Beyoncé me ensina que mulheres negras podem se sentir amadas

Mais do que colocar as pessoas para dançar, Beyoncé também levanta a autoestima das pessoas pretas, principalmente das mulheres e da comunidade LGBTQIA+. Confira a análise da jornalista Lívia Lima do último álbum da artista, Renaissance.

24|08|2022

- Alterado em 24|08|2022

Por Redação

No dia 29 de julho a cantora norte-americana Beyoncé lançou mais um álbum, o sétimo de sua carreira. “Renaissance”, segundo divulgação da artista, celebra o fim do isolamento provocado pela pandemia da Covid-19, e os reencontros na pista de dança. Com 16 canções conectadas como em uma mixagem de DJ, o álbum celebra a música negra.

Mais do que colocar as pessoas para dançar, Beyoncé também levanta a autoestima das pessoas pretas, principalmente das mulheres e da comunidade LGBTQIA+. Ela dedica, inclusive, o álbum ao tio gay Johnny Knowles, que morreu por complicações do HIV.

Existe muito preconceito e falta de conhecimento quando se discute sobre música, principalmente os gêneros mais populares entre o público de massa. Mas reduzir a trajetória, talento e o trabalho de Beyoncé ao padrão da música pop é um grande erro. Qualquer especialista reconhece que sua produção é bem acima da média.

Para falar de Beyoncé, eu me coloco no lugar de uma fã, que tem uma grande admiração por tudo que ela entrega, e especialmente pelo que representa para nós mulheres negras. É muito fácil para quem não nasceu em condições de racismo e subalternidade ridicularizar a sensação de empoderamento que sua imagem e obra suscitam entre nós. As ditas pessoas “cultas” e “elevadas” que adoram menosprezar a arte que alcança o sucesso do mainstream. Por que uma mulher negra não pode ser reconhecida por sua excelência e destaque nos topos das paradas? 

No romance Amada da escritora estadunidense Toni Morrison (1931-2019) – primeira mulher negra a ganhar o prêmio Nobel de Literatura – ao contar a história de mulheres escravizadas, baseada em fatos reais, a autora aborda a necessidade de pessoas constantemente desumanizadas reivindicarem o amor entre elas. 

“aqui, neste lugar, nós somos carne; carne que chora, ri; carne que dança descalça na relva. Amem isso. Amem forte. Lá fora não amam a sua carne. Desprezam a sua carne. Não amam seus olhos; são capazes de arrancar fora os seus olhos. Como também não amam a pele de suas costas. Lá eles descem o chicote nela. E, ah, meu povo, eles não amam as suas mãos. Essas que eles só usam, amarram, prendem, cortam fora e deixam vazias. Amem suas mãos! (…) Vocês têm de amar, vocês!”, diz um trecho do livro. 

E continua: “Vocês têm de amar. É da carne que estou falando aqui. Carne que precisa ser amada. Pés que precisam descansar e dançar; costas que precisam de apoio; ombros que precisam de braços, braços fortes (…) Sem dizer mais, ela se levantava então e dançava com o quadril torto o resto que seu coração tinha a dizer enquanto os outros abriam a boca e lhe davam música. Notas longas até a harmonia de quatro partes estar perfeita para sua carne profundamente amada”.

Pensei no romance de Morrison enquanto escutava o novo álbum de Beyoncé porque em algumas das letras, como na canção “Cozy”, ela afirma sobre o amor à sua pele preta: “Ela é um deus, ela é uma heroína/ Ela sobreviveu a tudo o que ela passou/ Confiante, ela é letal (…) Porque ela está confortável/ Confortável na minha pele/ Aconchegante com quem eu sou”, exaltando o quanto é negra no sample da artista trans TS Madison. 

Em “Break my soul”, single lançado antes do álbum completo, a cantora expressa liberdade em relação ao trabalho e celebra uma nova paixão, mas afirma que buscando amor encontrou antes de tudo a autoestima que estava dentro dela. “Você não vai quebrar minha alma” é o que avisa no refrão.

No artigoVivendo de amor”, a teórica feminista bell books (1952-2021) afirma: “O amor precisa estar presente na vida de todas as mulheres negras, em todas as nossas casas. É a falta de amor que tem criado tantas dificuldades em nossas vidas, na garantia da nossa sobrevivência. Quando nos amamos, desejamos viver plenamente. Mas quando as pessoas falam sobre a vida das mulheres negras, raramente se preocupam em garantir mudanças na sociedade que nos permitam viver plenamente. Geralmente enfatizam nossa capacidade de “sobreviver” apesar das circunstâncias difíceis, ou como poderemos sobreviver no futuro. Quando nos amamos, sabemos que é preciso ir além da sobrevivência. É preciso criar condições para viver plenamente. E para viver plenamente as mulheres negras não podem mais negar sua necessidade de conhecer o amor”.

Não posso afirmar, mas acredito que Beyoncé já tenha tido contato com a obra de Toni Morrison e bell hooks, e que dialogue com elas. Independente disso, em suas músicas, principalmente nesse novo álbum, ela exalta seu amor interior, autoestima, independência, liberdade sexual e, quando ouvimos sua afirmação em primeira pessoa, também nós nos apropriamos de seu discurso, que, por tudo isso, é essencialmente político, ainda que dançante. 

A feminista e ativista Emma Goldman (1869-1940) declarava “se não puder dançar, não é minha revolução”. Na música “Church girl”, Beyoncé afirma “estou avisando a todos, assim que eu entrar nessa festa, eu vou soltar esse corpo, vou me amar/ Ninguém pode me julgar além de mim/ Eu nasci livre. Ela nos convoca para o renascimento e para o amor na pista de dança. Me sinto pronta!


Coluna publicada originalmente em Expresso na Perifa – Estadão

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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