Foto mostra as crianças apresentando a obra Figura Só, de Tarsila do Amaral para os visitantes do museu

Museu é lugar de criança? Pequenos periféricos te mostram que sim

Crianças da Zona Leste de São Paulo foram “monitores por um dia” da exposição de longa duração do MASP e ensinaram aos visitantes tudo sobre arte

Por Amanda Stabile

07|12|2022

Alterado em 09|12|2022

Era uma tarde ensolarada de quarta-feira, 23 de novembro, quando dezenas de pézinhos ligeiros e dedinhos curiosos tomaram conta da exposição de longa duração do acervo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP). 

“Não pode pôr a mão”, avisou a professora enquanto os pequenos de cinco e seis anos admiravam a escultura ‘Diana Adormecida’ (1690-1700), do artista italiano Giuseppe Mazzuoli. “Mas nem um pouquinho?”, perguntou um dos meninos enquanto encolhia o braço que já estava próximo de acariciar a estátua de mármore.

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Crianças admirando a escultura Diana Adormecida (1690-1700), do artista italiano Giuseppe Mazzuoli

©Amanda Stabile

As crianças, vestidas com coletes vermelhos por cima do uniforme, são estudantes da EMEI Professor Antônio Rubbo Muller, no Parque São Lucas, na Zona Leste de São Paulo (SP). Antes de pisar no MASP pela primeira vez, eles passaram 2022 inteiro estudando as obras e artistas junto à sua professora, Ester Gonçalves. E elas estavam ali para ensinar.

“No início do ano nenhuma criança havia ido a um museu”, conta a professora. “No decorrer dos meses, elas e eu começamos a pedir aos pais que, se possível, as levassem, pois eu não poderia garantir que as levaria e expliquei a importância disto. Com isso, duas famílias levaram as crianças, mas percebi que também foi a primeira vez dos pais em um museu!”, diz.

Uma das famílias até relatou a Ester que não levaria, pois também nunca tinha ido e não saberia como se “comportar”, nem o que fazer lá dentro. “A minha vontade era de levar as crianças e suas famílias, mas a logística é muito complicada”, lamenta.

Cultura para quem?

Esse é um dos retratos do acesso à cultura no Brasil, que tem CEP, classe e cor definidas, como mostra a Rede Nossa SP. Atualmente, a cidade de São Paulo dispõe de 110 museus, porém, segundo o Mapa da Desigualdade 2022, 59% dos distritos do município não possuem espaços de cultura, que se localizam majoritariamente nos bairros centrais.

Ainda, segundo o relatório do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgado em 2019, 44% dos negros (pretos e pardos) vivem em cidades sem cinemas; e 37%, em cidades sem museus.

Uma pesquisa do Instituto Oi Futuro e da consultoria Consumoteca também mostrou que mais de um terço das crianças e adolescentes com menos de 14 anos não têm acesso a esse tipo de lazer cultural. O estudo identificou, ainda, que a maioria das pessoas que não frequentam museus pertence às classes C (55%).

Cuidado com o vidro

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Quadros Retirantes e Criança morta, de Cândido Portinari

©Amanda Stabile

“Parece que tá flutuando”. É assim que as crianças, em coro, definiram a estética do acervo do museu. Com uma arquitetura moderna por dentro e por fora, o MASP não dispõe suas peças na parede, mas em cavaletes de cristal projetados pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi em 1968.

Os pequenos já sabiam disso. E, além de conferir pessoalmente o que aprenderam em sala de aula por meio de brincadeiras, leituras e releituras, e atividades como apresentações teatrais e musicais, elas também ensinaram tudo isso aos adultos que visitavam a exposição. Do jeitinho delas, sem decoreba.

“A visita ao MASP já era um objetivo, mas percebi que com o conhecimento assimilado e a facilidade de comunicação que adquiriram durante o ano, a turma teria essa capacidade de levar seus conhecimentos para fora dos muros da Emei. E porque não ao MASP?”, explica a professora, que organizou a “monitoria educativa” junto às crianças.

Aprendendo com os pequenos

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Crianças apresentam a obra Figura Só, de Tarsila do Amaral para os visitantes do museu

©Amanda Stabile

De seu jeito e em seu tempo, a turma conseguiu expor pensamentos, opiniões e sentimentos sobre os artistas e as obras. Guiados pelas perguntas da professora Ester, os estudantes contaram ao público, aos pulinhos, fatos sobre a vida de Tarsila do Amaral.

– Ela tinha 40 gatos e gostava dos 40 gatos – contou uma das crianças.

– Adorava gatos – constatou outra.

– E ficava toda arranhada de gatos – concluiu a terceira.

O quadro ‘Figura Só’ (1930), da artista paulista, foi um dos que as crianças estudaram em sala de aula. Nele, uma mulher é retratada sozinha, de costas, com os cabelos ao vento e olhando para uma paisagem quase vazia. Nada se vê além do céu, do chão e de algumas árvores.

