Região Sul: Aborto legal mais perto da Argentina do que do SUS

Para enfrentar barreiras no acesso ao direito, surgiram os fóruns de Aborto Legal, reunindo profissionais da saúde, do direito e da assistência social

Por Redação

25|09|2025

Alterado em 25|09|2025

Leila*, 31 anos, entrou em desespero quando descobriu que estava grávida após ser vítima de stealthing (remoção proposital do preservativo sem consentimento). Determinada a interromper a gestação, ela passou a ser chantageada pelo ex-companheiro, que ameaçava denunciá-la à polícia caso buscasse um aborto.

Moradora de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, procurou ajuda na Delegacia da Mulher e em unidades básicas de saúde. Mas, em vez de acolhimento, encontrou desamparo. “Me sentia a pessoa mais irresponsável do mundo”, lembra. Sem apoio, Leila passou a duvidar de si mesma.

>> Esta reportagem faz parte do projeto Aborto e Democracia, da Artigo 19 e AzMina, que investiga as barreiras de acesso aos direitos reprodutivos em cada região do país. A série de cinco reportagens se soma ao Mapa do Aborto Legal, que será lançado no próximo dia 29 pela Artigo 19, como ferramenta para garantir o aborto legal no Brasil. As matérias foram produzidas em parceria com os veículos feministas: Paraíba Feminina, Portal Catarinas e Nós, Mulheres da Periferia.

Cogitou cruzar a fronteira em busca de atendimento na Argentina. Ela só encontrou apoio de fato após entrar em contato com uma clínica do país vizinho, que lhe sugeriu procurar o Projeto Vivas, no Brasil. A organização a acolheu, orientou sobre seus direitos, encaminhou-a para a realização do procedimento e até lhe ofereceu ajuda financeira para viajar até a capital gaúcha, onde finalmente pôde realizá-lo.

A legislação brasileira permite o aborto em três casos: risco à vida da gestante, estupro e anencefalia — mas o acesso real ao procedimento é atravessado por estigmas e desinformação. No caso do stealthing, termo que significa “furtivo” em português, embora a prática ainda não esteja tipificada como crime no Brasil, ela já vem sendo reconhecida como uma forma de violência sexual.

Em março deste ano (2025), uma decisão liminar do Tribunal de Justiça de São Paulo abriu jurisprudência ao determinar que o Centro de Referência da Saúde da Mulher do estado realize abortos legais em vítimas desse tipo de violação (stealthing). A medida foi tomada após denúncias de que a Secretaria Estadual de Saúde, responsável pela unidade, vinha se recusando a realizar o procedimento em mulheres que relataram o ocorrido.

Casos de violência sexual carregam estigma ainda maior

O estigma é um agravante que atravessa todo o sistema, mas se intensifica quando o aborto legal envolve vítimas de violência sexual. Casos como o de Leila revelam que o reconhecimento formal de determinadas violências nem sempre se traduz em acesso efetivo ao direito.

Questionada sobre o stealthing, a Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul informou à reportagem que reconhece a prática como uma forma de violência sexual e, portanto, passível de interrupção legal da gestação. E destacou que, até junho de 2025, não havia registrado recusas de atendimento por esse motivo.

Leila conseguiu realizar o procedimento, mas precisou do apoio do Vivas para chegar ao serviço no Hospital Fêmina, em Porto Alegre. Ela foi atendida pelo Vivas em 2 de junho e realizou a interrupção da gestação no dia 27 do mesmo mês. “O processo durou quase um mês. Isso, para uma jovem com transtorno de ansiedade, foi uma verdadeira tortura”, conta Ivoneide Souza, articuladora do projeto.

Outro caso aconteceu em maio, em Canoas (RS), envolvendo uma jovem vítima de violência sexual, em situação de vulnerabilidade psíquica. Sua capacidade de consentimento foi colocada em dúvida pela equipe médica. O episódio chegou até Renata Jardim, advogada e representante institucional do Fórum Aborto Legal RS, após uma coordenadora do Centro de Referência da Mulher perceber as dificuldades de acesso enfrentadas pela jovem e buscar orientação para garantir o atendimento.

Depois de procurar atendimento em três ocasiões, sendo submetida a diferentes plantões e avaliações médicas, ela desistiu do procedimento. A jovem estava no início de uma gestação gemelar, com cerca de oito semanas. A morosidade no atendimento e a abordagem adotada pela equipe médica podem ter contribuído para sua desistência.

