Parentalidade periférica: quando educar com respeito vira privilégio
Como garantir os cuidados básicos na criação em meio à escassez de direitos na periferia?
13|08|2025
- Alterado em 13|08|2025
Por Sarah Carolinna
Penso todos os dias em como estou criando meus filhos. Entre uma tarefa e outra, enquanto entrego um trabalho, quando estou na batalha para manter a casa limpa ou na luta para garantir contas pagas e comida no prato, eu paro e penso: serei lembrada como a mãe que gritava ou a mãe que abraçava?
Essa pergunta atravessa a maioria de nós, mães, mas, quando somos periféricas, ecoa de outras formas, e nos leva a lidar com a redução de danos, em meio a realidade das escolhas possíveis.
Oferecer alimentos industrializados no lugar de in natura, por falta de tempo e dinheiro. Passar menos tempo com as crianças, por trabalhar em jornada 6×1. Perder a paciência, pela exaustão, depois de pegar três ônibus lotados na volta para casa. Não levar ao dentista, porque no posto de saúde não tem vaga. Esses fatores estão impedindo o desenvolvimento dos meus filhos?
Isso acontece, inclusive, porque no imaginário social da periferia se educa com violência e autoritarismo, e a falta de acessos é vista por muitos como falta de empenho. A gente às vezes se deixa levar por essas crenças também.

©pixabay
E, nessas reflexões, um fator chega para aumentar nossa preocupação: nos últimos anos, temas como educação respeitosa, parentalidade positiva, regulação emocional e neurociência viraram pautas mais frequentes.
Profissionais da infância nos alertam sobre o perigo de bater e gritar com os filhos, sobre como devemos prezar pela tranquilidade da gestante para que o bebê já não chegue ao mundo estressado e com seu pequeno cérebro inundado em cortisol.
Parentalidade periférica é possível?
A criança precisa ter seus direitos respeitados, a educação dos filhos precisa ser intencional, mas, me pergunto se estamos ensinando isso a todas as mães.
Caso não considerarmos o que atravessa a vida dessas mulheres, vivendo às margens do sistema, a parentalidade respeitosa deixa de ser ferramenta de transformação e se torna um novo marcador de privilégio.
Vamos chegar, em um futuro próximo, à ascensão de uma nova elite. Grupo formado por quem foi criado com escuta constante, regulação emocional e conexão afetiva, pessoas educadas por quem teve tempo e dinheiro para oferecer tudo isso.
E, de jeito nenhum, eu quero dizer que está errado oferecer tudo isso aos nossos filhos. O que eu quero dizer é que cabe a quem está pesquisando e pautando as reflexões sobre parentalidade respeitosa propor caminhos que sirvam também a quem trabalha muito e recebe pouco, a quem precisa abrir mão de tempo em favor da sobrevivência, quem “vive com o coração na mão” com medo do gás de cozinha acabar. Às vezes, parar e contar até dez já é privilégio, pois quem tem fome tem pressa.
Culpa materna
Apresentar os problemas envolvidos em educar uma criança em um ambiente de escassez ou de desregulação emocional, sem apresentar caminhos possíveis, é aumentar a culpa. É urgente difundir a criação respeitosa, sim, mas sem perder de vista que nem tudo está sob nosso controle. Fome, solidão, violência e exaustão não foram escolhas e, dentro desse cenário, é possível reduzir danos.
Porque nem sempre vamos reagir da melhor forma. Nem sempre vamos acertar. Mas sempre podemos reparar, conversar, olhar no olho, pedir desculpas e seguir tentando, não por sermos perfeitas, mas por amarmos a ponto de buscar caminhos, mesmo sem estrutura. E eles existem.
Começa na luta por políticas públicas de assistência à parentalidade. Temos a recente Lei nº 14.826/2024, que representa um avanço, mas ainda não apresenta diretrizes práticas que, de fato, alcance a periferia. O Estado pode e deve oferecer informação sobre parentalidade respeitosa desde o pré-natal, mas esse apoio não precisa ser unicamente institucional, pois desde sempre a periferia resiste e cria suas próprias estratégias.
Caminhos possíveis
A parentalidade se reinventa na roda de conversa improvisada na espera da UBS (Unidade Básica de Saúde). Na benzedeira do bairro que ensina uma prática de cuidado ancestral. Esse cuidado parental se mostra no sábado de manhã, onde as famílias das várias casas do mesmo quintal se juntam para que os mais velhos ensinem aos mais novos a cuidar do cabelo. Na horta comunitária para melhorar a alimentação e na criatividade de quem sempre precisou dar seu jeito para tudo.
É preciso, além de tudo, contar as histórias das mães periféricas que erram, mas não desistem, choram, mas seguem, e educam com respeito. Não porque estudam neurociência e comunicação não-violenta, mas porque sustentam o amor como escolha possível dentro do caos. A maior redução de danos que podem praticar é oferecer afeto onde falta tempo, dinheiro, estrutura, rede e assistência do Estado.
Sarah Carolinna Mãe de três filhos pretos, pedagoga, historiadora e educadora racial especialista em cultura e história afro-brasileira e africana. Ativista da maternagem racializada e defensora do letramento racial na infância.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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