Ilustração mostra Gih. Ao fundo, páginas de livros e representações das grades do cárcere

Quem saberia perder: a escrita de Gih Trajano após o cárcere

Em seus dois primeiros livros, a escritora mistura suas vivências à ficção. Ela se descobriu poeta após sua passagem pelo sistema carcerário e o contato com o Sarau Asas Abertas

Por Amanda Stabile

23|01|2024

Alterado em 23|01|2024

“A Gisélia é uma pessoa que não gosta de ser nomeada. Eu costumo dizer que só quem não me conhece e o sistema judiciário me chamam de Gisélia. Quem me conhece me chama de Gih, quem é muito muito íntima, Neném”. Essas são palavras da escritora Gih Trajano.

Terceira filha em uma família de sete, Gih nasceu em Suzano (SP), com pai de Alagoas e mãe da Bahia. “Eu conheço um pouco da origem da minha mãe e não conheço nada da origem do meu pai. Ele não veio com uma bagagem familiar. Segundo contava, perdeu os pais no mundo e foi se criando na casa de um e de outro porque nunca foi adotado”.

Em meados dos anos 1970, a família se mudou para Brás Cubas, um distrito de Mogi das Cruzes (SP). Gih ainda não havia nascido, apenas suas duas irmãs mais velhas. “Eles ficaram em uma casa que estava em construção. Todo alimento que tinham era farinha com açúcar e chá de capim cidreira. Minha mãe contava que um dia meu pai saiu para procurar trabalho e não voltou para casa”.

Após a comida acabar, a mãe saiu com as crianças batendo de porta em porta na vizinhança para pedir um pouco de alimento. Cerca de um mês depois, o pai retornou, empregado. E, ao saber do acontecido, chorou e prometeu que enquanto vivesse elas nunca mais teriam que passar por situação parecida.

Após mudarem-se para Suzano (SP), o pai, pintor de paredes, expandiu seus serviços para construção para lucrar mais. Então, assim que as meninas aprenderam a escrever, começaram a anotar os orçamentos para o pai.

Esse foi um dos primeiros contatos de Gih com a escrita. Já seu gosto por literatura surgiu frequentando uma biblioteca próxima a sua casa. “Foi ali que eu cometi o meu primeiro furto. Eu literalmente era a menina que roubava livros”, ri. Isso porque ela não tinha acesso ao cartão da biblioteca para pegar livros emprestados, já que não conseguiu que sua mãe fosse até lá realizar o seu cadastro.

“Depois fui ler Paulo Coelho e me apaixonei por ‘As Valkírias’. Fui lendo”, recorda. “Passou um tempo e veio a morte do meu pai, junto com uma série de dificuldades na vida. Foi aí que tudo deu errado e eu tive o meu primeiro contato com a criminalidade”.

Cárcere e literatura

Foto mostra Gih sentada segurando microfone. Ao fundo vários quadros coloridos

“Quem tira o preso da cadeia ou é a família ou é advogado, quando falta isso quem tira é o conhecimento jurídico”, aponta a escritora.

©Rodrigo Reis

Já dentro do sistema carcerário, um guarda aconselhou Gih a procurar a biblioteca da unidade, onde poderia acessar o Código Penal e solicitar análise do seu processo. “E assim a literatura penal entrou na minha vida e me libertou de fato. Eu escrevi um Habeas Corpus de 30 páginas apontando as falhas no meu processo”.

Quem tira o preso da cadeia ou é a família ou é advogado, quando falta isso quem tira é o conhecimento jurídico. Como eu não tinha as outras coisas, foi dureza.

A resposta positiva veio após dois anos, e Gih foi libertada. Porém, em 2014, seu processo sofreu um revés e ela voltou ao cárcere. “Uma juíza pegou o meu processo do ano de 2003, analisou e disse: condenada, manda prender, acabou o recurso”, recorda. Gih foi informada por telefone pela Defensoria Pública que a pena seria de três anos com o cumprimento mínimo de quatro meses em regime fechado.

“Eu falei: vocês estão de brincadeira, vão acabar com a minha vida. Porque eu já estava totalmente estruturada, era outra situação, já tinha sido reabilitada. Foram quatro meses e 15 dias de puro tormento”.

