandemia, período em que as acompanhantes estavam atendendo apenas remotamente. Foi a mãe da menina quem entrou em contato com elas e, além do auxílio para o procedimento, chegou com uma demanda de espaço, já que não podia levar a filha para realizar o procedimento na própria casa. “Obviamente, abrimos essa exceção”, conta.
“Uma coisa que é muito louca é que temos um imaginário sobre as pessoas que moram na rua. Também idealizamos que seria um atendimento muito conflituoso já que a mãe quis acompanhar. Ficamos com receio de elas começarem a tretar, mas quebramos a cara, em todos os sentidos”, lembra.
“Era uma garota muito tímida, silenciosa, na dela, não querendo incomodar. Em relação ao relacionamento com a mãe, elas eram extremamente amorosas uma com a outra. Ali era um espaço seguro onde elas poderiam se conectar de novo. Então foi muito impressionante”, conclui.
O Nós, mulheres da periferia também conversou com pesquisadores que conduziram estudos sobre aborto em três favelas e áreas vulnerabilizadas brasileiras, entre os anos de 2005 e 2017. Ao lê-los você pode perceber ao que mulheres e meninas foram e (são) submetidas para fazer valer o próprio direito à escolha, ao corpo e à sexualidade, apesar do Estado criminalizar essas práticas.
“Falei com ele desesperada. Esperava que ele fosse me apoiar. Ele já tinha duas filhas e disse que eu estragaria a vida dele. Ele me chamou de burra e [disse] que eu não tomei o anticoncepcional direito. Ele colocou pressão dizendo que seria melhor pra mim tirar. Como eu confiava nele, estava muito assustada, aceitei”
Deise*, 16 anos, aborto aos 12, parceiro de 42 anos, “namorado”.
O relato acima faz parte da pesquisa de mestrado do psicólogo Wendell Ferrari, que investigou os itinerários de solidão dos abortos ilegais realizados por adolescentes em uma favela da Zona Sul do Rio de Janeiro (RJ). Ele entrevistou dez meninas, com idades entre 15 e 17 anos, e com experiência de aborto ilegal praticado entre 12 e 17 anos.
O pesquisador conta que a vontade de estudar o tema surgiu ainda quando realizava seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da graduação em psicologia na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Sua pesquisa foi sobre gravidez na adolescência em um bairro periférico de Cuiabá, capital do estado.
Wendell Ferrari hoje é doutor em Saúde Coletiva no Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Eu fiz um grupo focal com seis meninas para conversar sobre relações de gênero, sobre ficar, namorar, até chegar na negociação da camisinha, da gravidez na adolescência, se foi planejado ou não… E, para a minha surpresa, das seis, três já tinham feito aborto”, recorda.
Wendell se mudou para o Rio de Janeiro (RJ) e conseguiu uma vaga para trabalhar como psicólogo clínico em uma Organização Não Governamental (ONG) que atendia moradores de uma favela na região, e o tema do aborto surgiu novamente. “Éramos eu e mais cinco ou seis psicólogos e sempre surgia o comentário sobre alguma paciente que havia abortado. A gente já sabia que tinha uma clínica clandestina ali dentro da favela”, explica.
Já inserido no contexto daquela comunidade, decidiu colocar o estudo em prática. Assim que conseguiu a primeira entrevistada, ela indicou uma amiga que também havia interrompido a gestação. Essa chamou outra e assim foi, uma adolescente trazendo a outra. Esse método é chamado de “bola de neve”.
Das dez entrevistadas, nove se consideravam pretas ou pardas (negras) e apenas uma se autodeclarou branca. Todas moravam com as mães e as consideravam “mega” religiosas (evangélicas ou católicas). Nove adolescentes também estudavam no momento, cursando entre o sétimo ano do Ensino Fundamental e o segundo do Ensino Médio. A única entrevistada que apenas trabalhava exercia a profissão de comerciante, iniciada após se tornar mãe, aos 15 anos de idade.
Em relação às especificidades do aborto realizado na adolescência, Wendell aponta que não há como não trazer a questão da pouca experiência das meninas, que ainda estão aprendendo sobre a vida, as relações sexuais e a desigualdade de gênero. Ele também explica que a vulnerabilidade é acentuada pela falta de uma rede de apoio e de autonomia financeira.