A reportagem entrou em contato com a Secretaria Estadual de Saúde do RS e com o Hospital Universitário de Canoas para saber se as instituições estavam cientes do caso e quais protocolos foram adotados no atendimento. Até o fechamento desta reportagem, no entanto, não houve retorno.

Informação para ampliar acesso

A história de Leila mostra a importância de articulações em rede para que o acesso ao aborto legal seja, de fato, garantido no Brasil. Foi com esse propósito que surgiram, em diferentes estados do país, os fóruns de Aborto Legal, reunindo profissionais da saúde, do direito, da assistência social, do Ministério Público, defensoras de direitos humanos e organizações da sociedade civil.

O Rio Grande do Sul foi pioneiro na criação do espaço, em 2015, atuando para ampliar serviços, formar profissionais e enfrentar a desinformação. A experiência inspirou a criação de fóruns semelhantes em Santa Catarina e no Paraná.

Organizações da sociedade civil e veículos de comunicação também têm atuado para reunir e disponibilizar informações sobre o tema, buscando preencher as lacunas deixadas pelo Poder Público. Um exemplo é a iniciativa Mapa do Aborto Legal, da ARTIGO 19, que ganha uma versão atualizada no dia 29 deste mês.

De acordo com esse levantamento, o Rio Grande do Sul conta com 26 serviços cadastrados para a realização do procedimento. Destes, 7 têm todos os níveis de confirmação (federal, estadual e por ligação direta ao serviço) e 19 possuem apenas confirmação na esfera federal.

©Identidade visual: Kath Xapi Puri | Az Mina. Arte: Thais D’Oliveira.

Em Santa Maria, ainda não há serviço habilitado, mas, desde 2024, existem tratativas para sua implementação. O Fórum Aborto Legal RS acompanha essa articulação, contribuindo para a efetivação do serviço.

Acolhimento deveria começar na atenção básica

A advogada feminista Íris Gonçalves, do Fórum de Santa Catarina, alerta que a falta de capacitação desde a atenção básica leva a encaminhamentos errados, e vítimas de violência sexual são direcionadas ao pré-natal em vez de serviços especializados. Renata Jardim complementa destacando a gravidade do desconhecimento sobre o direito ao aborto por parte dos profissionais da rede de atendimento. “A falta de acesso à informação e aos serviços têm um impacto enorme sobre crianças que viram mães”, exemplifica.

Íris aponta ainda as resistências internas que dificultam o acesso ao aborto legal. Ela cita o caso de uma mulher de 31 anos, vítima de estupro, que desconhecia seu direito e recebeu informações erradas no hospital, como a exigência de boletim de ocorrência ou alegação de que já havia passado “tempo demais” desde a violência — argumentos sem respaldo técnico e legal. Foi preciso mobilizar a própria equipe do serviço para garantir o atendimento.

A recusa por parte dos serviços, explica a advogada, geralmente, ocorre quando há inconsistência entre a idade gestacional e o relato da paciente. “Fora isso, o que pode acontecer é a recusa por falta de médicos capacitados para realizar a assistolia fetal, nos casos de gestações mais avançadas”, acrescenta Íris. Para ela, é urgente estruturar a atenção básica para orientar e encaminhar corretamente quem tem direito ao aborto.

Onde o serviço poderia existir, mas não existe

Na região Sul, o estado gaúcho concentra a maior rede de serviços habilitados pelo Ministério da Saúde. Em Santa Catarina, o Mapa do Aborto Legal — atualizado em setembro deste ano (2025) pela ONG ARTIGO 19 – identificou 18 serviços cadastrados no Sistema Nacional de Informações Hospitalares (SIH/DATASUS) ou no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), sendo 4 com todos os níveis de confirmação (federal, estadual e ligação para o serviço), localizados em Joinville, Blumenau, São José e Florianópolis.

No Paraná, foram identificados 14 serviços, dos quais 3 contam com dois níveis de confirmação (federal e ligação para o serviço). O Estado não respondeu ao levantamento da ARTIGO 19. No entanto, em resposta à reportagem, a Secretaria Estadual de Saúde informou que há unidades em Curitiba, Cascavel, Londrina e Maringá.

>> O Mapa do Aborto Legal será lançado no próximo dia 29/11, com todos os serviços de saúde do país, nas cinco regiões atualizados. Acesse: mapaabortolegal.org

Marina Jacobs, doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), avalia que a oferta do serviço poderia ser significativamente maior. Segundo ela, quase todos os municípios do país teriam condições técnicas de disponibilizar o atendimento se fossem considerados apenas os critérios previstos na legislação brasileira e nas diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS).

