‘É na parentalidade que homens pretos têm contato com o letramento emocional’
Conversamos com o especialista Humberto Baltar sobre parentalidade, o letramento emocional dos homens negros e o que há por trás do discurso da educação com violência
Por Amanda Stabile
05|01|2023
Alterado em 05|01|2023
Essa semana viralizou nas redes sociais o vídeo de um homem negro agredindo suas filhas, de sete e dez anos, na praia de Itapuã, em Salvador (BA). A motivação da violência seria que o pai perdeu as crianças de vista por alguns momentos, após proibi-las de irem para a água sozinhas, durante a manhã de domingo (1).
A imagem, gravada por um banhista, gerou revolta em quem assistiu a cena e o homem publicou alguns vídeos nas redes sociais para justificar suas ações. “Eu errei, passei do limite. Eu bati demais, mas não matei minhas filhas. Elas estão aqui comigo, sob os meus cuidados”, apontou chorando. Em outro vídeo, uma das crianças, a mais nova, repete o discurso do pai e diz que ele apenas bateu nela para educá-la.
Para conversar sobre esse acontecimento, e o que há por trás do discurso de educar crianças com violência, e sobre a parentalidade e o letramento emocional dos homens negros, convidamos Humberto Baltar, que é educador, tradutor, palestrante TEDx, consultor étnico-racial e coautor do livro Seja Homem: reinvenção de uma masculinidade em crise.
Diante do nascimento do filho Apolo, Humberto idealizou o coletivo Pais Pretos Presentes com a esposa, Thainá Baltar, formando uma rede de apoio, acolhimento, letramento racial, discussão e educação parental para famílias pretas. O especialista também atua como consultor de gênero, masculinidades e paternidades.
Nós: mulheres da periferia: O que há por trás da ideia de “bater para educar”?
Humberto Baltar: Ela envolve muito mais questões do que parece. Inclusive, a gente usa até uma rainha preta para ajudar a gente nessa reflexão, a bell hooks. No texto Vivendo de Amor, ela traz um diálogo bem interessante: a própria mãe falando com a filha do porquê ela era dura na criação, inclusive de não dizer “eu te amo”. Justamente para não amolecer a criança, para ela não ficar frágil em um mundo que é duro com pessoas pretas.
E passa por um outro lugar também, especialmente no caso desse pai, que é o lugar de quem muitas vezes não recebeu esse afeto dos próprios pais. É muito comum entre pessoas pretas o relacionamento considerado educativo ser feito por meio da agressividade.
E essa é uma vivência de muitas pessoas, a ideia de que batendo você educa. Isso remonta, inclusive, à própria escravização do povo preto, em que você era punido fisicamente por não produzir.
A bell hooks também trata da questão da “memória ancestral”. Essa é uma pauta muito importante também para ajudar na nossa reflexão. Porque eu sei que, embora não sejam apenas pais e mães pretas que às vezes recorrem à violência na criação dos filhos,
pais e mães pretas recorrem à violência por outras razões, que são mais profundas e estão conectadas desde à escravização até à dificuldade da expressão do afeto.
Nós: Naquela situação (em que as crianças se perderam na praia), o que o pai poderia fazer ao invés de agredir as crianças?
Humberto: Essa é uma pergunta que não tem resposta porque o que ele poderia fazer depende da vivência dele, que a gente não conhece. Inclusive, eu tenho relato pessoal nisso. Eu descobri no último ano, em março, que eu estou no espectro autista, tenho TDAH [Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade] e tenho dislexia. E um dos sintomas do TDAH é que essa agitação que às vezes nos toma gera uma certa agressividade e irritabilidade.
Quem está assistindo uma cena desconhece a condição em que essa pessoa vive. Tem a questão da saúde mental, a criação e socialização desse homem com expressões de afeto, que toda plateia ali não conhece. O que eu quero é trazer aqui é que ele não é enxergado como uma pessoa. A dimensão humana do homem preto não entra em cena em casos de violência.
Eu sei que não há comparação e nada justifica o que esse homem fez com as filhas.