Durante as entrevistas, a diferença de idade com os “parceiros” chamava a atenção. Seis delas mantinham relações com homens mais de cinco anos mais velhos. A maior diferença de idade chegava a 30 anos. Casos como esses, aponta o pesquisador, podem estar associados a fatores de risco para as adolescentes. Há o risco de submetê-las a diversas formas de violência, estupros, além de exposição a doenças e resistência dos parceiros em relação ao uso de preservativos e contraceptivos.
Outro consenso entre as meninas foi manter a mãe fora do processo decisório sobre a interrupção da gravidez.
“Não acho que minha mãe ia deixar eu tirar. Ela é mega católica. Ela diz que é errado adolescente transar, imagina engravidar e tirar, ela acha que é pecado. Eu acho que eu ia acabar tendo o bebê se falasse pra ela”,
apontou Flávia*, de 16 anos (aborto aos 15 e parceiro de 17 anos).
Inclusive, essa foi a situação a que uma delas foi submetida. “Aos 13 anos, contou para a mãe que estava grávida e queria fazer um aborto, mas a mãe não deixou e ela acabou tendo o filho. Quando engravidou [novamente], aos 16, não contou. Juntou o dinheiro e fez o aborto sozinha”, conta Wendell.
As maiores aliadas e companheiras das entrevistadas nesse processo foram as amigas, sempre com idades semelhantes. Elas se ajudavam com vaquinhas para realizar o procedimentos, com conselhos, apoio e acolhimento após o aborto.
“A conversa com elas foi ótima. Elas me deram altas dicas de como fazer, me passaram alguns sites na internet e disseram que iam me ajudar em tudo. Muitas delas já tinham feito e disseram que era de boa, pra eu não ficar com medo. Elas foram minhas psicólogas!”,
contou Ana*, de 16 anos (aborto aos 15 e parceiro de 19 anos).
Os métodos de interrupção da gestação utilizados pelas adolescentes se dividem em três itinerários: a clínica da favela (conhecida como “casa da bruxa”); clínicas fora da favela; e o uso do misoprostol, medicamento conhecido popularmente como Cytotec (com venda proibida no Brasil). Os valores gastos por elas variaram entre R$500 e R$2.500.
Evelin*, de 17 anos, abortou na “casa da bruxa” e contou que era um lugar escuro e imundo, tinha até sangue no lençol. “Tomei uma anestesia e ‘apaguei’ na hora. Aí ela tinha um machadão, tipo foice, aí eu fechei os olhos, e não senti mais nada”, recorda. “Eu dormi na casa de uma amiga nesse dia, não sabia como ia ser. Sangrei bem pouquinho durante a noite, mas não tinha mais nada lá dentro, ela tirou tudo! Dormi bastante, voltei pra casa e depois fui pra escola normal”.
Outra questão que expõe as adolescentes a riscos é a necessidade de conseguir o dinheiro para realizar os procedimentos.
“Algumas meninas fazem empréstimos com juros muito muito altos com pessoas do tráfico. Eu lembro de uma delas que interrompeu os estudos sem os pais saberem e começou a trabalhar numa livraria para conseguir pagar os traficantes. Ela parcelou o valor em algumas vezes e eles faziam ameaças de morte”,
recorda Wendell.
O tráfico também interferia na compra dos medicamentos para a interrupção da gestação. Deise*, de 16 anos (aborto aos 12, parceiro de 42 anos) contou que o Cytotec era “baratinho”, até eles entenderem para o que era usado.
“Uma vez, uma menina que namorava um traficante comprou o remédio. Aí os caras falaram pro traficante que ela tinha comprado. O cara ficou puto porque ela ia tirar um filho dele. A menina até fugiu, ele disse que ia matar ela. Pararam de vender. Aí voltaram a vender, mas não deixam mais vender pra mulher. Só homem pode comprar”.
Algumas contaram com o apoio financeiro dos parceiros, mas nem sempre em cenários ideais. “Eu fui na casa dele, aí ele tinha os comprimidos. Ele fez questão de colocar ‘lá’ pra garantir que eu tava usando. Foi na casa dele, depois do almoço. Nunca vou esquecer. Aí ele foi trabalhar, me deixou sangrando o dia inteiro sozinha, chorando”, recordou Joice*, de 16 anos (aborto aos 15, namorado de 20 anos).
Com medo das dores que sentia e do sangramento, decidiu ir com a irmã até o hospital. “Ele [o médico] perguntou o que tinha acontecido, falei que tinha sido um aborto espontâneo. Depois de um tempo ele falou pra eu esperar em uma sala que tinha duas grávidas, eu tenho certeza que ele fez de propósito”, desabafou. “Aí o médico foi lá com uma cara feia e falou que eu ia evacuar o resto do bebê. Aí ele tirou o resto do bebê e disse pra eu ir embora e não voltar lá nem se tivesse morrendo”.