No entanto, normativas obsoletas em saúde, como exigir anestesista até para abortos medicamentosos, limitam a expansão. “Não há distinção de tempo gestacional para definir a estrutura mínima de um serviço, o que impede que mais unidades sejam habilitadas”, indica Marina.

Enquanto isso, a OMS já recomenda que o aborto seguro possa ser oferecido também na Atenção Primária à Saúde (APS), ou seja, nos serviços de saúde mais próximos da comunidade. Isso é possível desde que haja suporte da rede de urgência e profissionais treinados. Mas a falta de uma política pública nacional estruturada faz com que a oferta siga concentrada em poucos centros.

Sem limite legal, mas com barreiras na prática

Embora a legislação brasileira não estabeleça um limite de tempo gestacional, na prática, a interrupção de gestações mais avançadas enfrenta restrições adicionais. Essa contradição se agrava quando se considera que elas são, em grande parte, decorrentes de estupro, especialmente em meninas e adolescentes que, muitas vezes, demoram a perceber a gravidez.

No Rio Grande do Sul, o Fórum Aborto Legal RS tem atuado para assegurar que o procedimento seja realizado independentemente da idade gestacional. Há um diálogo contínuo com as equipes hospitalares e com a gestão estadual, que atualmente reconhece formalmente a inexistência de um limite de semanas para o acesso ao aborto legal.

Apesar disso, o principal entrave está na própria classe médica. Segundo a advogada Renata, houve uma articulação para que o hospital responsável por realizar o procedimento em casos com mais de 22 semanas oferecesse capacitação para equipes de outras unidades. A ideia era formar profissionais em técnicas como a assistolia, utilizadas em gestações mais avançadas. No entanto, a iniciativa não avançou por falta de profissionais interessados.

Por mais que um gestor queira, ele esbarra na falta de profissionais dispostos a realizar o procedimento, seja por conta de suas convicções ou por medo.

Normativas desatualizadas aumentam insegurança

Esse tipo de impasse evidencia não apenas as limitações estruturais do sistema, mas também os desafios enfrentados internamente pelas equipes de saúde. Taysa Schiocchet, integrante do Fórum do Paraná e professora de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), observa que o espaço tem sido importante para compreender essas fragilidades — tanto do sistema quanto dos próprios profissionais, em sua maioria mulheres, que muitas vezes enfrentam resistência de chefias e colegas no exercício desse atendimento.

“As secretarias de saúde poderiam avançar mais, mas também estão amarradas por uma série de normativas que não ajudam muito. Além disso, temos um Ministério da Saúde que não se manifesta, e a estrutura do executivo nos estados também acaba ficando engessada”, analisa Taysa.

Entre os fatores que contribuem para essa resistência está o receio de responsabilização jurídica. Um exemplo disso é a resolução nº 2.378/24 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que proibiu a assistolia em casos de aborto legal. Ela foi suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), mas ainda não há julgamento definitivo.

Objeção de consciência não é debatida com transparência

A resistência institucional também se manifesta em práticas silenciosas. Taysa Schiocchet aponta que, nos hospitais, a objeção de consciência raramente é tratada de forma transparente — mesmo em serviços de referência.

Objeção de consciência é um direito individual que permite a profissionais de saúde se recusarem a realizar determinados procedimentos que contrariem suas convicções éticas, morais ou religiosas. Ele não pode ser usado quando coloca em risco a vida, a saúde ou o direito das pessoas. Além disso, instituições de saúde públicas ou que prestam serviço ao SUS não podem se declarar objetoras. Portanto, a recusa ao atendimento nos casos de aborto legal é uma forma de violência institucional.

Na prática, Taysa relata que é comum a presença de influências indevidas e tentativas de dissuadir as mulheres — muitas vezes por meio de comentários sutis, como sugestões para entregar a criança para adoção.

É a mesma lógica do vídeo daquela juíza de Santa Catarina: ‘Será que você não consegue aguentar mais um pouco?’. Quem viu aquele vídeo sabe que, no âmbito da saúde, isso não é exceção.

Fluxo regionalizado e dúvidas sobre atendimento

Em Santa Catarina, a advogada feminista Íris Gonçalves conta que hospitais que poderiam realizar o procedimento se limitam aos casos de anencefalia ou risco de vida da gestante. Casos de violência sexual acabam sendo transferidos para hospitais de referência, mesmo que outras unidades tenham estrutura para o atendimento.