Porém eu lembro que aqui no Brasil um cantor chutou a barriga da companheira gestante e isso não afetou em nada a carreira desse homem. Também teve um outro que agrediu a companheira, sendo filmado, e ganhou mais seguidores, viralizou nas redes. Enfim, o tratamento e o olhar dado pela sociedade a homens pretos autores de violência não é de modo algum o de pessoas que precisam de acolhimento, que precisam de ajuda, de auxílio para que sejam reeducadas na sua maneira de expressar as próprias emoções, como pessoas que não têm letramento emocional nenhum. É raríssimo um homem preto ter repertório emocional para lidar com situações de conflito.
Um vídeo do Emicida viralizou porque ele diz que a terapeuta disse a ele: “olha, eu acho que você não tem repertório emocional para lidar com uma determinada situação”. E ele coloca: “nossa, repertório emocional, eu nunca nem tive isso. Quem me ensinou isso foram as minhas filhas”.
É justamente na parentalidade que muitas vezes o homem preto vai ter o seu primeiro contato com o letramento emocional. Quando ele percebe que a criança tem as emoções dela, ele tem as emoções dele e é preciso mediar as emoções de ambos.
Eu não posso reagir na base do rompante, daquilo que eu estou sentindo no momento. E o filho quase sempre é a primeira pessoa que nos traz essa reflexão porque não somos enxergados como gente na sociedade brasileira, muitas vezes até mesmo por pessoas pretas. E isso é doloroso.
Como o caso desse homem vem evidenciando, tem vários perfis de mulheres pretas e homens pretos, simplesmente julgando, atacando e condenando a ação do homem – que obviamente é totalmente condenável –, mas sem uma vírgula sequer sobre ressocialização, educação parental, letramento racial, escuta ativa.
Nós: Algum tempo depois, o pai publicou um vídeo com a criança mais nova reproduzindo o seu discurso. Ela diz que ele bateu nela para educar. Como você avalia a situação?
O vídeo mostra mais uma vez como nós não somos educados emocionalmente. Ele entende que se a intenção é educar e disciplinar, o ato é justificado. Ou seja, a saúde mental dessas crianças não entra na reflexão dele. Por isso eu reforço a necessidade da gente falar de letramento emocional, educação parental, acolhimento e escuta ativa para pais pretos, especialmente.
Humberto: Por isso, o coletivo Pais Pretos Presentes existe. Eu reparei, em 2018, quando eu soube da minha paternidade, que não existia um espaço assim para nós, homens pretos, e não existe ainda. Eu vejo pouquíssimos espaços com essa proposta de acolher homens pretos, ouvi-los. Nosso coletivo trouxe uma abordagem tão rica que até as mulheres que nem eram protagonistas no surgimento do coletivo viram a importância do que a gente vem fazendo e abriram um grupo lindo, que é o Mãe Pretas Presentes e passaram também a curar as próprias dores coletivamente, maternando umas às outras, assim como nós, pais pretos, paternamos uns aos outros.
E por que a gente faz isso? Porque está na nossa ancestralidade. A sociedade africana é toda pautada na coletividade, na comunidade. Mas isso também acontece porque o Estado não tem políticas públicas para a população preta, não existe um olhar, um recorte racial na pauta da saúde mental, que, inclusive, é a campanha desse mês, o Janeiro Branco.
Nós: O discurso do “eu apanhei e não morri” apareceu entre os defensores da atitude do pai. Quais as problemáticas dessa fala?
Essa fala “apanhei, mas não morri” é muito problemática, principalmente vindo de pessoas pretas porque a violência é naturalizada.
Humberto: Quando se aborda a vida de pessoas pretas é como se a violência para nós fosse algo já esperado, como se já estivesse no roteiro. Inclusive, a violência contra pessoas pretas não choca.
Eu lembro que viralizou um vídeo de um supermercado onde uma pessoa preta foi suspeita de furto e um segurança simplesmente chicoteava esse jovem preto e o vídeo circulou com total naturalidade a ponto de pessoas públicas repostarem sem qualquer pudor. Assistir um homem preto sendo chicoteado foi algo lido como natural, inclusive por pessoas pretas.