Apesar das situações, o sentimento mais citado pelas adolescentes em relação ao aborto foi o alívio. Nenhuma delas se arrependeu do procedimento.
“Você só fica torcendo pra que tudo dê certo, pra você não morrer e aparecer em casa e no trabalho na segunda viva e salva”,
contou Mara*, de 17 anos (aborto aos 17, parceiro de 23 anos).
O estudo de Wendell Ferrari foi transformado no livro Entre o Segredo e a Solidão: aborto ilegal na adolescência, publicado em 2021 pela Editora Fiocruz. Na obra, é possível se aprofundar nos relatos, contextos e motivações das adolescentes para a realização do aborto.
*Todos os nomes das adolescentes citadas no texto são fictícios.
“Eu tomei muita coisa, tomei bucha paulista, cachaça com sal, até sonda ‘ne mim’ eu enfiei”
Vesta (nome fictício).
Em 2013, Núbia Milanez, enquanto mestranda em Saúde Coletiva na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), entrevistou sete mulheres que residiam e pariram na Microrregião de São Mateus, no norte do Espírito Santo. Essa área, composta pelos municípios de Jaguaré, São Mateus, Boa Esperança, Conceição da Barra, Pinheiros, Ponto Belo, Montanha, Mucurici e Pedro Canáro, tinha o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado.
As mulheres escolhidas revelaram ter tentado interromper a última gestação ou gestação anterior. E, por meio de um questionário estruturado, contaram à pesquisadora sobre suas trajetórias após a decisão de abortar e suas experiências com as práticas abortivas.
Hoje, Núbia Milanez é especialista em Atenção Primária, mestre em Saúde Coletiva e enfermeira da Prefeitura Municipal de Anchieta (ES).
Elas estavam na faixa etária entre 19 e 33 anos, tinham o ensino fundamental incompleto e se autodeclaravam pretas ou pardas. A maioria residia na zona urbana, quatro moravam com companheiro e filho (os) e três moravam com os pais e filho (os). Apenas duas tinham vínculo empregatício.
O estudo constatou que nenhuma das gestações que sofreram tentativa de interrupção foram planejadas e apenas três mulheres tiveram sucesso na decisão de abortar. Dentre as motivações citadas estava a falta de condições financeiras, por medo da reação dos pais ou por medo de o parceiro não assumir o bebê.
Entre os métodos utilizados estava o uso de medicamentos (especialmente o misoprostol, conhecido como Cytotec), ervas, receitas caseiras, chás e inserção de sondas. A maioria relatou ter recebido apoio de pessoas próximas, que fazem parte de sua rede comunitária.
“As falas evidenciam a necessidade de pessoas próximas à mulher ajudarem na sua decisão de não levar a termo a gravidez, seja comprando o medicamento, ofertando receitas caseiras ou fornecendo sondas para a concretização do ato”,
apontou a pesquisadora.
Em relação às gestações inesperadas, o estudo evidenciou que foram percebidas barreiras de acesso das mulheres aos serviços de saúde, que poderiam proporcionar a elas o uso adequado da contracepção. “Os serviços de saúde mostraram-se longínquos das moradias visitadas (em extensão de terra), sendo preciso, muitas vezes, atravessar estradas com barco, devido a alagamentos, ‘estradas de chão’ esburacadas, e assentamentos sem acesso a transporte público”, apontou.
Também foi apontada a condição precária de vida das entrevistadas. A maioria delas vivia em condições insalubres com restrições decorrentes de suas condições sociais e pouco ou nenhum acesso à informação.
“O problema do aborto provocado não é somente uma questão de saúde pública devido às complicações físicas e mortes decorrentes. De acordo com os achados da pesquisa, fica evidente que o aborto também é um problema de justiça social”,
constatou Núbia.
No ano de 2005, a pesquisadora Carmen Fusco, que já era formada em Direito e Medicina, resolveu estudar o abortamento em sua pesquisa de mestrado. Ela escolheu a favela Inajar de Souza, na zona norte de São Paulo (SP), como objeto de estudo, porque já tinha contato com a comunidade dos seus estudos relacionados ao HIV (vírus da imunodeficiência humana, na sigla em inglês), anos antes.
“A favela é pequena e foram consideradas então todas as mulheres de lá. Do ponto de vista estatístico isso é super importante porque transforma a pesquisa em um censo”, explica a pesquisadora.
