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Violência obstétrica: da desumanização do corpo negro ao parto humanizado

Conheça a história de Edite Neves, moradora de Itaquera, zona leste da cidade de São Paulo. De sua experiência com violência obstétrica ela transformou sua missão de vida em apoio a mulheres, se formou doula.

Por Jéssica Moreira

19|03|2020

Alterado em 19|03|2020

Este conteúdo faz parte do especial “Na periferia da saúde: precarização do SUS afeta mais as mulheres pobres e negras”

A percepção sobre o próprio corpo não foi um processo simples na vida da doula e pedagoga Edite Neves, 37. Negra, nascida em Itaquera, zona leste da periferia de São Paulo, Edite cresceu com mais cinco irmãos e a mãe, dona Eurides, com quem aprendeu desde cedo sobre a importância do estudo, da espiritualidade e ancestralidade.

“Foi minha mãe quem me deu estrutura emocional, de justiça e de dignidade. Mas nem sempre ela tinha um lugar de clareza para falar sobre sexualidade, para falar sobre o corpo”, conta Edite, que foi pensar sobre isso mais tarde, junto a outras mulheres que encontrou no decorrer da vida.

“Menina preta, nunca entendi muito bem sobre meu corpo. Nunca tive uma formação. Eu fui perceber a sexualidade mais na vida adulta, pra lá dos 20 anos, até porque uma mulher preta normalmente não namora. Na adolescência, ela é invisibilizada”, relembra.

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O auto-questionamento veio de maneira mais latente aos 30, quando ela, infelizmente, vivenciou uma experiência de violência obstétrica durante o parto do filho Ravi, agora com oito anos, e foi impedida de viver o sonho do parto natural.

No período, já graduada em Pedagogia e Linguagem das Artes e com acesso à informação, sabia que seu companheiro José Lopes (Mestre Moreira) — também um homem negro — poderia acompanhá-la no parto, já que, desde 2005, existe a Lei do Acompanhante.

Não foi isso que aconteceu. Edite, que havia planejado um parto natural, naquele dia não foi ouvida. Não teve, sequer, a chance de reivindicar seu direito, muito menos de ter o marido ao seu lado.

“No dia, houve troca de plantão. A enfermeira olhou as cesáreas do dia anterior e pensou: ‘ah, vamos igualar o plantão, que a gente fica igual e dobra’”, conta a pedagoga, lembrando como a decisão sobre a realização de uma cesárea e sobre seu corpo havia sido arbitrariamente tomada.

“Eu estava meio que dormindo, fui colocada em uma maca, entrei em desespero, perguntando o que estava acontecendo. Disse que queria meu companheiro comigo, pois sabia que tinha direito a acompanhante. Nesse momento, tinham amarrado meu braço, passado alguma coisa na barriga e sem meu companheiro presente. Eu estava desestabilizada, desesperada, a equipe foi ríspida com ele, como se não tivesse direito de estar ali”, relembra.

Racismo estrutural

A violência obstétrica contra a mulher negra é uma realidade no país, ainda que subnotificada. O estudo Nascer no Brasil:  Pesquisa Nacional sobre Parto e Nascimento, da Fiocruz, com análise de prontuários de 23.894 mulheres de 2011 a 2012, deu origem ao artigo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil“, que mostra como cor e raça das pacientes têm relação direta com as violências que ainda sofrem no atendimento.

“Mulheres pretas e pardas, além de um pré-natal com menor número de consultas e exames, vinculam-se menos à maternidade para o parto e recebem menos orientações, o que resulta em maior peregrinação para parir”, aponta o estudo.

“Eu senti na pele todos os tipos de violência,  que eu jamais imaginei que uma mulher poderia passar. Quando eu conto, as pessoas quase não acreditam. Vivenciei na pele. Percebi isso na prática para receber o meu serzinho mais sagrado e amado”, conta Edite.

