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Quem investiga as mortes praticadas por policiais nas periferias?
Movimentos como Mães de Maio e Mães da Leste estão fazendo um trabalho de protagonismo em busca de justiça por seus filhos, que foram mortos por policiais nas periferias.
Por Bianca Pedrina
20|02|2022
Alterado em 23|02|2022
Fevereiro de 2015. Três policiais fazem patrulha em Honório Gurgel, comunidade da região norte da cidade do Rio de Janeiro. O circuito interno de filmagem da viatura registra a atuação. O policial, que está no banco do passageiro, saca seu armamento e atira em direção a um grupo reunido. Essas pessoas são meninos que estavam sem luz em casa e brincavam com o celular em frente ao local onde moraram.
A imagem da viatura registra o momento em que os policiais socorrem dois jovens negros, um já desfalecido e outro com um tiro no peito. Chauan Jambre Cezario, de 19 anos, é a vítima baleada no peito, Alan de Sousa Lima, de 15 anos, não sobreviveu.
No registro de ocorrência, a alegação do sargento Ricardo Vagner Gomes foi de que reagiu a dois homens armados que haviam atirado na viatura. A versão não foi adiante, porque os jovens que foram baleados estavam com um celular e gravavam brincadeiras entre os dois, que correram quando ouviram os tiros disparados a esmo.
Chauan foi preso na época por porte de arma e resistência, mas liberado após depoimento e o registro de gravação do celular que comprovou sua inocência. A Polícia Militar exonerou o então comandante do 9º BPM, Luiz Garcia Baptista, além disso, afastou nove policiais envolvidos na operação, que responderam ao inquérito.
O sargento Gomes, responsável por atirar nos dois jovens, foi denunciado por por homicídio doloso, tentativa de homicídio e fraude no processo. O policial que dirigia o carro, Alan Monteiro, também foi denunciado por fraude, e o cabo Carlos Eduardo Alves, que estava no banco de trás do carro, foi ouvido como testemunha.
Esse é um dos casos retratados no documentário Auto de Resistência, lançado em 2018, com roteiro e argumento de Natasha Neri e Juliana Farias, disponível para assinantes da Prime Vídeo, que mostra a realidade de julgamentos e o cotidianos de mães para a investigação e justiça para a morte de seus filhos, em decorrência de ações policiais configuradas como “autos de resistência”.
O termo “auto de resistência” é uma prática que está prevista no artigo 292 do Código do Processo Penal. Prevê que se houver resistência à prisão por parte do civil o policial pode usar de “meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência”.
Esse mecanismo deve ser usado em casos extremos, tendo em vista que também no Código de Processo Penal, no artigo 284, não é permitido que o policial use da força em abordagens policiais.
No entanto, a Polícia Militar, em muitas abordagens em que não se configura resistência, usou do artifício para justificar violências e até mesmo a morte de pessoas que deveriam, pela Lei, ter o direito de defesa.
Em 2020, 78% das pessoas mortas pela polícia eram negras.
©Felipe Iruatã _ Mídia NINJA
De acordo com o estudo “Os autos de resistência no Rio de Janeiro”, feito no período de 2001 a 2011, mais de 10 mil pessoas foram mortas em confronto com a polícia com a alegação de “autos de resistência”. O mesmo estudo compara ainda a morte de policiais em serviço e civis. “Na cidade do Rio de Janeiro, apenas no ano de 2008, foram 17 policiais mortos para 688 vítimas de “autos de resistência”, com o arquivamento de pelo menos 99,2% desses casos.
No Brasil, em 2020, 78% das pessoas mortas pela polícia eram negras, segundo dados do Monitor da Violência. O levantamento foi feito pelo G1, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo).
O aumento de mortes de pessoas negras durante a pandemia, em que teoricamente estavam suspensas as intervenções policiais em favelas e comunidades, sobretudo do Rio de Janeiro, chamou a atenção da ONU (Organização das Nações Unidas). Em carta datada de 13 de dezembro de 2021, a organização criticou o governo de Jair Bolsonaro por “fracassar” diante da violência policial.
No documento é denunciado o “aumento exponencial” de operações durante a pandemia. A organização alertou ainda que o Brasil está violando tratados internacionais e mesmo a Declaração Universal de Direitos Humanos, que tem resultado em “diversas mortes, incluindo o assassinato desproporcional de afro-brasileiros”, aponta o documento.