Atualmente, Carmen Fusco é doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina; presidente da Associação para Pesquisa e Promoção da Saúde e dos Direitos da Mulher – Gesto&Ação, na qual exerce também as funções de coordenadora científica e coordenadora de campo, além de pesquisadora.
Na época, a comunidade contava com cerca de 2000 habitantes e 375 mulheres entre 15 e 54 anos, a faixa etária escolhida por Carmen para o estudo. “Escolhemos uma faixa etária que combinasse com o ciclo reprodutivo [da menstruação à menopausa] daquela população. Então eu procurei qual era a menina mais nova que tinha tido gestação e escolhemos com base nisso”, explica.
Alguns indicadores sociais levantados sobre a população revelavam um baixo nível de escolaridade, baixa renda per capita e familiar e um alto nível de desemprego. Também mostravam que a primeira relação sexual acontecia de forma precoce e que havia a falta de planejamento familiar e o uso irregular de métodos contraceptivos (64,7% das mulheres na faixa etária pesquisada não usavam).
Para sair a campo e realizar as entrevistas, Carmen contou com a ajuda de três monitoras da própria comunidade e três universitárias de Ciências Humanas que passaram por um treinamento em oficinas. Munidas de um questionário estruturado, elas realizaram visitas domiciliares às 375 mulheres da população. Apenas 7 não quiseram participar da entrevista.
No total, foram declaradas as realizações de 144 abortos por 93 mulheres. Cerca de 56% (82) deles foram provocados, desses, o mais precoce aconteceu aos 13 anos. Na época da interrupção da gestação, 47% delas estavam solteiras e tinham uma renda per capita média de 173,60 reais. Mais de 50% delas não tinha trabalho remunerado e 31,4% eram chefes de família.
Outro indicador importante em relação a população da favela Inajar de Souza é que das 375 na faixa etária pesquisada, 67,8% eram negras (pretas ou pardas) e 52% eram migrantes do nordeste do país. As mulheres negras foram as que mais provocaram o aborto (78,4%), assim como as migrantes (56,9%).
“Existem quatro dessas variáveis que são consideradas violências estruturais: baixa renda, baixa escolaridade, etnia ou cor e migração. E, por acaso ou não, essas são as que constatamos que mais influenciam nos abortos provocados nesse estudo”,
explica Carmen.
O estudo também constatou que em 86,4% dos casos, as mulheres não contaram com o apoio do parceiro na decisão. “Esse é um dos grandes motivos pelos quais elas se sentem sozinhas, porque ficam sozinhas de fato. Isso também é um dos motivos para a realização do aborto”, aponta a pesquisadora.
Cerca de 9 a cada 10 abortos foram provocados em casa, a maioria com o uso de misoprostol, via oral, intra-vaginal, ou pelas duas vias, acompanhado de “chás” diversos. Em segundo lugar, foi apontado o uso de sonda ou outro objeto. Em 12 casos, foram relatados espancamentos e outras agressões físicas (especialmente por parte de companheiros) como fator decisivo para a indução do abortamento.
“Elas compravam o medicamento, que chamavam de “pílula”, no mercado paralelo. Utilizar da forma correta evitaria muito a mortalidade materna, mas elas não tinham como saber se a droga era genuína e não sabiam utilizar corretamente. O pessoal que vendia ensinava um uso errôneo. Algumas usavam menos comprimidos do que precisavam e não conseguiam abortar e as que usavam demais acabavam tendo hemorragia e indo parar no hospital”, conta Carmen.
A taxa das mulheres que tiveram complicações após o procedimento era alta: 94,2%. “Nessa região tinha um hospital de atendimento próximo para onde elas iam se começava um sangramento forte. Por preconceito, os médicos não separavam as que provocaram das que tiveram aborto espontâneo. Eles consideravam que todas tinham provocado. Deixavam elas esperando muito tempo, tratavam mal. Não tinham cuidado com a hemorragia e com o abortamento em si”, recorda.
A pesquisadora defende que é impossível atingir a redução da mortalidade materna sem intervir diretamente nos cuidados médicos destinados ao aborto voluntário considerado ilegal.
“Os dados da época são muito parecidos com os de hoje. As principais causas da mortalidade materna são: hemorragia, hipertensão, infecção puerperal e aborto. Mas as três primeiras também podem ser consideradas complicações do aborto, apesar de não colocarem como causa da morte. Ou seja, são causas que podem ser evitadas, mas não serão enquanto o aborto não for discriminalizado”,
conclui.