Giovanna Camillo Vieira, de 5 anos, logo explicou: “Ela pintou quando tava se sentindo triste. Ela se separou do Oswald de Andrade e ficou sem dinheiro. Tinha só um pouquinho”. Nesse período, Tarsila perdeu a fortuna na crise financeira após a queda da Bolsa de Nova York, em 1929.

Vizinhos dos quadros da artista estavam as obras de Cândido Portinari, chamado de Candinho pela mãe, como as crianças gostaram de destacar. “Ele nasceu no interior de São Paulo, igual a Tarsila do Amaral”, explicou Bernardo Marques dos Santos, de 6 anos.  “Ele foi estudar em uma escola de arte na França, sentiu saudade do Brasil e aí voltou”, complementou.

Em frente às obras ‘Retirantes’ e ‘Criança Morta’ (ambos de 1944), ele explicou: “o presidente não gostava dos quadros dele porque não gostava das pessoas pobres”. Portinari, que nasceu em uma fazenda de café, gostava de pintar temas sociais, mostrando a população brasileira, sua cultura e seu trabalho.

“Ele queria mostrar que os trabalhadores têm valor”, contou Bernardo ao público sobre o quadro ‘O lavrador de Café’, pintado pelo artista em 1934. “Esse era o trabalhador que coletava café e todo o dinheiro que era pra ele receber ia pro fazendeiro e o fazendeiro só dava pouco dinheiro pra ele”, completou.

E os estudantes não sabiam apenas a história dos pintores brasileiros. O artista impressionista francês Claude Monet, por exemplo, foi recebido por eles com extrema animação. “Olhem, aqui dá pra ver algumas coisas que não conseguimos nos livros. Por exemplo, olhem essas pinceladas”, falou a professora, apontando para o desenho das ondas em ‘A Canoa Sobre o Epte’ (1890).

No mesmo corredor estavam os quadros do também francês Pierre-Auguste Renoir, “ele era um grande amigo do Claude Monet”, destacou Giovanna. O impressionista gostava de pintar as pessoas exatamente como elas eram, dando grande atenção aos detalhes.

Em frente ao quadro ‘Rosa e Azul’ (1881), que mostra duas meninas com vestidos da época, surgiu do meio da turma um resumo da obra: “A Alice tá triste e a Elisabeth tá se achando”. Depois das risadas, as crianças explicaram que a pintura foi encomendada pelo pai das meninas e que ele não gostou do resultado.

Após a apresentação das obras, a professora pediu: “agradeçam na língua dos artistas”. E os visitantes só continuaram a visita após ouvirem um alto e sonoro “merci” dos pequenos monitores de arte daquela tarde.

Museu é lugar de criança?

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Quadro Senhora injustiça, de No Martins

No subsolo do MASP, enquanto tomava um achocolatado e comia sua barrinha de cereal, Bernardo contou que sabia de todas as informações dos artistas porque guardou na cabeça tudo o que a professora Ester ensinou para quando fosse ao museu. Ele não tem um artista preferido, mas três: Vincent van Gogh, Tarsila do Amaral e Leonardo da Vinci.

“O meu quadro preferido são todos os quadros”, constatou Giovanna enquanto tentava descobrir se podia repetir a refeição. Para ela, todas as crianças têm de ir ao museu para ver a exposição dos quadros de pertinho e aprenderem mais sobre a arte que, segundo Bernardo, é importante porque traz o mundo pro nosso coração.

Mas museu é lugar de criança? “Pra mim, o museu já era feito pra mim”, respondeu, decidido, o menino. “A questão é que os museus parecem não ser acessíveis às crianças, as obras são sempre expostas em uma altura não adequada a elas. Ainda há a dificuldade das pessoas da periferia visitarem esses espaços culturais, geralmente longe de onde vivem”, aponta a professora Ester.

“Pra mim, o museu já era feito pra mim”, diz o Bernardo Marques 

Para a educadora, outra questão que impede que as crianças visitem os museus é a visão de que é um espaço elitizado. “Elas são abertas ao novo e a arte é para todos! Os museus nos ensinam, nos elevam, fazem pensar, admirar, não parece o lugar mais propício às crianças?”, questiona.

“Elas precisam saber desde cedo que esse lugar é delas, é nosso, é de todos. Devem aprender a importância da cultura, valorizar nossas origens, nossos artistas, não importa de onde nem de quando, pois como me disse o Bernardo no auge dos seus 6 anos, ao final desta nossa visita ao MASP, ‘a arte fala no nosso coração’”, conclui Ester.


Agradecimentos pela realização do projeto: Ester Gonçalves e Denise Regina Hein Santos, professoras; Marcos Vazatta, diretor; Anny Monteiro Borges Arruda, assistente de diretor; e Thaís Thomaz Bovo, coordenadora pedagógica.