Vai ter mulher falando de futebol, sim! Futebol está além das 4 linhas

A partir de agora temos uma colunista especial para comentar a Copa do Mundo. A jornalista Monica Saraiva vai contar histórias sobre temas importantes da sociedade, a partir do jogo com a bola que está presente nos mais diversos territórios.

19|10|2022

- Alterado em 17|05|2024

Por Mônica Saraiva

Mulher periférica da Brasilândia, zona norte de São Paulo (SP), filha de mãe e pai que migraram nos anos 1980 do interior do Ceará. Jornalista e fotógrafa há 12 anos. Recentemente se descobriu uma cineasta para contar histórias por esses Brasis. Essa sou eu! 

Inicio minha coluna aqui no Nós, Mulheres da Periferia durante o período da Copa do Mundo para contar vivências por esses Brasis, por meio da língua universal futebol. Até dezembro vão rolar várias histórias sobre temas importantes da sociedade, a partir desse jogo com a bola que está presente nos mais diversos territórios.

De 2011 a 2021 trabalhei no Museu do Futebol, localizado no templo histórico Estádio do Pacaembu, construído em 1940. Hoje sou cofundadora de Gondwana Futebol & Cultura, onde trabalho a bola e a câmera fotográfica como ferramentas pedagógicas com crianças e adolescentes, para incentivar a liberdade e criatividade do falar, pensar, olhar e jogar.

Nem eu mesma sabia, que sabia tanto sobre o assunto. Mulher falando de futebol, muitas vezes é questionada por alguns homens sobre:. “Você sabe o que é impedimento? Sabe o que é um tiro de meta?”

Só que muitas dessas vezes, esses homens que se acham no direito de saberem tudo sobre o futebol dentro das quatro linhas, esquecem que o futebol vai para muito além. O futebol no Brasil está na cultura!

Se observarmos, o futebol se faz presente em nossa vida diariamente de alguma maneira. Corre junto com as transformações da cidade. Tem jogos nas ruas, nas quadras, nos terrões, nas areias das praias, nos campos de várzea que resistem. Enquanto a cidade vai se movimentando, a bola vai rolando nos pés das meninas e meninos.

Ao meu ver, entender e vivenciar futebol é:

  • Saber que as mulheres no Brasil foram proibidas por lei pelo presidente Getúlio Vargas de praticar esse esporte. O decreto aconteceu em 1941 até a regulamentação do futebol feminino em 1983, apesar de oficialmente o fim deste decreto ter sido em 1979;
  • Questionar sobre os diversos abusos sexuais que acontecem com garotos que querem ser jogadores, com o sonho de dar uma vida melhor para sua mãe que trabalha diariamente para “colocar comida na mesa”, porque muitas vezes o marido saiu pelo mundo e nunca mais voltou. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem mais de 11 milhões de mães inteiramente responsáveis pela criação dos filhos;
  • Fazer leitura do futebol que está presente nos livros e incentivar o conhecimento. Por exemplo, cito aqui dois: “Brasil Tumbeiro”, do ex-goleiro Aranha. A obra narra o que todo brasileiro, negro ou não, deveria saber sobre a história do negro no Brasil. Lembrando que Aranha sofreu racismo em 2014, durante a partida entre Santos x Grêmio. Foi xingado por alguns torcedores do Tricolor Gaúcho de “preto fedido” em meio a sons de macaco.  Outro livro é o “Gol Delas”, de Eveline Fernandes. Conta a história de meninas que compartilham da mesma paixão: o futebol. Juntas, elas enfrentam o preconceito para jogar bola e se divertir. 
  • Entender que existe o futebol de amputados e futebol de cegos, para que as pessoas sejam incluídas no esporte. Não são coitadinhas!

GALERIA 1/10

Sebastian no Candeal, Salvador, (BA). © Mônica Saraiba

Jardim Peri, São Paulo (SP). © Mônica Saraiva

Gondwana FC, Jardim Peri, São Paulo (SP).

