Repórter sem Fronteiras: Bolsonaro lidera ranking de ataque à imprensa

Organização internacional publica um balanço de 2020 e relembra alguns dos episódios mais significativos deste ano em que as condições de trabalho dos jornalistas se deterioraram por causa da constante pressão do presidente e seus aliados.

Por Redação

27|01|2021

Alterado em 27|01|2021

“Não é nem lixo, porque lixo é reciclável”. Essas foram as palavras que o presidente Jair Bolsonaro escolheu para desferir um dos seus primeiros ataques de 2021 contra a imprensa que, ainda segundo ele, “não serve para nada, só fofoca, mentira o tempo todo”.

Numa de suas primeiras aparições públicas do ano, em 5 de janeiro, ele disse: “O Brasil está quebrado e eu não consigo fazer nada. (…) Eu queria mexer na tabela do imposto de renda, mas teve esse vírus, potencializado por essa mídia que nós temos, essa mídia sem caráter.” Dois dias depois, numa live transmitida pela conta de Facebook da presidência, Jair Bolsonaro foi além, atacando e repreendendo seus alvos preferidos, o grupo Globo e o jornal Folha de S. Paulo:

“A imprensa é responsável pelo pânico no país e pela perda de vidas durante a pandemia, uma vergonha nacional.”

O tom deste início de 2021 coincide com o que foi até agora o mandato do chefe de Estado brasileiro. A hostilidade demonstrada por Jair Bolsonaro não é novidade. Ela reflete como o presidente, sua família e seus apoiadores refinaram, ao longo do ano passado, um sistema focado em desacreditar a imprensa e silenciar jornalistas críticos e independentes, considerados inimigos do Estado.

Em um balanço, a organização internacional Repórter sem Fronteiras (RSF), parceira institucional do Nós, mulheres da periferia, concluiu uma série de publicações trimestrais  que busca decifrar e analisar os ataques coordenados do “sistema Bolsonaro” contra jornalistas e relembra os episódios mais significativos e simbólicos de 2020.

O Brasil ocupa a 107ª colocação no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa de 2020 estabelecido pela RSF.

Os ataques em 2020

Durante o quarto trimestre de 2020, marcado pelas eleições municipais nos 26 estados do país, a RSF registrou 131 ataques à imprensa. O presidente e seus filhos mantiveram o ritmo de agressões, com nada menos que 118 casos computados e com Eduardo Bolsonaro se consolidando como principal predador da liberdade de imprensa da família.

No período eleitoral, os processos judiciais abusivos contra a imprensa também aumentaram. Segundo dados do projeto Ctrl+X, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), foram pelo menos 24 casos de censura de reportagens e de pedidos, por parte de candidatos, de remoção de conteúdo de sites e de redes sociais.

Ao longo do ano, nada menos que 580 casos de ataques contra a imprensa foram registrados no monitoramento realizado pela RSF. Para trazer à tona tendências reveladas por este levantamento e tipificar os ataques em mais profundidade, a RSF fez uma parceria com o Volt Data Lab, agência pioneira em jornalismo orientado por dados no Brasil, que produziu as visualizações de dados que acompanham e ilustram essa publicação daqui em diante.

Ataques emblemáticos de 2020

1. Ataques sexistas e misóginos, forte marcador do bolsonarismo

Patrícia Campos Mello é uma ex-repórter de guerra e famosa jornalista da Folha de São Paulo. No final de 2018, ela revelou uma investigação que implicava Jair Bolsonaro, então candidato, no uso de fundos privados ilegais para financiar campanhas de desinformação via WhatsApp, com oobjetivo de influenciar o eleitorado brasileiro nas eleições presidenciais.

A reportagem fez com que ela se tornasse alvo de uma violenta campanha de insultos e ameaças promovida por apoiadores do candidato Bolsonaro. Também após a reportagem, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News, instalada pelo Congresso brasileiro, ouviu, em 11 de fevereiro de 2020, o testemunho de Hans Nascimento, funcionário de uma das empresas de marketing digital suspeitas de ter participado do envio massivo de mensagens falsas pelo WhatsApp. Nascimento garantiu que a jornalista tinha tentado extrair informações dele em troca de favores sexuais.

