
Presas em celas masculinas: os abusos que o Estado insiste em repetir
Casos de estupro e negligência revelam como o sistema prisional brasileiro falha em proteger os mais vulneráveis
Por Amanda Stabile
13|08|2025
Alterado em 13|08|2025
Em 18 de julho, o veículo jornalístico Sumaúma revelou o caso de uma indígena Kokama de 29 anos, identificada como K, que após ser presa em 2022 foi colocada em uma cela masculina em Santo Antônio do Içá, no Amazonas. Ela acusa agentes do Estado de tê-la estuprado repetidas vezes, durante mais de nove meses, enquanto amamentava seu bebê recém nascido.
Documentos e exames do Instituto Médico Legal (IML) confirmaram lesões compatíveis com violência sexual. K relatou não ter recebido atendimento médico, psicológico ou jurídico adequados, desenvolvendo depressão grave, crises de pânico, dores crônicas e pensamentos suicidas. Só denunciou os abusos após ser transferida, em agosto de 2023, para o Centro de Detenção Feminino em Manaus.
O caso gerou repercussão nacional e expõe uma prática recorrente no sistema prisional brasileiro: a violência praticada por quem deveria proteger, além do encarceramento de pessoas vulnerabilizadas em espaços masculinos, onde ficam sob alto risco de violência sexual e outras formas de abuso. Isso acontece apesar de a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) determinar que as mulheres devem cumprir pena em presídios próprios, separados dos homens.
Crianças e adolescentes em celas com adultos
Foi justamente um caso semelhante ao de K que levou à criação do primeiro Código de Menores, em 1927. Em março de 1926, o engraxate Bernardino, de 12 anos, foi preso no Rio de Janeiro por jogar tinta em um cliente que se recusou a pagar pelo serviço. Passou quatro semanas dividindo uma cela com 20 adultos, que o agrediram, espancaram e estupraram.
O episódio chocou o país e contribuiu para que o então presidente Washington Luís sancionasse a primeira lei nacional de proteção à criança e ao adolescente, que proibiu o encarceramento de pessoas com menos de 18 anos junto a adultos. Esse código foi substituído em 1979 e, mais tarde, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, que segue em vigor e reforça a proibição.
Apesar disso, problemas semelhantes foram identificados no sistema socioeducativo em 2006. Uma pesquisa da Secretaria Especial de Direitos Humanos e do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente revelou que 685 adolescentes cumpriam medidas em prisões para adultos, o equivalente a 7% dos jovens em cumprimento de medida socioeducativa no país.
Um ano depois, em 2007, o país voltou a se chocar com um caso emblemático no município de Abaetetuba, no Pará. Uma adolescente de 15 anos foi presa por tentativa de furto e colocada em uma cela com mais de 20 homens. Durante 26 dias, ela foi submetida a estupros e torturas sistemáticas, enquanto autoridades e instituições demoravam a intervir. A jovem entrou em um programa de proteção a testemunhas, desapareceu sem deixar rastros, e nenhuma das pessoas responsáveis — delegados, carcereiros ou juíza — sofreu punição efetiva.
Mulheres trans em unidades masculinas
O caso de Fernanda Falcão, mulher trans, revela mais uma vez como o sistema prisional brasileiro falha em proteger pessoas vulneráveis sob sua custódia. Presa pela terceira vez em 2010, aos 19 anos, foi colocada com outras duas mulheres trans em uma cela com 99 homens no Complexo Prisional do Curado, em Recife (PE).
Na primeira noite, foi estuprada por um detento que exercia poder sobre os demais presos. As colegas também foram violentadas. Fernanda tentou negociar proteção com um agente penitenciário, oferecendo serviços de limpeza em troca de permanecer fora da cela durante o dia. Mais tarde, descobriu que o agressor era soropositivo. Sem acesso à profilaxia pós-exposição (tratamento preventivo para evitar a infecção pelo HIV), foi contaminada pelo vírus.
Atualmente, não existe uma lei federal específica que regulamente a custódia de pessoas trans e travestis privadas de liberdade. No entanto, existem alguns instrumentos jurídicos conquistados por movimentos nacionais e internacionais em defesa dos direitos LGBTQIAP+. Um deles é a Resolução nº 348/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que estabeleceu, dentre outras coisas, o respeito à identidade de gênero no sistema prisional e que mulheres trans e travestis devem, preferencialmente, cumprir pena em unidades femininas, considerando sua segurança e escolha.
Porém, essa resolução não é uma lei aprovada pelo Congresso, mas uma norma administrativa, ou seja, uma regra criada por um órgão do governo — neste caso, o CNJ — para orientar como o sistema prisional deve agir. Isso significa que ela só funciona de verdade se os estados implementarem e fiscalizarem seu cumprimento, garantindo a proteção das mulheres trans e travestis privadas de liberdade.
Um relatório inédito encomendado pelo Governo Federal em 2020 confirmou que travestis e mulheres trans são especialmente vulneráveis à violência emocional, física e sexual em presídios masculinos. O estudo, conduzido pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, revelou que essas pessoas são frequentemente forçadas a cortar o cabelo, usar roupas masculinas, abandonar a terapia hormonal e têm o nome social ignorado. Das 508 unidades prisionais analisadas, apenas 106 possuíam celas específicas para a população LGBT, muitas delas usadas como forma de punição.
Segundo o dossiê “TransBrasil”, produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) em parceria com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, essas violações não são pontuais, mas estruturais. Em inspeções realizadas entre janeiro e março de 2021, em unidades prisionais majoritariamente masculinas, as pesquisadoras constataram que travestis e mulheres transexuais permanecem no último degrau da hierarquia prisional, sujeitas a estupros, agressões físicas e coerção sexual em troca de comida, proteção ou medicamentos.
O relatório registrou relatos de estupros, coerção sexual em troca de comida ou proteção, além da imposição de cortes de cabelo, uso de roupas masculinas e interrupção forçada da hormonização. Também foi constatada a falta de respeito ao nome social e dificuldades de acesso a cuidados de saúde, incluindo tratamento para HIV.