Reverenciar as tecnologias ancestrais é reverenciar a si mesmo

Colunista Aline Bispo destaca a importância de reverenciar as tecnologias ancestrais e preservar a memória histórica a partir de uma viagem a Porto Alegre (RS)

15|06|2023

- Alterado em 15|06|2023

Por Aline Bispo

Quando visito uma cidade, tenho interesse em conhecer os mercados, feiras e espaços tradicionais de comércio, pois acredito que é onde a circulação do povo está presente de verdade. O comércio tradicional e popular de um lugar revela muito sobre quem ali vive, sobre as tecnologias ancestrais nos modos de consumir, socializar e criar vidas.

Hoje escrevo diretamente do Rio Grande do Sul e vim aqui para visitar o Mercado Público de Porto Alegre. Todo dia 13 de junho é dia do Orixá Bará, ou Elegbara, ou Exu (ou ainda tantos outros nomes, já que são infinitas as possibilidades e nenhuma daria conta de definir o que é indefinido e múltiplo) e os festejos em sua homenagem acontecem no Mercado.

Quando vim a Porto Alegre pela primeira vez, fiz o que gosto de fazer em toda cidade nova para mim: fui conhecer o mercado central. Era uma sexta-feira, havia samba, pessoas na rua e pude comer em um espaço em frente ao mercado, enquanto duas rodas de samba aconteciam simultaneamente. Foi uma experiência muito especial que desafiou meus estereótipos sobre o sul do país.

Tempos depois tomei conhecimento sobre a festividade gaúcha anual e fiquei muito interessada. Segundo a tradição o batuque em homenagem a Bará acontece todo dia 13 de junho e traz consigo não só uma homenagem ao Orixá, que está assentado no centro do Mercado Público de Porto Alegre, mas também mantém a preservação histórica da contribuição dos negros e negras, que outrora ajudaram a construir a cidade.

A história do assentamento, criado pelo Príncipe Custódio Joaquim de Almeida, também conhecido como Osunanlele Kizi Erupê, que veio do Benin, nasceu em 1831, foi exilado no Brasil e disseminou a cultura africana nos espaços públicos da cidade através de assentamentos de Orixás, é igualmente preservada sempre que essa homenagem acontece.

Recontar tudo isso é lembrar que em cada negro que fundou essa cidade há uma contribuição histórica para busca da prosperidade em comum e pela prosperidade de uma comunidade, já que nas religiões de matrizes africanas tudo se faz em comunidade. Bará é aquele que traz a líbido para se seguir em frente, é a força que mostra que para uma dificuldade se abrem muitos caminhos de possibilidades. Portanto, é a possibilidade de buscar ser próspero, mesmo diante da adversidade.

É interessante pensar que a estratégia de Custódio atinge um nível de tecnologia ancestral e social, a partir do momento que esses assentamentos são espalhados por Porto Alegre e uma comunidade negra se forma ao seu redor. É importante que todos prosperem, encontrem fartura e meios não apenas de sobrevivência, mas também de alcançarem felicidade. As afro-religiões se baseiam nos caminhos abertos e que proporcionem possibilidades para além da subsistência básica, saúde, amor, dinheiro, fé e alegria fazem parte destes componentes.

Como ancestral, a contribuição do príncipe e dos batuques vivem há tempos na memória da comunidade afro-religiosa gaúcha, inclusive entre povos que faziam suas homenagens, há anos, até mesmo em segredo. No entanto, a festa só se tornou oficial aos olhos do poder público em 2020, quando foi tombada como patrimônio histórico-cultural de Porto Alegre.

É importante lembrarmos disso, pois para os povos de religiões de matriz africana, envelhecer é algo importante e é onde se reconhecem os passos ancestrais.

Aline Bispo

Não importa há quanto tempo a lei que oficializa o assentamento presente no mercado tenha sido criada, os traços ancestrais da manutenção dessa história já estão presentes há muito tempo.

Sendo assim, lembrar de Custódio é encontrar sua realeza histórica-popular e caminhar pelo centro do Mercado Público é caminhar junto ao sagrado de Bará. Ainda assim e apesar de ter a maior proporção nacional de terreiros do país, ainda há olhares de reprovação, preconceitos e racismo no estado.

Por isso, olhar para a história de um príncipe africano, conhecer sua tradição junto aos Orixás e entender a importância da preservação desse legado é elevar a autoestima de um povo, a partir da perspectiva que reverencia a sabedoria, os ensinamentos e tradições, especialmente em uma religião onde a oralidade é o mais important, para a manutenção dos saberes. Cultuar o Bará do Mercado é cultuar os ancestrais e os primeiros que ali estiveram, tornando-os imortais. Esse é o segredo dos encantamentos.

A morte precisa existir onde há vida e a vida existe onde há morte, pois a morte não é sobre coisas que se findam, mas sobre recomeços eternos. Há muitos mortos que estão plenamente vivos a partir dessa ciência do encanto.

É por isso que ainda sobre o ecoar dos encantamentos, o festejo com batuque acontece todo dia 13 de junho. Que seja sempre uma oportunidade de aprendizado, junto aos povos de batuque e sua contribuição, para reverenciar os mistérios antigos, buscar nossas tecnologias ancestrais e sociais, a fim de fazermos a manutenção da memória e continuar contando nossas histórias.

Que nossa capacidade de reverenciar o ancestral nos lembre que essa ação também nos reverencia.

Aline Bispo Aline Bispo é artista visual, ilustradora, curadora e colecionadora de arte. Em suas produções investiga temáticas que cruzam a miscigenação brasileira, gênero, sincretismos religiosos e étnicos, partindo do seu lugar no mundo.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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