
Resenha: Os Quatro da Candelária e os sonhos de crianças que seguem sendo interrompidos
Disponível na Netflix, a série ficcional acompanha a trajetória de quatro crianças antes da Chacina da Candelária
Por Beatriz de Oliveira
02|09|2025
Alterado em 02|09|2025
Na noite de 23 de julho de 1993, cerca de 50 crianças e adolescentes em situação de rua dormiam nas escadarias da Igreja da Candelária, centro do Rio de Janeiro. Seus sonos e sonhos foram interrompidos por um ataque policial que resultou na morte de oito jovens. O crime ficou conhecido como a Chacina da Candelária.
É sobre isso que trata a minissérie ficcional Os Quatro da Candelária, disponível na Netflix. A produção venceu o prêmio de melhor roteiro de série de drama na 8ª edição do Prêmio Abra (Associação Brasileira de Autores Roteiristas), em fevereiro deste ano.
Dirigida por Márcia Faria e Luis Lomenha, a série acompanha as 36 horas que antecederam a chacina, sob a perspectiva dos jovens Douglas, Sete, Jesus e Pipoca. Cada episódio é dedicado a apresentar a história de um deles, cujas narrativas se entrelaçam a partir do roubo de uma fábrica de chocolates.
No primeiro episódio, conhecemos a comovente teimosia de Douglas, que quer dar um enterro digno a seu pai de criação. No segundo, acompanhamos a vivência de Sete, que faz aniversário e planeja um futuro melhor para si. No terceiro, assistimos a emocionante saga de Pipoca em busca de sua mãe. E no quarto e último, vemos o menino Jesus se arriscar por um gesto de amor.
Ao final de cada episódio, entramos nos sonhos dessas crianças, que dormem nas escadarias da igreja. Nesse ambiente fantasioso, elas criam um espaço de fartura e possibilidades diversas – o oposto do que vivem na realidade. No entanto, esses sonhos são interrompidos pela chegada de policiais armados, e ali ocorre a Chacina da Candelária.
A produção foi criada com a colaboração de sobreviventes da chacina, cujos depoimentos foram determinantes para a construção do roteiro. “Eles nos ajudaram a entender um pouquinho daqueles meninos que viviam ali na igreja. (…) Esses homens e mulheres narraram uma visão completamente distinta da visão que a sociedade tinha deles”, disse o diretor Luis Lomenha, ao site Omelete.
Com boas atuações, ambientação, caracterização e roteiro, a série vale a pena assistir. É daquelas que ficamos um bom tempo pensando depois de ver. A partir de uma narrativa ficcional, a obra nos leva a refletir sobre sonhos e futuros de crianças que são interrompidos pelo Estado.
Afinal, a chacina de 1993 não foi um caso isolado. A juventude brasileira, principalmente negra, segue tendo negada a chance de sonhar. Em setembro de 2019, a menina de oito anos Ágatha Félix, morreu ao ser atingida por um tiro de fuzil nas costas quando estava com a mãe dentro de uma Kombi no Complexo do Alemão. Em maio de 2020, o adolescente de 14 anos João Pedro Teixeira brincava com os primos dentro da casa de familiares quando foi atingido por um tiro e faleceu. Em ambos os casos, as crianças foram vítimas da letalidade policial.
Somente em 2023, a polícia matou 243 crianças e adolescentes em nove estados, segundo relatório Pele Alvo: Mortes Que Revelam Um Padrão, da Rede de Observatórios da Segurança.
Diante disso, a Chacina da Candelária e as recorrentes mortes de crianças pelo Estado não devem ser esquecidas ou tratadas apenas como estatística. Cada número guarda uma história e uma infância interrompida. Com destreza, a série nos chama a pensar sobre essas histórias e infâncias, e a jamais normalizar o fato de crianças serem impedidas de sonhar.