
Tigrinho, Café com Deus Pai e o desserviço de alguns influenciadores
Apesar de aparentemente contraditório, publicar jogos de azar seguidos de devocionais tem sido a tendência de muitos criadores de conteúdo
Por Beatriz de Oliveira
05|05|2025
Alterado em 05|05|2025
Ninguém pode servir a dois senhores, pois, ou odiará a um e amará o outro, ou será fiel a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro
Mt 6,24
Certamente, muitos influenciadores discordam desse versículo bíblico. São aqueles que postam um story edificando os ensinamentos de Jesus Cristo, e logo em seguida, outro divulgando o jogo do tigrinho, o que lhes rende rios de dinheiro às custas do endividamento alheio.
Pode parecer contraditório, mas essa tem sido a tônica de muitos influenciadores nas redes sociais. Nesse sentido, o queridinho desses criadores de conteúdo tem sido o livro devocional Café com Deus Pai, cujos trechos e imagens são compartilhados amplamente.
Com quatro edições, o devocional Café com Deus Pai se tornou um best-seller e lidera rankings de sites de venda de livros. A obra reúne mensagens religiosas para cada dia do ano.
“Semelhante ao fenômeno ‘católicos não praticantes’, existem hoje pessoas que têm afinidade com valores evangélicos e a fé evangélica, mas que não necessariamente praticam todos os ensinamentos, seguem alguma doutrina ou frequentam a igreja. Nesse sentido, para algumas pessoas, o ser cristão ou evangélico parece ter mais a ver com uma rotina diária, profissão de fé pessoal e postura ideológica do que um compromisso religioso. É aqui que o fenômeno ‘Café com Deus Pai’ aparece”, explica Luciana Petersen, jornalista, pastora e diretora do Novas Narrativas Evangélicas.
Pensando nisso, o Nós, mulheres da periferia acompanhou os perfis de duas influenciadoras de origem periférica para mostrar como se dá essa rotina de postagens que aliam fé e jogos de azar. São elas: Giovana Dib e Livia Rafaelle.
Com mais de três milhões de seguidores nas redes sociais, Giovana Dib é dona dos perfis no Instagram @giovana.dib e @reserva.dib. Ela costuma compartilhar sobre sua rotina, incluindo ida a academia, receitas e compras. Também esbanja riquezas, como carro de luxo.
No período em que assistimos seus stories (fevereiro de 2025), ela postou quase que diariamente vídeos lendo Café com Deus Pai. Também publicou louvores evangélicos e fotos da Bíblia. Foram frequentes ainda as divulgações de plataformas de jogos de azar. No dia 09/02, por exemplo, a influencer postou uma divulgação de tigrinho e, uma hora depois, vídeos do devocional.
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Já Livia Rafaelle conta com mais de quatro milhões de seguidores e é dona dos perfis do Instagram @rafaellelivia e @karambaliviapessoal. Seus stories incluem sua rotina, procedimentos estéticos, academia, festas e seu trabalho na loja de roupas online @use.liviarafaelle.
Quando acompanhamos seus stories, também em fevereiro de 2025, ela postou quase que diariamente fotos de páginas do livro Café com Deus Pai. Foram frequentes também prints de jogos de azar acompanhados de links para acessar as plataformas.
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Para Luciana Petersen, esse cenário indica a disseminação de uma “cultura evangélica”. “À medida que a ‘cultura evangélica’ tem cada vez permeado mais a sociedade brasileira, influencers de lifestyle inserem a espiritualidade como parte do pacote de vida ideal a ser vendido. Academia, viagens, espiritualidade, vida fitness, dinheiro fácil (com as bets)”, diz.
Entramos em três plataformas de jogos de azar divulgadas pelas influenciadoras. Todas são irregulares, de acordo com a confirmação de Geórgia Manfroi, advogada e autora do artigo “Jogos de Azar e de Apostas de Quota Fixa On-line: Reflexões sobre a Proteção do Consumidor-Apostador”.
Além disso, oferecem bônus para os apostadores, o que também é ilegal. “Ao acessar os respectivos sites, já é possível identificar múltiplas violações às normas regulamentadoras. Um exemplo claro é a promoção de bônus aos apostadores, prática que consiste na oferta de incentivos financeiros antes mesmo da realização das apostas, como dinheiro extra para apostar ou apostas gratuitas”, pontua a advogada.
Um jeito simples de saber se uma plataforma é regularizada é ver se ela tem o domínio “bet.br”, pois de acordo com a legislação apenas sites de apostas com esse domínio podem operar legalmente no Brasil.
As bets e casas de apostas foram regularizadas, através da Lei 14.790/2023 e de portarias posteriores, que preveem diretrizes para um jogo responsável, prevenção de dependência e transtornos do jogo patológico e de endividamentos.
Georgia acrescenta que influenciadores que divulgam sites irregulares de apostas estão passíveis de punição. “O influenciador pode ser considerado corresponsável por publicidade enganosa ou abusiva, nos termos do artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor. Caso a plataforma promovida não seja legalizada e cause prejuízos aos consumidores, ele poderá responder solidariamente pelos danos”, explica.
Para denunciar plataformas irregulares e influenciadores que as divulgam, a advogada orienta a acessar a Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação e seguir os seguintes passos:
Acesse o site e faça login com sua conta Gov.br;
Clique em “Nova manifestação” e, em seguida, selecione “Denúncia”;
Selecione o tipo de denúncia “Apostas/Bets”;
Na opção “Esfera”, selecione “Federal”;
No campo “Órgão”, escolha “Ministério da Fazenda”;
Registre sua manifestação com os detalhes da denúncia.
Como mostramos na série de reportagens “Entre bets e perdas: o cenário de jogos de apostas e azar no país”, a ampla divulgação dessas plataformas contribui para uma espécie de epidemia de jogadores, que acreditando nas falas de prosperidade encorajadas pelos influenciadores, adquirem o hábito de apostar, e acabam se endividando e até desenvolvendo vício no jogo.
Pessoas periféricas estão entre as mais afetadas por esse cenário. Segundo pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), divulgada em abril deste ano, quase 11 milhões de brasileiros apostam de modo a pôr em risco a saúde e as finanças. Ao passo que, a prevalência de formas problemáticas de jogar foi mais alta (52,8%) entre as pessoas com renda mensal de até um salário-mínimo.
Dentro desse contexto, Luciana Petersen afirma que o uso do devocional por influenciadoras como as analisadas, está distante dos compromissos do Evangelho de Cristo com a justiça, humildade e desapego ao dinheiro. “Postar devocional e bets na sequência não parece fazer sentido com o verdadeiro Evangelho. Cristo nos ensina sobre o compromisso com os pobres e oprimidos deste mundo, e famílias pobres e periféricas são as que mais têm sofrido com a epidemia de jogos de azar online”, diz.