A suspeita é que isso se deva à ausência de equipes preparadas para conduzir as entrevistas exigidas às vítimas — um processo burocrático que, segundo Íris, mais se assemelha a um interrogatório.

A advogada explica que, por um tempo, o Hospital Universitário (HU) Polydoro Ernani de São Thiago, em Florianópolis, recebia casos de todo o estado. Depois, foi feito um acordo com a Secretaria Estadual de Saúde para regionalizar o atendimento. A ideia era encaminhar os casos para os serviços mais próximos da paciente, já que, por exemplo, não fazia sentido o HU atender casos vindos de Blumenau, onde há hospital habilitado.

©Identidade visual: Kath Xapi Puri | Az Mina. Arte: Thais D’Oliveira.

Apesar da organização do fluxo, ainda há pontos que geram dúvidas. Íris cita dados do DataSUS que registram, em 2024, 141 abortos legais realizados em 17 unidades de saúde de Santa Catarina. Esse total não coincide com a quantidade de hospitais listados, quatro, pela Secretaria Estadual de Saúde para o procedimento, e se aproxima mais dos dados do Mapa do Aborto Legal, que identificou 18 serviços cadastrados.

“Isso mostra que outros hospitais também estão realizando os abortos legais, mas não sabemos em que contextos, porque os dados não especificam a causa dos atendimentos”, expõe a advogada.

Dados não refletem a realidade por completo

No Sistema Único de Saúde (SUS), os serviços são remunerados a partir de uma tabela de procedimentos hospitalares. No entanto, não há um código específico para a interrupção legal da gestação. Por isso, segundo Marina Jacobs, doutora em saúde, os dados disponíveis sobre aborto legal no Brasil podem não refletir a realidade. Em 2014, o Ministério da Saúde chegou a instituir o procedimento “Interrupção da gestação/antecipação terapêutica do parto prevista em lei” por meio da Portaria 415, mas ela foi revogada poucos dias depois.

Com isso, os registros relacionados ao aborto legal são feitos por meio de outros procedimentos: curetagem ou AMIU pós-abortamento (aspiração manual intrauterina) — os mesmos utilizados em casos de abortos espontâneos ou provocados fora do sistema de saúde.

©Identidade visual: Kath Xapi Puri | Az Mina. Arte: Thais D’Oliveira.

Para tentar identificar os casos previstos em lei, utiliza-se o CID O04 (aborto por razões médicas e legais), mas esse código nem sempre é aplicado corretamente. Não há uma norma técnica ou padronização nacional que oriente sobre o registro obrigatório do CID nesses casos, o que leva ao sub-registro e dificulta a identificação precisa do aborto legal nos sistemas de informação do SUS.

Até mesmo os hospitais enfrentam dificuldades para manter seus registros atualizados. “Estive com serviços que atuavam na rede assistencial como referências, mas não estavam registrados no CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde) como Serviço Especializado para Atenção a interrupção de gravidez nos casos previstos em lei”. Isso, destaca Marina, pode ter impacto sobre o acesso à informação tanto de profissionais quanto de quem busca atendimento.

Essas falhas podem ter origem técnica, decorrer da falta de informação ou mesmo de motivações ideológicas. Marina Jacobs observa que ainda há estigma sobre profissionais e estabelecimentos.

Um serviço de saúde que precisa ser reconhecido como tal

Embora seja um direito garantido pela legislação brasileira há décadas, o acesso ao aborto legal ainda depende, em grande medida, da iniciativa individual de profissionais comprometidos com a oferta desse atendimento.

A fragilidade do sistema fica evidente quando se constata que muitos serviços funcionam baseados na figura de determinados profissionais. Sem a presença de médicos ou enfermeiros específicos, o atendimento simplesmente não acontece — uma dependência que expõe a vulnerabilidade de um direito fundamental.

Para Íris Gonçalves, é preciso mudar a forma como o procedimento é compreendido socialmente. A advogada defende que o aborto legal precisa ser encarado com a mesma legitimidade que qualquer outro cuidado médico.

O aborto legal é um serviço de saúde, igual fazer um tratamento de câncer, uma cirurgia de catarata, tomar vacina. É assim que ele deve ser visto: como um serviço de saúde. Não é crime, nem pecado.

Mas sem políticas públicas claras, o acesso ao aborto legal ainda depende da sorte e da luta individual.

* Por Kelly Ribeiro