Quem são as crianças que têm direito à infância no Brasil?

Dados recentes mostram que vivenciar a infância de forma plena ainda é um privilégio. Raça, território e renda seguem determinando quem são as crianças que vivem – e as que apenas sobrevivem

10|10|2025

- Alterado em 10|10|2025

Por Amanda Stabile

Talvez você já tenha ouvido por aí que a infância foi uma invenção social. Isso significa que nem sempre a sociedade entendeu a importância de proteger, educar e cuidar das crianças como pessoas em desenvolvimento. Em vez disso, elas eram tratadas como adultos em miniatura.

Imagine que mundo cruel era aquele em que ser criança não era um direito, em que crescer significava trabalhar cedo, se calar diante dos adultos e lutar para sobreviver. Além disso, discriminações de gênero, raça e classe social impunham ainda mais barreiras e deixavam essa fase da vida mais desafiadora.

Aqui mesmo no Brasil, houve um tempo em que cerca de 5 mil crianças e adolescentes eram assassinados por ano — e mais de 83% deles eram negros (pretos e pardos). Nessa época, pelo menos 1,6 milhão de meninos e meninas trabalhavam. Dois terços também eram pretos e pardos, e boa parte vivia no Nordeste, em famílias que sobreviviam com menos de um salário mínimo.

As meninas ficavam encarregadas de cuidar dos irmãos e limpar a casa, enquanto os meninos carregavam tijolos, vendiam balas, colhiam frutas. Alguns tinham cinco ou dez anos e – em vez de exercitarem a imaginação e aprenderem a ler e escrever – já conheciam o cansaço, a dor e o medo.

Dentro desses mesmos lares, meninas entre 10 e 14 anos eram as principais vítimas de violência sexual no país. Cerca de 60% delas eram negras e em mais de 70% das ocorrências, o agressor era alguém conhecido da vítima — pais, padrastos, tios, vizinhos ou conhecidos da família.

As crianças que conseguiam acessar creches e pré-escolas não escapavam da discriminação racial. O “Panorama da Primeira Infância: O impacto do racismo” denunciou que as escolas da primeira infância eram os lugares onde o racismo mais se manifestava. Mais da metade dos cuidadores de crianças negras disse que já havia presenciado alguma forma de preconceito — olhares atravessados, apelidos que feriam, exclusões disfarçadas de brincadeira.

Nesse mesmo período, mais de um milhão de crianças pequenas moravam em favelas e comunidades urbanas. Viviam seus primeiros anos de vida entre becos, vielas e quintais onde a vida pulsava — mas também onde a infância começava em meio à falta de direitos. Nesses territórios, sete em cada dez casas tinham esgoto, nas demais, os dejetos corriam a céu aberto ou em fossas improvisadas.

Um terço das ruas não tinha calçamento. Parquinhos eram raros e, desde cedo, os pequenos aprendiam a transformar lajes em quintais, escadarias em parques e becos em caminhos de descoberta. Mas, na maioria das vezes, brincar fora de casa não era seguro: tiros faziam parte da rotina e até as paredes eram marcadas pela violência.

Em um único ano, por exemplo, mais de 25 crianças foram atingidas por bala perdida no Rio de Janeiro (RJ) e dez morreram. As que sobreviviam a esse cenário de guerra ainda assim perdiam um tempo da infância. Ficavam, em média, 35 dias letivos por ano sem aula, o que significava dois anos e meio de aprendizado roubados ao longo do caminho. Cresciam aprendendo a reconhecer o barulho dos tiros antes mesmo de aprender a ler.

Tudo isso pode parecer parte de um passado remoto, de um tempo anterior à invenção da infância. Mas não é. Todos esses dados — as mortes, o trabalho precoce, a violência sexual, o racismo nas escolas, as infâncias interrompidas pelas balas — foram registrados nos últimos cinco anos.

No Brasil de hoje ainda é preciso lutar para que ser criança e viver a infância de forma plena seja um direito não só no papel.

Talvez a pergunta mais importante neste momento seja: por que algumas infâncias são protegidas enquanto outras são silenciadas? Quem decide quais corpos merecem brincar, aprender e sonhar?

Se os dados apresentados neste texto soam como algo distante, de uma época em que a infância parecia esquecida pelas políticas públicas, é porque o país ainda repete as mesmas injustiças e as trata com normalidade. É só olhar ao redor: o que chamamos de “passado” ainda acontece todos os dias, nas esquinas, nas escolas e nas casas onde as crianças seguem lutando para existir.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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