Cokada FC, Rio Vermelho, Salvador (BA). © Mônica Saraiva

Capão Redondo, São Paulo (SP). © Mônica Saraiva

Cabaceiras (PB). © Mônica Saraiva

Bonsucesso, em Olinda (PE). © Mônica Saraiva

Boa Viagem, em Recife (PE). © Mônica Saraiva

Aldeia Tenondé Porã. © Monica Saraiva

Futebol de Rua, Capão Redondo, São Paulo (SP). © Mônica Saraiva

Ver e vivenciar que o futebol se torna o “jogo brincadeira” mais acessível entre crianças e adolescentes, porque a bola é o objeto que está ao alcance e se joga em qualquer espaço. Cito como exemplo as periferias que tem ruas estreitas, becos, vielas, casas que não possuem quintal, calçada, moram em frente à avenida . A garotada está ali, jogando com seus amigos e amigas de pés descalços, com as traves de chinelas, pedras, blocos de construção, naquele espaço que se torna uma arena de futebol chamada brincar. Eu, entre meus nove e 11 anos, brincava de futebol na rua com amigos e amigas. Fazíamos as traves de pedras ou chinelas. Tirávamos par ou ímpar e começávamos a jogar, parávamos às vezes por conta dos carros que passavam. A rua era nossa diversão depois da escola, a gente já sabia o horário de sair e se encontrar para brincar. Não tinha celular na época, nossa conexão era a rua, a vontade e liberdade do brincar, correr, gritar, sorrir…

Quando somos crianças e moramos nas periferias, queremos brincar igual a toda criança que deve ter o direito de brincar, mas no nosso caso, não tínhamos área de lazer. Essa percepção minha só veio na fase adulta. Por que não temos praças com quadras, parques, espaços de lazer igual vemos nos centros?

Para chegar no centro, pagar condução, tempo de deslocamento, tudo isso desmotiva a família a ter uma vida de lazer, ainda mais nos tempos atuais do Brasil onde tudo está caro.  O desequilíbrio no acesso aos bens culturais e de lazer, mostra mais uma face da desigualdade social no Brasil.

Morar na Brasilândia me ensinou muito, tudo que fui e sou. Vivenciar a rua me permite olhar para todos os contextos cotidianos e ser esperta para a vida. Morar na periferia, ao lado de tantos sotaques e gente diversa, me ensinou a respeitar todas as pessoas.

Somos a mistura que representa o Brasil!

Trago nesta minha história, Racionais MC’s na música Fim de Semana no Parque: Na periferia a alegria é igual. É lá que moram meus irmãos e meus  amigos, e a maioria por aqui se parece comigo”. Aqui já se relaciona a música com o futebol. Que aliás, têm várias canções sobre o tema nas vozes de Chico Buarque, Pixinguinha, Jorge Ben Jor. 

Futebol é uma linda dança. Já repararam na ginga, no molejo? Até parece um samba, passinho e forró dentro de campo.

Isso é Brasil, isso é Futebol! Eu estou aqui para contar esses futebóis que estão por esse mundão, em cada território. Está em mim, na minha memória afetiva e em você de alguma maneira.

Quando lembra do seu pai, sua mãe, seu avô. Quando recorda o álbum e troca de figurinhas, o jogo de várzea, as revistas, fotografias, pinturas, filmes. Essa é a essência do futebol!  Futebol é nossa manifestação cultural popular. Futebol é uma ferramenta pedagógica para falar de vários temas. Futebol é diversidade!  Tem Taça das Favelas, Copa dos Refugiados e Imigrantes, Ligay, LGBTQIA+, Povos Originários como o time feminino Xondarias Guarani.

Por isso, homens, quando encontrar uma mulher que queira falar de futebol, senta do lado, troca aquela ideia legal, de fala e escuta. Tenho certeza que muitas histórias em comum vão se conectar.  Futebol é um jogo em equipe! Bora jogar assim dentro e fora das quatro linhas. 

Bora jogar com respeito e liberdade. 

Para conhecer mais sobre o meu trabalho, deixo aqui o Instagram: @gondwana.fc, @monicasaraiva.silva e o teaser do meu documentário “Gondwana, A Bola Conecta” sobre a influência Africana no Brasil, a partir da narrativa futebol.


Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Mônica Saraiva Mônica Saraiva é jornalista, fotógrafa e diretora. Moradora da Brasilândia, em São Paulo (S), é filha de mãe e pai cearenses. Trabalhou 10 anos no Museu do Futebol. É cofundadora do Gondwana F&C (Futebol & Cultura) e da Gondwana Comunicações. Também atua como mentora, consultora e palestrante de temas relacionados a cultura, educação e esporte.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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