mulher sorri

Cearense conta como vício no ‘Jogo do Tigrinho’ levou irmã à morte 

Jéssica Lobo descobriu vício da irmã em jogos de azar após seu suicídio; psicóloga explica que fatores socioeconômicos colaboram com o desenvolvimento do vício

Por Beatriz de Oliveira

01|04|2024

Alterado em 01|04|2024

Na cidade de Missão Velha (CE), no dia 12 de dezembro de 2023, Ângela Maria Camila da Paz, de 39 anos, foi encontrada morta. A família descobriu que a vendedora havia cometido suicídio após perder grandes quantias de dinheiro no jogo do ‘tigrinho’ e do ‘aviãozinho’, ambos disponíveis na plataforma Blaze. Classificada como jogos de azar, essa modalidade é proibida no Brasil, mas sua prática é amplamente disseminada, inclusive com propagandas de influenciadores nas redes sociais.

Também em dezembro, foram realizadas operações policiais contra rede de influenciadores de jogos de azar em estados como Paraná, Maranhão e Pará. Os famosos são contratados pelas plataformas para atrair seus seguidores a apostarem dinheiro em jogos que prometem ganhos altos.

A advogada cível Raíssa Carmen explica que a prática ou exploração de jogos de azar é proibida em todo o território nacional, por seus resultados dependerem exclusivamente da sorte, não sendo possível verificar os fatores que o influenciam. Já os jogos de apostas, normalmente vinculados a eventos esportivos, são permitidos, pois seus resultados estão vinculados a habilidades e conhecimento.

“Por se tratar de uma contravenção penal, os jogos de azar estão sujeitos à fiscalização pelas autoridades policiais, e a responsabilidade criminal pode recair sobre aqueles que estabeleçam,a explorem ou participem desses”, afirma a advogada.

No dia 30 de dezembro, o presidente Lula (PT) sancionou com vetos a Lei 14.790/23, que regulamenta as apostas esportivas e taxa empresas e apostadores. A princípio, o texto autorizava os cassinos online, como o ‘Jogo do Tigrinho’ (Fortnite Tiger), porém, durante a tramitação no Senado, essa permissão foi removida.

Dados de 2018 da Pesquisa de Orçamento Familiar feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostraram que os brasileiros gastavam por mês uma média de R$ 14,16 em apostas e jogos, valor acima das despesas mensais com arroz (R$ 12,79), por exemplo.

‘Não é sorte, é falcatrua’

“Minha irmã era autônoma, trabalhava com vendas de roupas, sempre foi muito batalhadora e guerreira. Ela sempre quis dar uma vida melhor para os filhos, como mãe solo”, relata a manicure Jéssica Lobo, irmã de Ângela Maria.

Jéssica revela que depois da morte da irmã teve acesso ao seu celular e ao histórico nos jogos de azar. Descobriu que Ângela jogava há três anos, e chegou a fazer depósitos de R$ 10 mil.

Para sustentar o vício nos jogos, com apostas cada vez mais altas, fez empréstimos em nome da mãe, que é aposentada, pediu dinheiro a amigos, e chegou a tentar vender uma casa da família, mas o acordo se mostrou inválido por falta de documentos.

“São 54 páginas de depósitos no histórico do jogo, cada página exibindo 40 depósitos de, no mínimo, R$100”, revela.

três mulheres juntas

Ângela, ao lado da irmã (Jéssica) e da mãe

©arquivo pessoal

Ao descobrir o vício da irmã depois de sua morte, Jéssica começou a pesquisar sobre os jogos de azar para entender melhor como funcionavam. Por meio de relatos de jogadores, concluiu que, geralmente, a pessoa começa ganhando dinheiro no jogo, o que incentiva a depositar valores mais altos. Em determinado ponto, começa a perder. “Mas aí a pessoa continua jogando na tentativa de recuperar o que perdeu”, afirma.

Ela também alerta para o papel dos influenciadores que divulgam os jogos de azar. “Os influenciadores lucram com o que os pais e mães de família perdem; a plataforma não arca com o prejuízo, quem paga são os jogadores”, pontua.

