‘Ponto turístico’ na Casa Abandonada é mais um símbolo racista de SP

Com o sucesso do podcast A Mulher da Casa Abandonada, ouvintes passaram a ir até o endereço da mansão para tirar selfies.

14|07|2022

- Alterado em 15|07|2022

Por Beatriz de Oliveira

Higienópolis. Bairro nobre da região central de São Paulo. O nome vem de “higienizar”, por ser a primeira região da cidade a investir em saneamento básico. Para que a “limpeza” ocorresse, pessoas pobres foram afastadas, pois eram associadas a doenças e sujeira. Não há lugar mais emblemático para abrigar uma criminosa rica, cuja casa abandonada em que mora exala um cheiro que incomoda os vizinhos.

Sim, vim aqui para falar do podcast A Mulher da Casa Abandonada. Nele, o jornalista Chico Felitti conta quem é a moradora misteriosa da casa, Margarida Bonetti, acusada há 20 anos de submeter uma mulher a trabalho análogo a escravidão nos Estados Unidos. Procurada pelo FBI (O Federal Bureau of Investigation ou Departamento Federal de Investigação é uma unidade de polícia do Departamento de Justiça dos Estados Unidos), a mulher está foragida na mansão do bairro rico da capital paulista. Durante sua investigação, o repórter logo percebe que os vizinhos sabem do crime que Margarida cometeu, mas o silêncio reina.

Reinava. Com a publicação do podcast, o caso ganhou grande visibilidade e passou a ser discussão frequente no Twitter. Saindo da esfera virtual, curiosos passaram a ir até o endereço da mansão. Tiram selfies, produzem vídeos, aguardam pelo aparecimento de Margarida numa das janelas. Virou uma espécie de ponto turístico.

Isso me embrulha o estômago.

É como se a mulher que foi escravizada por anos e teve inúmeros direitos negados, fosse apenas um detalhe da história. É como se aquele lugar não representasse uma violência à população negra. A casa grande permanece de pé nos dias atuais e a branquitude permanece protegida dentro dela.

A situação pode ser comparada à de um cartão postal da cidade de São Paulo: o Monumento às Bandeiras. Localizado no Ibirapuera, outro bairro nobre da capital, a obra de 11 metros de altura e mais de 43 metros de comprimento mostra uma expedição bandeirante, com brancos em seus cavalos à frente, negros e indígenas no meio e atrás emurrando uma canoa.

Os bandeirantes foram alçados à categoria de heróis em São Paulo, sendo possível os ver representados em estátuas e homenageados em nomes de ruas e estabelecimentos. A própria sede do governo do estado os menciona – Palácio dos Bandeirantes. Tudo isso, ignorando o fato de que além de buscarem por metais e pedras preciosas, escravizaram indígenas e destruíram quilombos.

É na frente disso que transeuntes e turistas tiram selfies sorridentes e postam em suas redes sociais.

No meu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) em Jornalismo me dediquei a pesquisar as histórias de oito estátuas da cidade de São Paulo, o trabalho resultou em uma série de reportagens disponíveis no site Memórias de Pedra. Ao longo dos meses de elaboração, me indignei em confirmar várias vezes o quanto essa cidade exclui as histórias protagonizadas por populações negras e como é violenta na escolha dos personagens que homenageia. É dessa maneira que vejo a casa abandonada: mais um símbolo da sociedade excludente e racista.

Há ainda um ponto que me incomodava quando fiz o TCC e que me incomoda agora. Muitas pessoas que passam pelas estátuas de bandeirantes no caminho para o trabalho, não sabem quem são as figuras representadas, e talvez não se importem – afinal, há coisas mais urgentes com o que se preocupar, com a alta da fome e do desemprego. Nem por isso, esses monumentos deixam de ser um retrato de violência.

Da mesma forma, imagino que muitas empregadas domésticas que higienizam os apartamentos de seus patrões em Higienópolis, não conhecem o podcast de Chico Felitti. Nem por isso, o fato da casa abandonada virar uma atração turística deixa de ser uma violência contra elas.

Mas vale citar que há atos de contestação contra essas violências. O Monumento às Bandeiras têm sido alvo de algumas intervenções ao longo dos anos. Em 2013, por exemplo, indígenas que protestavam contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que pretende transferir para o Congresso Nacional a demarcação de terras indígenas e e revisar terras já demarcadas, jogaram tinta vermelha no monumento simbolizando sangue e pixaram a frase “bandeirantes assassinos”.

No muro da mansão abandonada alguém também mostrou sua indignação e pixou a palavra “escravocata [sic]”.

Que cada vez mais evidenciemos a perversidade desses símbolos racistas.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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