Indo na contramão do alerta, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) prepara um decreto pela “defesa dos direitos humanos” dos policiais.
Justiça cega
Mães que perderam seus filhos e que se organizaram em movimentos para investigação desses casos e punição de policiais envolvidos, questionam as ações da polícia usando a prerrogativa do auto de resistência.
“Em geral, os autos de resistência são utilizados pela polícia para encobrir as mortes, principalmente nas periferias e de pessoas negras em diferentes regiões do país”, aponta a advogada e mestra em direito e desenvolvimento pela Escola de Direito da FGVSP (Fundação Getúlio Vargas) Viviane Balbuglio, que tem experiência de atuação profissional e pesquisa com temas relacionados à justiça criminal.
“Esse artigo do Processo Penal também não dispõe de regras de investigação em casos de excessos e isso é uma questão que vai afetar principalmente as regiões que têm menos políticas públicas”, completa se referindo às periferias brasileiras, onde a população é majoritariamente negra.
Após registros decorrentes de abusos da polícia, usando como justificativa o auto de resistência, uma resolução conjunta do Conselho Superior de Polícia, órgão da Polícia Federal, e do Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil de janeiro de 2010 aboliu o uso dos termos “auto de resistência” e “resistência seguida de morte” nos boletins de ocorrência e inquéritos policiais em todo o território nacional.
De acordo com a norma, um inquérito policial deverá ser aberto sempre que o uso da força por um agente de Estado resultar em lesão corporal ou morte. O processo deve ser enviado ao Ministério Público independentemente de outros procedimentos correcionais internos das polícias.
O texto determina que, a partir de agora, todas as ocorrências do tipo sejam registradas como “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à ação policial”.
Mesmo com a mudança na terminologia, abordagens violentas seguem como práticas nas periferias. É o que defende a integrante do Movimento Mães de Maio, Débora Maria da Silva, que fundou o coletivo junto a outras mães, após os crimes de maio de 2006, conhecido como o mês mais sangrento da cidade de São Paulo. Foram mortos 59 policiais pelo crime organizado e, como retaliação, homens encapuzados, incluindo policiais, assassinaram 505 pessoas.
Crimes, que de acordo com o Tribunal de Justiça de São Paulo, em primeira e segunda instância são considerados prescritos. Ainda assim, tramitam recursos dessa ação no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), ainda sem conclusão.
“O fim do termo auto de resistência foi fruto de campanha e pressão da sociedade civil, mas ainda prevalece a maquiagem do Estado, que colocou no lugar ‘morte por intervenção policial’. Isso não muda o fato sobre o modo de operar da polícia, para poder legitimar seus crimes. Mesmo termo sendo substituído, a versão que sempre é aceita é do policial, que é testemunha dele próprio”, avaliou.
Além disso, o artifício do uso de câmeras na farda ou em viaturas policiais, realidade que ainda existe em poucos estados, como o de São Paulo, não garante que mesmo assim, policiais não forjem esse mecanismo de monitoramento de conduta.
Em entrevista ao Nós, a pesquisadora da Iniciativa Negra – Rede de Observatórios da Segurança, Luciene Santana, salientou que a utilização de câmeras nas viaturas e nos fardamentos pode ser considerado um passo importante no monitoramento de policiais. No entanto, muitas vezes, os próprios agentes públicos fraudam esses equipamentos e não gravam as ações que são importantes. Além disso, não necessariamente a gravação dessas imagens fará com que essas pessoas sejam punidas.
“Temos vários casos de violência policial e de racismo que foram monitoradas e gravadas e essa filmagem não garantiu que ações como essas não acontecessem mais, tampouco houvesse punição dos policiais envolvidos”, reflete.
Débora cita como exemplo a súmula (interpretação adotada por um Tribunal a respeito de um tema específico) 70, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que prevê “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”, ou seja, vale a versão policial.
“Essa prerrogativa vale-se de que o policial tem fé pública, quando o que vemos em muitos casos é cenas de crimes forjadas a justificativa de trocas de tiros, quando não há, tudo isso para legitimar ações abusivas. Não importa o termo usado, se auto de resistência ou morte por intervenção policial, a gente não pode aceitar o policial ser testemunha dele próprio”, concluiu.