Embora imediatamente desmentidas pela jornalista e pela redação da Folha de São Paulo, essas declarações geraram uma enxurrada de comentários sórdidos e escabrosos – vindos, principalmente, do próprio Jair Bolsonaro e também de autoridades federais eleitas, como o deputado federal e filho do presidente, Eduardo Bolsonaro.

Na Câmara, Eduardo declarou não duvidar que “a senhora Patrícia Campos Mello, como afirma Hans, poderia ter oferecido favores sexuais em troca de informações, a fim de prejudicar a campanha do presidente Jair Bolsonaro”. Insinuações que foram amplamente divulgadas nas redes sociais e geraram uma nova onda de ameaças e insultos sexistas e misóginos contra Patrícia Campos Mello.

O episódio teve consequências graves para a jornalista, relatadas em entrevista à RSF: “Quando circulavam memes com fotomontagens sobre mim, evitava sair para cobrir os protestos. Isso é um absurdo, nós não estamos em um país em guerra, então deveria ser normal cobrir manifestações democráticas.”

Assim como Patrícia Campos Mello, um dos principais alvos do “sistema Bolsonaro”, muitas mulheres jornalistas sofreram ataques sexistas e foram obrigadas a trabalhar num ambiente nauseante, à mercê do linchamento digital dos apoiadores de Bolsonaro. Entre elas, estão Bianca Santana, Vera Magalhães, Constança Resende, Lola Aronovitch, Maria Júlia (Maju) Coutinho, para citar apenas algumas.

2 – Palácio da Alvorada, palco de humilhações públicas de jornalistas

Em 2020, o Palácio da Alvorada em Brasília, onde o presidente mora e de onde costuma dar coletivas informais pela manhã, se tornou símbolo da sua hostilidade aos jornalistas.

Foi lá que, no dia 3 de março, Jair Bolsonaro saiu de seu veículo oficial acompanhado por um humorista disfarçado de presidente, a quem pediu para distribuir bananas aos jornalistas presentes. Essa cena surreal foi transmitida ao vivo nas redes sociais da presidência.

No dia 26 de março, enquanto a crise crescia no país, o presidente humilhou os jornalistas ali presentes, dirigindo-se a seus apoiadores enquanto ria: “Cuidado, povo brasileiro: essas pessoas (ele aponta para os repórteres) dizem que estou errado e que todos devem ficar em casa.” Então, dirigindo-se aos jornalistas, disse: “O que vocês estão fazendo aqui então? Não têm medo do coronavírus? Voltem para casa!”.

No dia 26 de maio, após mais um episódio de violência e agressões verbais de apoiadores de Jair Bolsonaro contra jornalistas, o grupo Globo (que inclui a TV Globo, os jornais O Globo e Valor Econômico e o site de informações G1), o grupo Bandeirantes, o diário Folha de São Paulo – principal jornal do país – e o site de notícias Metrópoles decidiram suspender temporariamente a cobertura do Palácio da Alvorada. Eles se juntaram aos jornais O Estado de S. Paulo e Correio Braziliense, que já haviam tomado a mesma
decisão anteriormente, pelo fato de a segurança de seus repórteres não ser garantida ali.

Essa violência justificou uma ação legal da RSF e seus aliados no Brasil para pedir o reforço das medidas de proteção para os repórteres que cobrem as intervenções presidenciais. Embora a presidência tenha, desde então, instaurado protocolos especiais para evitar que jornalistas sejam confrontados com os apoiadores do presidente no Alvorada, a sede do Executivo continua sendo, para Jair Bolsonaro, um espaço privilegiado para insultar e tentar ridicularizar a imprensa crítica.

3 – Publicar informações sobre a crise do coronavírus, uma corrida de obstáculos

No dia 5 de junho, o presidente ficou visivelmente irritado com os números alarmantes da progressão do vírus no país. Em particular, com o número de mortes, que ele desejava ver cair para menos de mil por dia.