A gente está falando de um racismo estrutural, que faz com que a violência contra os nossos corpos seja naturalizada e assimilada inclusive por nós.
Essa pauta é muito séria e muito urgente. Também precisamos falar da educação parental, do letramento emocional, de afeto, da escuta ativa, da comunicação não-violenta, da disciplina positiva, da criação com apego. Aliás, essas são pautas que não chegam às famílias pretas, especialmente àquelas periféricas.
Eu vejo grupos independentes, como coletivos e redes sociais, fazendo um trabalho mais articulado do que as esferas que a gente espera – a escola, o Estado e a própria religião – infelizmente.
Nós: Tem mais alguma coisa sobre essas questões que você queira comentar, mas nós ainda não falamos?
Humberto: O que eu quero comentar é algo que eu já falei, mas não aprofundei muito, que é: onde fica o acolhimento a esse homem? Porque até mesmo comentários sobre o tribunal do crime estão circulando, ou seja, o assassinato desse homem foi rapidamente cogitado, pensado, considerado. Enquanto não houve sequer uma vírgula, frase, parágrafo ou fala sobre o letramento emocional desse homem. Não houve uma escuta ativa sobre o que levou ele a agir assim, porque só quem é pai e mãe sabe o desespero que dá perder um filho.
Aqui em casa, graças à ancestralidade, ao benefício que nós adquirimos do nosso trabalho, temos a oportunidade de morar numa casa grande e eu já levei um susto aqui uma vez que meu filho sumiu. Foram alguns segundos, mas só eu lembro como o meu coração disparou. O Apolo tinha subido as escadas e eu não vi que ele tinha ido lá para cima, para o terraço. Óbvio que eu não bati nele, óbvio que eu não gritei com ele, mas eu lembro o desespero que eu fiquei.
E como se lida com o próprio desespero quando você não tem qualquer informação sobre letramento emocional?
Como eu falei, no ano passado, em março, eu tive diagnóstico de autismo e, em função disso, eu passei a ser acompanhado por um psicólogo, um terapeuta, um neurologista, um psiquiatra. Hoje eu tenho praticamente uma equipe responsável por discutir as minhas emoções, por entender os meus impulsos e pensamentos. Mas e a pessoa que depende do SUS? A gente descobriu com a pandemia de covid-19 que 67% da população que depende única e exclusivamente do SUS é negra.
O Estado está falhando miseravelmente nos enxergar como pessoas e quem paga o preço, como nós vemos nesse vídeo, acabam sendo as crianças pretas. Por isso que a masculinidade saudável deveria ser uma pauta de política pública.
Denuncie a violência contra crianças e adolescentes
Em maio de 2022, entrou em vigor no Brasil a Lei 14.344, conhecida como Lei Henry Borel, que estabelece medidas protetivas específicas para crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar e considera crime hediondo o assassinato de menores de 14 anos.
Desde 2014, crianças e adolescentes também têm o direito de serem educadas sem o uso de castigos físicos, de tratamento cruel ou degradante. A legislação que possibilitou esse avanço foi a Lei nº 13.010, conhecida como Lei Menino Bernardo, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
O artigo 232 do Estatuto criminaliza, por sua vez, a conduta de “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento”. A pena prevista é de detenção de seis meses a dois anos.
A legislação traz a especificidade da infância e adolescência para a pauta, reforçando o artigo 136 do Código Penal de 1940, que criminaliza os maus-tratos e a exposição da vida e da saúde de pessoas sob a responsabilidade do agressor — não apenas crianças –, para qualquer finalidade, inclusive para correção ou disciplina.
A pena varia de dois meses a um ano de detenção e multa e pode ser maior conforme a gravidade da agressão. Quando a violência é cometida contra crianças com menos de 14 anos, a pena deve ser aumentada em 2/3.
Para denunciar qualquer forma de violência contra crianças e adolescentes Disque 100. Você também pode procurar o Conselho Tutelar ou as Delegacias de Polícia da sua região.