Viviane também corrobora da mesma opinião e aponta a necessidade de meios de investigação independentes. “Por esse motivo é importante quando pensamos nessa prática, não podemos tratar apenas da polícia em si, mas também no Ministério Público, principalmente, porque é a instituição que por lei tem a obrigação de fiscalizar a atividade policial, mas também o judiciário ou seja todo o sistema de segurança pública”, informa.
Não importa o termo usado, se auto de resistência ou morte por intervenção policial, a gente não pode aceitar o policial ser testemunha dele próprio
A criminalista que também compõe a Frente Estadual Pelo Desencarceramento de São Paulo e a Amparar (Associação de amigos e familiares de presos/as), afirma que, quando não há filmagens da cena do crime sem os casos acabam “nenhum tipo de investigação, e muitas famílias ficam sem respostas sobre as mortes de seus entes queridos. Isso significa que a justiça assim como sistema criminal quase sempre acredita na versão da polícia”, argumenta.
Além disso, Viviane aponta que mesmo o termo sendo substituído, essa normativa da polícia, por exemplo, é uma regra abaixo do Código de Processo Penal. “Então não tem a obrigatoriedade de todos seguirem e sempre tem as exceções”, pondera.
Existem alguns projetos de Lei que versam sobre o fim do auto de resistência, um desses projetos é o 239 de 2016, do Senado que se propõe a alterar o Código de Processo Penal em alguns pontos.
Esse projeto, por exemplo, ainda está em tramitação no Senado, depois disso, passará pela Câmara dos Deputados e ao final irá para sanção presidencial. “Avalio que não é uma pauta que tem tanto apelo para ir a votação pensando na configuração dos políticos que ali estão. Pensamos o quanto bancada da bala [políticos ligados à indústria das armas, ex-policiais e militares] é forte no Legislativo, em que a própria polícia entende que esse tipo de proposição é contra o trabalho dos policiais”, aponta.
Rever a política de segurança pública
“Temos que pensar o que faz uma pessoa ser presa do Brasil e não o que faz um policial matar civis”.
©Tânia Rego / Agência Brasil
Para a advogada, outras questões precisam ser revistas, no sentido do que faz uma pessoa ser presa no Brasil e um policial matar civis. “Isso está conectado com essa discussão de segurança pública, que ainda é vista pelo viés da polícia, e deixa de ser olhada a partir de uma perspectiva de saúde, educação e de políticas públicas de prevenção”, salienta.
Viviane reforça que muitas vezes as pessoas que são mortas pela polícia podem ter antecedentes criminais, com o discurso social de que foi uma ação justificada. “Eu considero este argumento uma discriminação. Temos que pensar o que faz uma pessoa ser presa do Brasil e não o que faz um policial matar civis”, reforça.
“Isso está conectado com essa discussão de segurança pública, que ainda é vista pelo viés da polícia, e deixa de ser olhada a partir de uma perspectiva de saúde, educação e de políticas públicas de prevenção”
“Essa ideia de que segurança pública está vinculada a ações violentas também faz com que o discurso seja o do noticiário da tarde, na linha do ‘bandido bom é bandido morto’, que os direitos humanos estão a favor dos bandidos, enfim, que vem atrelada a construção de um discurso da bancada da bala, desses noticiários que repercutem ações policiais, uma espetacularização da vida das pessoas e que vai gerando cada vez mais uma discriminação e preconceito”, argumenta.
Viviane destaca a importância do papel dos movimentos sociais, principalmente dos movimentos como Mães de Maio, Mães da Leste, que vem fazendo um trabalho de protagonismo em busca de justiça e apuração da morte de seus filhos, que foram mortos pela polícia. “Esses movimentos apontam como possíveis saídas perícias autônomas para investigar a morte de seus filhos, companheiros e familiares, pensar a necessidade de órgãos independentes, que tenham a competência de investigar as instituições policiais, como ouvidorias, além da desmilitarização da polícia, que não é dizer o fim da polícia militar apenas, mas esse modo de agir, pensar na autonomização das perícias técnicas científicas, em relação às instituições policiais”, avalia.
A advogada pontua que se essas instituições estão atreladas aos policiais, fazem com que essas investigações “não sigam padrões que deveriam ser seguidos, como por exemplo, verificar marcar de tortura, a distância dos tiros que levou a morte da vítima, que são importantes para o contexto e o que significa justificar a legitima defesa do policial. Uma palavra de um policial frente a juízes é mais válida do que da vítima ou seus familiares”, pontua.