De volta ao cárcere, Gih começou a trabalhar na biblioteca, onde acontecia atividades como o Sarau Asas Abertas, projeto realizado pelo Coletivo Poetas do Tietê desde 2013, coordenado por Jaime Queiroga. A iniciativa oferece oficinas semanais de leitura e escrita criativa às participantes.

“Um dia me obrigaram a ir porque era uma obrigação. E eu estava muito revoltada por ter que voltar para o sistema. Então, cheguei e ouvi o Jaime conversando com as meninas, dizendo que éramos vítimas. Putaça, eu olhei para ele e falei: ‘você tá de brincadeira com a minha cara, né? Eu não sei elas, mas eu tô aqui pelo meu B.O. Tô sozinha, amigo. Não tô com a sociedade não’”, conta.

“Eu achei que intimidaria ele. Mas ele me olhou e disse: ‘você tem razão. Dá uma olhada aí para trás’. Eu olhei e tinha cerca de 100 meninas. Então ele continuou: ‘todas elas pararam pra te escutar.

Se eu fosse você, parava de ser bandida e começava a ser escritora, porque as pessoas te ouvem.

Depois dessa conversa, Gih se animou. Conta que no Sarau seguinte até se arrumou: colocou vestido social e até uma echarpe. “A poesia em forma de pessoa”, assim foi apresentada por Jaime às outras meninas. “Ele começou a recitar Jesus Chorou [dos Racionais Mc’s]. Me pegou pela mão e soltou. Foi o primeiro freestyle que eu fiz na vida. E, de lá para cá, eu nunca mais parei”.

Gih Trajano, escritora

Foto mostra os livros

O título das obras é inspirado na canção “Quem saberia perder”, cantada por Sá e Guarabyra.

©Reprodução/Instagram

Hoje, já longe do cárcere, Gih é autora de dois livros: “Quem saberia perder” (Selin Trovoar) volume I e volume II. Lançados em 2021 e 2023 respectivamente, as obras falam sobre suas vivências e memórias, dentro e fora do sistema carcerário, misturadas à ficção.

Seus escritos são ligeiros e focados, não tem meio termo; porrada na realidade

definiu o músico e poeta Marcelo Lemos na orelha do primeiro volume.

A escrita começou durante a pandemia, como uma lição de casa passada por sua terapeuta. “Eu estava em um período de muita crise. Porque eu vivia um relacionamento abusivo e não sabia. Todo papo que eu batia com ela, eu falava que queria lembrar qual foi a última vez que eu me senti segura”.

A psicóloga então sugeriu que Gih refletisse sobre isso para conversarem na sessão seguinte. “E veio uma recordação que eu tive com meu pai. Ele era muito machão e criticava novelas, mas quando estava doente não perdia um capítulo da novela Pantanal. Nela, tinha uma música que a gente ouvia muito: ‘Quem saberia perder’, cantada por Sá e Guarabyra. Ela me trazia muita reflexão e meu pai falava: ‘o que esses homens cantam é coisa impressionante’”.

Quando essa memória veio à mente, a escritora fez um trajeto de 40 minutos de ônibus ouvindo a música, refletindo e chorando com cada trechinho. Então ela percebeu, que essa era a memória do último dia que se sentiu protegida: assistindo à novela com o pai e comentando sobre a música.

“Eu já fazia seis meses de sessões e nunca tinha chorado na terapia”, lembra. “Então a psicóloga falou: ‘Gih, aproveita o isolamento [por causa da pandemia]. O que vai sair disso eu não sei, mas escreve’”. Revirar as memórias não foi um processo fácil. Nesse período, Gih até abandonou as consultas. “É um livro curtinho, mas o processo mexeu muito comigo”, explica.

Da música de Sá & Guarabyra veio o título de suas obras, que logo serão uma trilogia. Os primeiros dois volumes podem ser adquiridos pelo site da editora Selin Trovoar ou diretamente com a escritora por meio das redes sociais (@gih.trajano).


Este texto faz parte da série “Cárcere e Literatura”, que narra as histórias de mulheres autoras que encontraram na prisão uma expressão poética e cultural. A série destaca a resiliência dessas mulheres e o poder transformador da literatura.