Os influenciadores lucram com o que os pais e mães de família perdem; a plataforma não arca com o prejuízo, quem paga são os jogadores

Jéssica Lobo

Antes da morte de Ângela, Jéssica acessou o ‘Jogo do Tigrinho’ uma vez, por influência de um amigo do marido. Depositou R$ 40 e ficou cerca de duas horas jogando. Ao perceber que os valores oscilavam muito, concluiu que não valia a pena continuar na plataforma. “Eu saquei o jogo, algumas pessoas ganhando dinheiro apenas para mostrar que é possível ganhar. E aqueles que estão ganhando vão atrair outros e formar aquela típica pirâmide”, diz.

Foi esse o roteiro percorrido por Ângela. No primeiro ano de jogo, ela chegou a ganhar R$ 8 mil e usou o valor para reformar a casa da mãe. Já no terceiro ano, as perdas superaram os ganhos e o aplicativo começou a apresentar problemas. Ângela participava de um grupo de WhatsApp com membros da Blaze. Lá, ela reclamou que não conseguia sacar um prêmio de R$ 50 mil e que um bônus havia sumido da plataforma. “Ou seja, não é sorte, é falcatrua”, resume Jéssica.

Nesse mesmo grupo, Ângela afirmou em áudios que iria se matar, pois tinha perdido todo dinheiro que havia pegado emprestado e não via mais saída. A resposta dos funcionários foi diminuir o valor mínimo para saque dela de R$ 3 mil para R$ 1 mil. “A vida não importa, o que importa é que você continue jogando”, comenta Jéssica.

Indignada com a morte da irmã, a cearense gravou vídeos ao vivo e fez publicações em suas redes sociais compartilhando o ocorrido, e afirma que seu conteúdo chegou inclusive a influenciadores que fazem propagandas de jogos de azar; pois visualizaram seus stories, mas não fizeram nenhum contato com ela.

Sua missão agora é resgatar pessoas do vício desses jogos. Pensando nisso, criou um grupo de WhatsApp com jogadores viciados e liderou um protesto contra a plataforma Blaze. “O que me dói é que é uma coisa muito grande, há muito muito dinheiro envolvido e muita gente influente por trás disso. A minha luta é salvar pessoas que estão presas nesse ciclo”, diz.

O que leva ao vício em jogos de azar?

Em outubro de 2023, o Instituto Qualibest e a ENV Media divulgaram os resultados de uma pesquisa sobre a relação dos brasileiros com as apostas e jogos de azar, entrevistando 550 pessoas com mais de 18 anos. O resultado mostrou que 76% dos respondentes utilizam algum tipo de jogo de azar ou aposta, sendo que 38% apostam online pelo menos uma vez por semana e outros 23% quinzenalmente.

Fernanda Gomes Torres, psicóloga e especialista em psicopatologia e saúde pública, pontua que o vício em jogos de azar pode ser explicado por fatores biológicos e sociais. Do lado biológico, esses jogos ativam o sistema límbico, responsável pela recompensa e prazer, levando a pessoa a ter vontade de jogar cada vez mais.

Do ponto de vista social, é importante considerar a realidade sócio-econômica atual, incluindo a falta de acesso a atividades de lazer para populações periféricas, bem como o poder do dinheiro para acessar determinados espaços. “Vivemos em uma ideologia meritocrática, que enfatiza a necessidade de conquistar o próprio dinheiro, o que atrai algumas pessoas, principalmente aquelas em busca de uma solução fácil, como o dinheiro dos jogos de azar”, diz.

Vivemos em uma ideologia meritocrática, que enfatiza a necessidade de conquistar o próprio dinheiro, o que atrai algumas pessoas, principalmente aquelas em busca de uma solução fácil, como o dinheiro dos jogos de azar

Fernanda Gomes Torres

“A dependência desses jogos muitas vezes indica que algo na vida da pessoa não está bem, que ela já mantinha uma relação prejudicial ou até mesmo doentia com a vida de maneira geral”, acrescenta a psicóloga.