
Valdecir Nascimento: ‘nós [mulheres negras] somos a ponta de lança para a transformação desse país’
Conheça a trajetória da ativista do feminismo negro que fundou o Odara - Instituto da Mulher Negra
Por Beatriz de Oliveira
25|07|2025
Alterado em 25|07|2025
A maior parte da vida de Valdecir Nascimento tem sido dedicada à luta contra o racismo e todas as formas de opressão. A baiana iniciou sua trajetória como ativista do movimento negro aos 20 anos de idade. Hoje, aos 65, avalia que a organização do movimento de mulheres negras evoluiu significativamente na última década. “Nós [mulheres negras] somos a ponta de lança para a transformação desse país”, afirma em entrevista ao Nós, mulheres da periferia.
Valdecir Nascimento é historiadora, mestre em Educação e fundadora do Odara – Instituto da Mulher Negra, no qual ocupa o cargo de Coordenadora de Captação de Recursos e Articulação Política. Em 2013, a ativista participou da criação do Julho das Pretas, ação proposta pelo Odara como forma de incidência política e agenda conjunta de organizações de mulheres negras do Brasil. A ação visa celebrar o 25 de Julho, Dia Internacional da Mulher Negra Afro-Latina-Americana e Caribenha.
A ativista nasceu e cresceu no bairro de Alagados, periferia de Salvador (BA). Vivendo em palafitas (conjunto de casas e pontes de madeira sobre a água), a maioria dos moradores atuava como marisqueiros – inclusive, Valdecir. Quando as famílias foram removidas para moradias em terra firme e o local virou o primeiro aterro sanitário da capital baiana, as pessoas passaram a trabalhar como catadoras de recicláveis. “Eu venho dessa trajetória, que é uma trajetória em que o racismo é o agente responsável por nos colocar nessa condição”, relata.
O artigo “Dos Alagados à terra firme: processo de produção de uma favela, ausência do Estado e impactos das dinâmicas socioespaciais na vida dos moradores” explica que o bairro dos Alagados era uma ocupação de palafitas e os moradores foram submetidos a um processo de realocação, direcionados a conjuntos habitacionais em locais de terra firme. O processo foi iniciado em 1980 e finalizado nos anos 2000.
Contando sobre sua trajetória, Valdecir reflete que seu ímpeto para a luta é herança do histórico de mobilizações ocorridas em solo baiano, nas quais as mulheres negras tiveram participação efetiva, como a luta pela Independência da Bahia e a Revolta dos Malês.
“Eu sou marcada por essa trajetória histórica do meu estado. É impressa em nós essa perspectiva de não se acomodar. Por isso, eu digo que não é uma particularidade essa minha experiência de vida, mas é parte da história de muitas mulheres negras”, afirma.
A trajetória ativista de Valdecir Nascimento
Com 16 anos de idade, Valdecir Nascimento já havia dado início ao seu ativismo ao participar de movimentos comunitários e da igreja católica, sob a vertente da teologia da libertação (focada na justiça social para populações pobres e oprimidas). Um fato marcante dessa parte de sua trajetória foi o ano de 1980, quando o então papa João Paulo II visitou a cidade de Salvador e foi à inauguração da igreja do bairro de Alagados. Na ocasião, o grupo que Valdecir fazia parte encenou para ele o poema “Deus Negro” (texto que aborda a questão racial), de Neimar de Barros.
Mas foi aos 20 anos de idade que sua atuação direta no movimento negro teve início. Na época, um seminarista negro instigou Valdecir e outras pessoas a criarem um grupo de cristãos negros; no entanto, os demais membros da igreja barraram o projeto. Depois disso, esse mesmo seminarista apresentou Valdecir a militantes do Movimento Negro Unificado (MNU), durante uma manifestação do 1º de maio, Dia do Trabalhador.
Naquela ocasião, a jovem conheceu algumas figuras que faziam parte do MNU e a convidaram para uma reunião. Valdecir define sua inserção no movimento como uma “escola”. “Foi o lugar em que eu aprendi a ser eu, onde eu tive orgulho de ser e de pertencer – e não só pertencer ao povo negro, mas pertencer àquele grupo de pessoas que moravam naquelas condições sub-humanas, como era no meu bairro”, relata.
Ao longo dos anos, a historiadora acumulou variadas atuações em prol dos direitos da população negra. Entre 1995 e 2003, foi coordenadora do CEAFRO – Programa de Profissionalização de Jovens e Adolescentes Negros da Universidade Federal da Bahia. Já entre 2008 e 2011, a convite da administradora Luiza Bairros, foi Superintendente Estadual de Política Para as Mulheres da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia.
No ano de 2010, mais um marco: Valdecir funda o Odara – Instituto da Mulher Negra. A organização, sediada em Salvador, tem como foco o fortalecimento da autonomia e garantia de direitos das mulheres negras, e o enfrentamento às violências raciais e de gênero. Para isso conta com programas específicos para as áreas de direitos humanos, comunicação, educação e formação política, juventude e saúde das mulheres negras.
A historiadora destaca, com orgulho, o trabalho coletivo realizado pelas integrantes do Odara, que conta inclusive, com madrinhas que dão conselhos sobre a atuação da organização. “Quanto mais braços e mãos nos protegendo, a gente caminha melhor”, resume.
Por que marchar?
Com 45 anos de história de ativismo em sua caminhada de vida, Valdecir continua ativa. Seu foco atual – assim como o foco do movimento de mulheres negras como um todo – é na Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, que acontecerá em 25 de novembro em Brasília, e pretende reunir 1 milhão de marchantes. Trata-se da 2ª Marcha Nacional; a primeira aconteceu em 2015 e reuniu 50 mil militantes.
A entrevistada avalia que, nos 10 anos que separam uma marcha da outra, o movimento de mulheres cresceu significativamente. “Nós somos um dos movimentos sociais, que eu considero, mais múltiplo, mais diverso e melhor organizado”, pontua.
Ela fala ainda sobre a importância de marchar diante de um cenário desolador para a população negra em relação à segurança pública, educação, moradia e outros marcadores. “As mulheres negras jovens precisam de um outro futuro. E, se a gente não se levantar, elas não terão outro futuro”, diz.
As mulheres negras jovens precisam de um outro futuro. E, se a gente não se levantar, elas não terão outro futuro
Valdecir Nascimento
Com a propriedade de quem reivindicou uma condição de vida melhor às mulheres negras durante a maior parte da vida, Valdecir crava: “Nós marchamos porque merecemos a nossa dignidade respeitada”.