chef de cozinha aponta para logo do Kitanda das Minas

‘A comida é um elo’: chef Priscila Novaes vê culinária além do lazer

A chef paulista lidera o restaurante Kitanda das Minas, em São Paulo, que oferece gastronomia afro-brasileira.

Por Beatriz de Oliveira

03|10|2022

Alterado em 03|10|2022

Uma mulher negra entra no restaurante, pergunta o que tem para o almoço. A chef informa os pratos do dia. “O que vem no acarajé?”, pergunta a mulher. Com calma, explica o preparo do alimento. A cliente decide provar. Os minutos necessários para fritar o bolinho de massa de feijão-fradinho e montar a comida afro-brasileira são embalados pela prosa das duas. A cliente fica curiosa para saber sobre a origem do nome do estabelecimento: Kitanda Minas. “Tem a ver com Minas Gerais?”. Na verdade, conta a cozinheira, faz uma relação com o termo mulheres e também com a nação Mina, em que mulheres trabalhavam como quitandeiras nas ruas durante o período escravocrata, e por meio do ofício compravam, inclusive, suas cartas de alforria.

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Chef Priscila explica para cliente origem do nome do restaurante.

©Beatriz de Oliveira

O restaurante, localizado no centro da cidade de São Paulo, é um negócio da chef Priscila Novaes. A paulistana de fala serena não vê a gastronomia apenas como forma de entretenimento ou lazer, mas como ferramenta para pensar a realidade, discutir e resgatar a ancestralidade. “A comida é um elo, muitas coisas acontecem enquanto as pessoas estão se alimentando, fecham parcerias, se desenrola muitas coisas”, diz. Nem sempre foi assim. Até entender a culinária como profissão, Priscila passou por longos anos e experiências.

O Kitanda das Minas é um “espaço que une e compartilha saberes por meio da gastronomia afro-brasileira”. O restaurante nasceu em 2017 e funcionava na casa de Priscila. Depois passou a ocupar o espaço da cozinha profissional do espaço cultural Galpão ZL. Instalou-se ainda no bairro da Liberdade, no centro de São Paulo (SP), antes de chegar à Casa Preta Hub, espaço de economia colaborativa, onde está hoje.

Priscila também está envolvida em outros projetos gastronômicos, como na formação para mulheres ingressarem na área da culinária e a Quilombo Quebrada, iniciativa feita em parceria com a Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale) para levar alimentos orgânicos produzidos pelos quilombolas até as periferias paulistas.

O caminho até se tornar chef de cozinha

Nascida na Penha, zona leste de São Paulo (SP), Priscila se mudou com a família para Cidade Tiradentes, no extremo leste, aos sete anos de idade. Foi lá, que durante a infância brincava na rua e encontrou mais colegas negras na escola. Ainda criança, a criadora do Kitanda das Minas se encantou pela culinária. “Sempre gostei de ver como as coisas se transformavam na cozinha. Eu pego, ovo, farinha e leite, e vira um bolo”, conta ao lembrar da Priscila criança.

Antes de ingressar de vez no ramo da cozinha, a Priscila adulta trabalhava na área de telemarketing. Definitivamente, não gostava desse “ganha-pão”, mas não sabia que outro caminho seguir. Quem provava sua comida, sugeria “por que você não trabalha com isso?”. Até que ela foi promovida para área administrativa e pensou que as coisas melhorariam. Não melhoraram. As regras no escritório não a agradavam. “Preciso sair daqui”, falou para si mesma. E saiu.

A contragosto da família, principalmente da sua mãe que sentia orgulho da filha por ter sido promovida e trabalhar com carteira assinada, usou o dinheiro da rescisão para montar uma barraca de café da manhã na estação da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) de Guaianazes, zona leste da capital paulista. Vendo a situação, seus vizinhos sugeriam que ela entregasse currículos em lojas. “É muita pressão da sociedade quando você tenta fazer uma coisa que é fora da curva”.

Mesmo largando o emprego formal para se sustentar com o dinheiro que recebia a partir de sua comida, Priscila ainda não enxergava o talento para a cozinha como uma profissão. “Eu via como uma forma de gerar renda fora daquele mundo corporativo”.