Os impactos também se relacionam à garantia do direito da mulher negra ao acompanhante. Mesmo diante da Lei 11.108/37, que garante a escolha do acompanhante, a pesquisa Nascer no Brasil identificou que 25% das mulheres ainda ficaram sem acompanhantes no processo de internação e parto. “[Esse direito] foi mais violado entre pretas e pardas do que entre brancas”, concluem.

“Não fui ouvida. Subiram, recebi bronca porque estava com um colarzinho. ‘Mas eu não trabalho aqui, não sabia’, eu disse. Tiraram o colar. Me colocaram em uma maca dura e em nenhum momento permitiram meu companheiro de subir”.

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Edite ressignificou sua história tornando-se doula

©Arquivo Pessoal

“É melhor ficar quietinha”

A história de Edite não é um caso isolado. Ela viveu isso, assim como sua irmã, também negra, e diversas outras mulheres da mesma cor. “Meu sobrinho nasceu há 20 anos de parto normal. Fizeram episiotomia, que é corte na vagina. E porque minha irmã é uma mulher negra não deram nenhuma anestesia local e ainda disseram ‘é melhor ficar quietinha, que pode ficar pior’”.

A partir de investigações realizadas em outras pesquisas, o artigo mostra que há, de fato, um uso menor de analgesia nas mulheres pretas e que isso passa, inclusive, pelo racismo internalizado de estudantes de medicina e residentes.

Há uma década, pesquisa feita com maternidades na cidade do Rio de Janeiro também mostraram que havia menos procedimentos anestésicos no parto vaginal para mulheres pretas e pardas, e que isso ainda era menos recorrente nas de menor escolaridade.

“Constataram que eram comuns as perspectivas identificadas por esses autores como de “racismo internalizado”, de que, ao se comparar pretos e brancos, os primeiros eram tidos como mais resistentes à dor”, apontam.

Depois que deu a luz a Ravi, Edite ainda passou por outros tipos de violência, que reforçam as hipóteses levantadas acima. Colocando-a em uma sala que mais se assemelhava a um galpão, as enfermeiras a deixaram sozinha e disseram que ela só subiria para o quarto quando conseguisse passar de uma cama para outra, como em um teste.

“Preta, periférica, eu não tenho nem direito a denunciar”

“Eu senti que recebi castigo por me posicionar. Meu companheiro queria ficar, mas não permitiram. Foram brutos todo o tempo. Ameaçaram chamar até o segurança pra ele. No momento mais especial das nossas vidas fomos tratados como um número, quantificaram um momento que era muito especial”.

Após esse processo traumático, Edite conseguiu uma terapia para ela e seu marido, realizou uma denúncia no Ministério Público (MP) que nunca resultou em nada, mas até hoje não consegue colocar os pés onde o filho nasceu.

“Eu estava neste lugar de questionar os espaços públicos. Mas a gente só pensa no hospital quando precisa se internar. Quando você está do lado de fora, por mais que você questiona, você ainda não sentiu isso na pele”, enfatiza.

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Edite ressignificou sua história tornando-se doula

©Arquivo Pessoal

“No momento mais especial das nossas vidas fomos tratados como um número”

O artigo da Fiocruz explica que a discriminação racial pode gerar altos níveis de estresse físico, psicossocial e até mesmo adoecimento por parte de quem vive o processo.

“Dados brasileiros apontam maior prevalência de depressão pós-parto em mulheres de cor da pele preta, mesmo após o controle de fatores de confusão como características socioeconômicas, além de desfechos negativos nos recém-nascidos”, esclarecem.

“Por que eu, preta, não pude ter uma doula? “

“Por que eu, preta, não pude ter uma doula?”. O questionamento até hoje atravessa as reflexões de Edite, que utiliza a própria história para refletir sobre o acesso à informação e à própria doulagem quando se fala em mulheres negras e periféricas.