Ele próprio então ordenou que os boletins diários do Ministério da Saúde fossem transmitidos para a mídia às 22h, em vez das 19h, para evitar que a informação fosse divulgada nos noticiários de TV noturnos de maior audiência. “Acabaram as notícias para o Jornal Nacional”, disse ele, referindo-se diretamente à rede Globo, um dos alvos favoritos da família Bolsonaro, que ele chamou de “TV funerária”.

No dia seguinte, o então ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, acusou uma possível superestimação do número de mortes ligadas ao coronavírus no país e deu início a várias mudanças importantes nos métodos de contagem de casos e divulgação dos dados oficiais sobre a pandemia.

Em resposta a essas decisões, em 8 de junho, uma aliança sem precedentes, reunindo os principais veículos de comunicação do país foi criada. UOL, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo, G1 e Extra decidiram trabalhar em estreita colaboração para obter informações diretamente das autoridades locais dos 26 estados do país e do distrito federal e divulgar seus próprios boletins. Essa aliança ainda está ativa e constitui a fonte mais confiável de informação para os brasileiros sobre a evolução da Covid-19.

4 – Processos abusivos contra a imprensa

Amplamente incentivados pela retórica antimídia do “sistema Bolsonaro”, os processos judiciais abusivos contra jornalistas e meios de comunicação brasileiros se multiplicaram ao longo de 2020. A maioria foi iniciada por representantes do Estado ou pessoas próximas à presidência.

Um dos casos mais significativos ocorreu em 28 de agosto de 2020, quando um juiz do estado do Rio impôs ao editor e fundador do Jornal GGN, Luís Nassif, e à jornalista Patrícia Faermann a retirada de (nada menos do que) 11 artigos do ar, sob pena de multa de dez mil reais. Os artigos abordavam a aquisição irregular pelo banco BTG Pactual – do qual o ministro da Economia, Paulo Guedes, é um dos fundadores – de participações no Banco do Brasil, um banco público.

Alegando que a reportagem continha informações sigilosas, a justiça decidiu a favor da denúncia do BTG Pactual: os 11 artigos ainda estão censurados, apesar do recurso interposto por Luís Nassif. Em uma nota publicada em 24 de dezembro, véspera de
Natal, o jornalista expôs a longa lista de ações judiciais que enfrentou durante os vários anos de profissão e lamentou ser “juridicamente marcado para morrer”.

Assim como Nassif, em 2020, outros jornalistas – como Hélio Schwartsman, Ruy Castro, Ricardo Noblat, o cartunista Aroeira – e ainda veículos da imprensa – como Ponte Jornalismo, The Intercept Brasil, a TV Globo, o jornal Folha de São Paulo e o portal UOL -, foram ameaçados com ou foram de fato alvo de ações judiciais por terem publicado informações irônicas e/ou críticas sobre a atuação do governo ou de políticos
eleitos.

5 – Órgãos independentes e oficiais cada vez mais politizados

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou a falta de transparência e de critérios técnicos na distribuição das verbas publicitárias do governo por parte da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), órgão responsável pela publicidade oficial. A auditoria ressaltou o favoritismo dado a canais de televisão próximos à linha oficial da presidência, principalmente os canais dos grupos SBT e Record.

Em junho de 2020, a Secom foi integrada ao novo Ministério das Comunicações, tocado por Fábio Faria, genro de Silvio Santos, dono do grupo SBT e amigo íntimo do presidente Bolsonaro. A mesma Secom está na origem de inúmeros ataques contra meios de comunicação, ao usar em suas contas oficiais a expressão “imprensa podre” e acusar, de forma infundada, veículos críticos ao Poder Executivo de propagar desinformação.

Em setembro de 2020, foi responsável por espalhar informações falsas sobre os incêndios que assolaram a Amazônia ao longo do ano, que foram amplamente divulgadas por diversos ministérios e nas redes sociais.

Até o momento, nada indica que o “sistema Bolsonaro” vá interromper sua lógica de ataques e sua operação orquestrada para desacreditar a mídia. O desafio para a imprensa brasileira é imenso. O caminho para enfrentá-lo aponta na direção da coragem e da resiliência, para seguir levando informações confiáveis ao público e, assim, recuperar a confiança no jornalismo de qualidade.

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