Esse auto-reconhecimento veio com os trabalhos que realizava no coletivo Mulheres de Ori, formado por mulheres negras da Cidade Tiradentes, do qual é uma das fundadoras. Começou a cozinhar em eventos e ver seu trabalho sendo valorizado. “Eu comecei a circular em lugares que o meu saber era valorizado e reconhecido, as pessoas não ficavam barganhando preço, foi quando eu vi que realmente poderia virar uma profissão”, lembra.

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Priscila Novaes vive no extremo leste de SP © Beatriz de Oliveira

Priscila Novaes monta prato de acarajé para cliente © Beatriz de Oliveira

A chef conta com o auxílio duas cozinheiras no restaurante © Beatriz de Oliveira

Baião de dois é um dos pratos servidos no Kitanda das Minas © Beatriz de Oliveira

O Kitanda das Minas está localizado no centro de São Paulo © Beatriz de Oliveira

Avistando no horizonte a gastronomia como profissão, Priscila buscou mais qualificação. Formou-se em técnica de cozinha em uma Escola Técnica Estadual (Etec) e fez cursos de panificação e confeitaria. Conquistados os diplomas, houve muita reflexão interna para se definir como chef de cozinha. Não se sentia com o direito de usar esse título por não ter curso superior em gastronomia, algo também compartilhado por outras mulheres do ramo da alimentação com quem conversou.

As reflexões chegaram à conclusão sobre os títulos que a sociedade destina às mulheres negras que trabalham no ramo da gastronomia:

“Chef de cozinha é um lugar de prestígio. Cozinheira, merendeira, mulheres que cozinham em escolas de samba e mulheres de terreiro não são lugares de prestígio, não são reconhecidas como chefes de cozinha”, afirma.

Cultura afro no prato

A vontade de incluir raízes africanas na sua culinária veio acompanhada de sua própria identificação como mulher negra. “A gente é preta desde sempre, o racismo não espera a gente crescer, mas até a entender o que isso significa, para cada pessoa tem um momento”. O fato de começar a frequentar uma casa de candomblé também contribuiu para levar a identidade afro-brasileira para a cozinha.

Priscila se questionava sobre a falta de menção a esse tipo de culinária durante o curso que fez na ETEC. “Não é possível que a culinária que eu vejo na minha casa desde pequena e que vejo no terreiro não esteja aqui dentro. E não estava mesmo. A gastronomia tem uma base muito embranquecida”, aponta.

A chef diz ainda que o fato da culinária negra não ser valorizada e considerada em suas técnicas faz com que seja colocada no lugar de dom. “Sempre queriam me colocar nesse lugar de dom. Não é dom. Eu estudo, eu pesquiso, eu desenvolvo técnicas”.

Na jornada pelo reconhecimento como mulher e chef negra, Priscila passou a buscar histórias que não lhe foram contadas: pesquisou sobre as baianas do acarajé, mulheres de tabuleiro e quitandeiras.

“Mulheres que em África já faziam comércio e trabalhavam com alimentação, quando vem pra cá [Brasil] enxergam como única ferramenta levar a alimentação [para a população da época]. No Brasil Colônia, as pessoas tinham todos os seus direitos roubados e essas mulheres eram as únicas que podiam circular, porque todas as pessoas tinham que se alimentar. Tinham livre acesso a muitos lugares. Algumas conseguiram deixar herança através desse ofício, abrir casas de candomblé, escolas de samba, conseguiram muitas coisas através da alimentação. Eu me reconheci e me inspiro nessas mulheres”, conta.

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Priscila Novaes é organizadora do livro Ajeum – O Sabor das Deusas, lançado em 2017.

©Beatriz de Oliveira

O conhecimento que adquiriu não foi apenas para a cozinha, ganhou forma também em livro. Priscila Novaes é organizadora do livro Ajeum – O Sabor das Deusas, lançado em 2017 e reconhecido pelo Prêmio Patrimônio Cultural dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A vontade de publicar uma obra veio da ânsia por ser reconhecida e participar de discussões sobre os temas que estuda. Serviu também como forma de validar a sua pesquisa fora do ambiente acadêmico. “Parece que a gente que é mulher preta está sempre tentando se provar”, reflete.