Embora a doulagem já estivesse disseminada há oito anos, quando tudo ocorreu, Edite não teve acesso a esse tipo de cuidado. Essa informação não me chegou. As informações não chegam nas mulheres pretas periféricas. Hoje, um pouco mais. Mas ainda tem um caminho muito longo. Trabalhar com a humanização ainda é um lugar de muita elitização. Nem todas as mulheres têm acesso. Hoje temos doulas voluntárias que se dispõem a fazer alguns acolhimentos, mas nem sempre chega lá na ponta, onde realmente deveria chegar”.

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Mulheres que Edite doulou

©Arquivo Pessoal

“Muitas vezes, a gente não consegue identificar a violência na hora. Quando falam sobre a violência obstétrica, os números são baixos, porque a mulher não entende como violência”, é o que reflete Edite, que após passar por racismo em seu parto e também em outros dois abortos naturais, resolveu se dedicar ainda mais à profissão de doula.

Desacreditada na possibilidade de ser ouvida, Edite resolveu que não iria mais tentar uma via tradicional para solucionar o caso, mas sim pelo o que chama de força da ancestralidade, ressignificando a narrativa por meio da oralidade.

“Conto a minha história muitas vezes para ressignificar. Tenho contado sobre isso em todos os lugares. Conto nas rodas de conversa para ampliar essa perspectiva. Os hospitais só vão pensar na necessidade [ do parto humanizado] se as gestantes falarem que precisam e que haja um processo de conscientização”, acredita Edite.

“Acolher parto nos faz transbordar”, é o que diz em seu perfil no Instagram sobre a doulagem. Seu grande objetivo hoje é mostrar a outras mulheres que elas podem vivenciar diferentes e mais humanizadas formas de cuidados com seu corpo, história e identidade. Edite coloca isso em prática em duas coletivas que integra, a Ciranda Acolhedora e a Makota Terapia Ancestral, ambas iniciativas de mulheres negras e afro-indígenas que trazem a perspectiva do cuidado para além dos tradicionais.

Ciranda acolhedora

Na Ciranda Acolhedora, Edite e sua parceira Elis Teixeira acolhem tanto gestantes quanto bebês e crianças desde o gestar até os 7 anos. O projeto tem como missão acolher a família e ajudá-la a compreender as diversas etapas da infância, assim como auxiliá-los a oferecer uma educação anti-racista. “A Ciranda é fluída, é movimento, ela vai sempre indo ao encontro da necessidade dessas famílias. O objetivo da ciranda é criar pequenas aldeias, fortalecendo nosso quilombo, porque para educar uma criança a gente precisa de um quilombo inteiro”, explica Edite.

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Ciranda Acolhedora realizada com crianças

©Arquivo Pessoal

Aqui, Edite e Elis trazem sempre a ancestralidade como ponto de partida no processo de trabalho. “Isso vem ao encontro da perspectiva do cuidado e do acolher, coisa que aprendemos o tempo inteiro com nossas mães, com nossas avós, e são essas ancestrais que nos fortalecem também intuitivamente o trabalho que a gente direciona”.

O Makota Terapia Ancestral é um projeto realizado por quatro doulas – Edite, Elis Teixeira, Dani Sampaio e Mariana Borges – , que trabalham com processos femininos que vão desde a menarca até a menopausa.

O projeto une ginecologia natural e demais processos terapêuticos ancestrais, como benção do ventre, rodas sobre gestar, parir e cuidar e medicina da placenta. Além do acompanhamento dos partos, o projeto realiza ainda conversas e formações em Unidades Básicas de Saúde (UBS), onde mostram diferentes formas de acolhimento às mulheres gestantes. Uma vez por mês é possível encontrar as integrantes na Feira Orgânica de Mulheres do Butantã, onde apresentam seus medicamentos naturais com base em ervas. Elas oferecem, ainda, outros cuidados, como massagens, escuta afetiva, escalda pés, cama de ervas. “Esse é um grupo que se constitui pela nossa ancestralidade, perpassa por tudo que a gente ouviu, aprendeu e agora a gente tem colocado em prática e tem fluido bastante, pois são mulheres que se olham e aprendem uma com a outra, e acolhem os seus processos”, conta Edite.

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